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Fortaleza das feiras: nem chuva, nem violência param a feira das Goiabeiras
Reportagem Seriada

Fortaleza das feiras: nem chuva, nem violência param a feira das Goiabeiras

Mesmo com variações de público e clima, a pequena feira na Barra do Ceará se mantém com estratégias de negócios flexíveis e vínculos comunitários fortes
Episódio 5

Fortaleza das feiras: nem chuva, nem violência param a feira das Goiabeiras

Mesmo com variações de público e clima, a pequena feira na Barra do Ceará se mantém com estratégias de negócios flexíveis e vínculos comunitários fortes
Episódio 5
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Nas manhãs de sábado, sob o afamado céu em tons azuis e dourados da Barra do Ceará, é costume a paisagem se modificar para diferentes cores e sons característicos de um frenesi popular. Esse rebuliço vem da Feira das Goiabeiras, que apesar de se resumir a uma rua, é tão pulsante quanto as grandonas da Capital.

Em época de inverno cearense, que em muito influencia ao longo do ano na qualidade e diversidade dos produtos no mercado, a situação se transforma. Se a chuva cai, a clientela escoa e quem por ali faz sua vida teme pela faturação do dia. Mas a Goiabeiras se adapta, da mesma forma que vem fazendo ao longo dos anos e décadas.

A feira é localizada na rua Senador Robert Kennedy, mas as primeiras bancas de madeira podem ser vistas logo no cruzamento com a avenida Leste Oeste. Nessa extremidade, o domínio é das roupas, onde tecidos leves e estampados dividem o espaço com os clássicos jeans.

Vendedora da Feira das Goiabeiras dá boas vindas aos clientes num domingo de chuva na Barra do Ceará, em abril de 2024(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Vendedora da Feira das Goiabeiras dá boas vindas aos clientes num domingo de chuva na Barra do Ceará, em abril de 2024

Quem dá as boas vindas é Claudenir Lopes. Protegendo-se da garoa que persistia em pingar e sentada em um banquinho ao lado da própria venda, ela aguardava quem se aventurasse no dia chuvoso na feira. Insistindo em ser chamada de Loura, há 25 anos trabalha nas Goiabeiras vendendo produtos de confecção.

“Meu carro chefe são os jeans, vendo feminino e masculino. A maioria agora já está guardado, se não molhava tudo. Dia de chuva é assim mesmo”, diz mostrando os produtos ao lado e as sacolas embaixo da estrutura.

“Hoje tem menos gente, dia de sol aqui tem muito mais. Mas pode ver que ainda tem gente que vem comprar”, aponta Loura para os clientes que, vez ou outra, passavam por nós com sombrinhas, guarda-chuvas e capas de chuva.

Havia, inclusive, aqueles que não se importavam em se molhar. Um acessório a mais, naquele tempo chuvoso e no imprensado entre as bancas, se tornava um empecilho no fluxo — ainda que reduzido — entre os fregueses e vendedores ambulantes.

 

 

Semente de Goiabeiras: como nasceu a feira

 

Carregando mais de duas décadas de vendas na Goiabeiras, Loura é questionada se fincou pé por lá desde a fundação da feira. Ela explica que, na verdade, iniciou seus trabalhos há quase três décadas em Caucaia, cidade que faz limite com Fortaleza bem acolá na Barra do Ceará.

“Mas a Prefeitura da época expulsou os feirantes de Fortaleza. Aí eu e mais alguns viemos para cá e, na época, já tinha gente vendendo roupa e fruta por aqui, mas era bem pouca gente”, relata, lembrando que o espaço foi ganhando mais vendedores ao longo do tempo. Hoje, o comércio se estende quase até a praia homônima à feira. 

Feira das Goiabeiras, na Barra de Ceará, atrai moradores de toda a região vizinha(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Feira das Goiabeiras, na Barra de Ceará, atrai moradores de toda a região vizinha

A proximidade da praia, constata ela, seria “a cara” da Feira das Goiabeiras. É ela que também explica que, ao contrário do que muitos pensam, o nome do espaço não está diretamente relacionado com uma possível presença de árvores de goiaba no local ou com a venda predominante dessa fruta. Na verdade, o termo "Goiabeiras" refere-se à comunidade onde está situada: o Planalto das Goiabeiras.

