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Dora Andrade: um corpo em movimento que dança fora da caixa
Reportagem Seriada

Dora Andrade: um corpo em movimento que dança fora da caixa

Jovens da periferia seguem os passos da artista e coreógrafa cearense Dora Andrade, fundadora da Edisca, que leva a dança a lugares onde a arte nunca havia chegado e dá ritmo à vida de crianças e adolescentes de comunidades pobres de Fortaleza
Episódio 4

Dora Andrade: um corpo em movimento que dança fora da caixa

Jovens da periferia seguem os passos da artista e coreógrafa cearense Dora Andrade, fundadora da Edisca, que leva a dança a lugares onde a arte nunca havia chegado e dá ritmo à vida de crianças e adolescentes de comunidades pobres de Fortaleza
Episódio 4
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A dança em lugares onde ela nunca havia chegado. A arte como um meio de devolver a cidadania para meninas moradoras de comunidades pobres da periferia de Fortaleza. Foi a paixão pelo corpo em movimento que inspirou a professora e coreógrafa Dora Andrade, uma bailarina que rodopiava na ponta dos pés como se numa caixinha de música, a dançar fora da caixa.

Idealizadora e fundadora da Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca) "A Edisca é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1991, que promove o desenvolvimento de crianças em situação de risco social, por meio da dança, teatro e artes. Localizada no Conjunto Luciano Cavalcante, em Fortaleza, a escola também atua no fortalecimento do ensino formal, entre outras ações. As famílias das crianças participam de cursos e programas." , que há mais de 30 anos dá ritmo à vida de jovens da Capital, a filha dos professores Gislene Andrade e Hemetério Araújo aprendeu, desde cedo, que a educação é o maior patrimônio que se pode ter.

Referência com reconhecimento internacional, Dora desenvolveu dentro de casa uma fé inabalável no social e uma vocação para cuidar das pessoas. A dançarina rodou o mundo a estudar, mas seus passos lhe trouxeram de volta e hoje são seguidos por crianças e adolescentes que só precisavam ter acesso à cultura para fazer seu espetáculo.

Dora Andrade, bailarina e coreógrafa cearense, idealizadora do projeto da Escola Edisca de dança voltado para crianças e adolescentes de Fortaleza (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Dora Andrade, bailarina e coreógrafa cearense, idealizadora do projeto da Escola Edisca de dança voltado para crianças e adolescentes de Fortaleza

“Nesses 32 anos de prática social, centrei o meu olhar na riqueza e potencial que existe nos pobres. As periferias, o que mais possuem é talentos, resiliência, generosidade, fraternidade e força, muita força. Hoje me considero uma pessoa melhor por ter tido a honra de conviver com essas pessoas”, destaca.

Por ter sido a Edisca uma experiência pioneira, Dora celebra que viu surgir, aqui e fora do Ceará, outros projetos inspirados nesse fazer: “Assim, a linguagem da dança vem se tornando mais inclusiva e diversa. O que muito nos alegra, pois ampliar o acesso a uma vivência qualificada em arte se constitui, sobretudo, em direito”.

“Há anos celebramos o ingresso de nossos educandos em universidades, alguns realizando seus mestrados e doutorados, sendo estes os primeiros de suas famílias a acessarem esse nível de educação. Acredito verdadeiramente que a Edisca contribuiu para essa quebra de paradigma. Nascer na favela de forma alguma deve decretar sentenças”, salienta.

Dora Andrade, bailarina e coreógrafa cearense: "Nascer na favela não é sentença"(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Dora Andrade, bailarina e coreógrafa cearense: "Nascer na favela não é sentença"

“Quando penso no surgimento da Edisca e no seu desenvolvimento, preciso reconhecer que, ao longo desse processo, a intuição foi fundamental, foi o que me guiou. Temos obstinação pela qualidade, pela estética, pelo belo e pelo bom, isso tem muito a ver com o conceito de equidade que seguimos à risca. Equidade não é dar igual, é dar na medida do que foi negado, do que foi tirado”, pondera.

“Gosto de pensar sobre mim e sobre a instituição que criei como aprendiz. Me sinto curiosa e aberta para o novo, busco todos os dias refletir sobre o que chega até mim e me pergunto, a cada acontecimento, seja ele maravilhoso ou desafiador, o que tenho que aprender com isso”, coloca.

Dora reflete: “Talvez o que nos diferencie seja a coragem de olhar para essas eventuais lacunas de nosso fazer e ter verdadeiramente o desejo de superá-las. Acredito que as conquistas que tivemos estão intrinsecamente ligadas a uma equipe multidisciplinar bastante qualificada e absolutamente comprometida com a causa social”.

Dora Andrade, bailarina e coreógrafa é reconhecida internacionalmente e recebeu o prêmio Funarte de Melhor Coreografia com o espetáculo Jangurussu(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Dora Andrade, bailarina e coreógrafa é reconhecida internacionalmente e recebeu o prêmio Funarte de Melhor Coreografia com o espetáculo Jangurussu

Um dos espetáculos de dança mais conhecidos estrelados pela Edisca foi “Jangurussu”, de 1995, que narrou a degradação das famílias que sobrevivem dos lixões nas grandes cidades