Durante todo o trajeto de pouco mais de 500 metros, que se estende desde as bancas de "miudezas" — brinquedos, produtos de limpeza, panelas — até as de alimentos, o questionamento se repetiu: “Como e quando a Feira das Goiabeiras surgiu?”. O que faltou foi consenso.

A maioria constata que, quando montou pela primeira vez sua banca — há 20, 25, 30 anos — a feira já estava de pé. Outros apontam, por experiência própria, que o aglomerado se formou a partir de transferências de outros comércios populares para a região.

É o que diz Murilo Rodrigo de Araújo, de 77 anos e que, há pelo menos 58 anos trabalha como feirante na Capital. “(Eu) Me tornei feirante depois de sair do exército, eu tinha 19 anos e entrei num grupo de feirantes. Todo dia da semana era em um ponto diferente e, no sábado, meu ponto era na feira do Bom Jardim. Mas como lá ficou muito grande, a Prefeitura dividiu e nos passaram pra cá”, explica.

Desde os anos 2000, a banca onde seu Murilo vende carne bovina e suína se encontra no mesmo local. Vizinhos foram se achegando e, agora, ele compartilha o espaço com outros vendedores de carne. Os verdureiros chegaram depois para fechar o prato principal.

 

 

Décadas de feira e os galhos que se formam

 

Em feira, a conversa acompanha o ritmo do próprio ambiente: frenético. Enquanto escutava as perguntas, com maestria o veterano cortava diversas carnes, afugentava qualquer mosca ou mosquito que ousasse pousar no alimento e, quando livre, se voltava a mim com um sorriso educado e uma empolgação de quem ama o que faz.

Ele conta que foi um dos primeiros vendedores que chegou à Goiabeiras. “Hoje todo mundo aqui é amigo. Se alguém não tiver troco, o (vendedor) do lado arranja. Tem vez que preciso sair rapidinho e o pessoal atende, pede pro cliente esperar”, relata. Seu Murilo nem bem deixava encumpridar a conversa por dois minutos e logo precisava atender outro cliente. 

Sorriso no rosto, sombrinha colorida numa das mãos, sacolas de compras apoiadas no cotovelo, quem chega é Marta Eliete Pereira de Sousa, há 20 anos cliente fiel de Seu Murilo.

Seu Murilo, comerciante, já conta 20 anos na Feira das Goiabeiras, na Barra do Ceará (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Seu Murilo, comerciante, já conta 20 anos na Feira das Goiabeiras, na Barra do Ceará

“A feira aqui é muito boa, graças a Deus. É pequena mas a gente tem de tudo, é um bom atendimento e as coisas ainda são bem em conta”, delicia-se.

“Olha o tamanho dessa banquinha”, continua Dona Marta, apontado a estrutura montada por Seu Murilo. “Bem pequena, mas é melhor você chegar num lugar simples e ser bem atendida, do que você chegar numa coisa grande e não ser. Esse vendedor é maravilhoso”, ri.

Mal deu tempo de Murilo Rodrigo ensacar a carne solicitada por Marta e uma jovem supre o breve vazio da fila. “Cadê a mamãe, vem hoje não?”, diz o vendedor, transbordando intimidade. “Deus te leve e Deus te traga”, finaliza.

 

 

Estrutura e segurança: tronco forte

 

— Ó, eu tenho melão, mamão, abacate. Vem pra cá, pessoal, eu tenho banana prata!

Misturada às gargalhadas, estridia a voz de propagandista do José Flávio. O comerciante, gaiato como ele mesmo se caracteriza, não perdia a oportunidade de “frescar” com quem passasse pela banca de frutas, muito menos com os amigos feirantes ao redor.

 Feira das Goiabeiras conta com diversidade de frutas, legumes e hortaliças (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Feira das Goiabeiras conta com diversidade de frutas, legumes e hortaliças

Ao abordar o vendedor, Flávio anuncia alto aos homens com quem ri. “Agora eu tô trabalhando pra ela aqui”, me pedindo para prosseguir. Ele então inicia seu relato de quando, aos 15 anos de idade, virou feirante. Há quanto tempo na Feira das Goiabeiras? Nem ele sabe. Mas do hoje, aos 66 anos, todo mundo se dá conta. Ele tornou-se personalidade do espaço.

“Aqui é muito bom, faça chuva ou faça sol. A feira é feita por nós mesmo”, vende. “Temos ajuda do poder público, não. Agora, podia ter banheiro. É muito comum ter cliente que vem, às vezes de longe, e precisa usar o banheiro. Até nós mesmos, quando precisamos ir, temos que pedir nos comércios aqui do lado”, conta Flávio.

Sobre a construção de banheiros, a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) informou que a Goiabeiras faz parte do projeto Feiras Livres, que está realizando melhorias na infraestrutura, limpeza, trânsito e segurança das feiras livres da Capital. “A Feira das Goiabeiras integra o cronograma para os próximos meses”, promete a pasta.

 

 

Os prejuízos de dia de chuva

 

O que antes era garoa virou toró, e o frágil guarda-chuva que a repórter carregava mal e mal cumpria sua função. Ao mesmo tempo, o aroma petricor da chuva se misturava com os cheiros vibrantes de especiarias, verduras e frutas da feira.

Detrás de uma banca de frutas, está Luan Pereira, 29. Roupa colada ao corpo, cabelos pingando, ele conta que é morador do bairro Álvaro Weyne e há seis anos é feirante na Goiabeiras. "É mais difícil vender alimento em tempo chuvoso?".

Feirantes improvisam em dia de chuva na Feira das Goiabeiras, na Barra do Ceará (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Feirantes improvisam em dia de chuva na Feira das Goiabeiras, na Barra do Ceará

Ele expõe então os meandros de bom negociador. “Aqui a goiaba é R$ 5, mas faço duas por R$9. É saber tratar bem o cliente, conversar, se não ele não volta mais”. Quando a manhã chega próxima do fim, a estratégia tem que mudar para a “queima”, ou seja, vender ainda mais barato. “Se é R$ 5 agora, mais tarde nós vendemos por R$ 2. Tem cliente que só vem na hora do ‘pobre’, que é 12 horas”, ri.

“Fruta, se não vender no mesmo dia, no outro já não dá. É ruim pra gente, mas pro cliente é vantagem. Tem dias que as vendas são ótimas, mas tem dias, principalmente quando chove, que a gente paga para trabalhar. Hoje eu acho que saio no prejuízo”, lamenta o feirante.

 

 

“Foi tiro na cabeça, era filho de um feirante”

 

A segunda vista à Goiabeiras, no dia 20 de abril, foi de silêncios e trabalho. Ao chegar ao local, a movimentação de policiais e de curiosos era maior após uma trágica ocorrência: naquele sábado, logo no começo da manhã, um homem foi morto em via pública, ao lado da feira.

Tratava-se de um homem alvejado com três tiros na cabeça, filho de um feirante, conforme os agentes de segurança no local. A simpatia entre os fregueses e comerciantes do outro sábado, então, virou atmosfera de desconfiança.

Segurança é um dos pontos que feirantes reivindicam na Feira das Goiabeiras(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Segurança é um dos pontos que feirantes reivindicam na Feira das Goiabeiras

Após os procedimentos legais e a saída das autoridades de segurança do local, o comércio retomou normalmente na Feira das Goiabeiras, como se um trágico evento não tivesse deixado sua marca poucos instantes antes.

Na primeira visita, a falta de segurança era questão apontada pelos frequentadores. Inclusive, percorrendo todo o perímetro comercial, não foi avistado nenhum agente de segurança ou viatura realizando ronda na Feira.

A Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) diz que a segurança na Feira das Goiabeiras é realizada com rondas feitas pela Célula de Proteção Comunitária do Bairro, com viaturas, motocicletas e câmeras de videomonitoramento. Em emergências, a população pode ligar para o telefone 190.

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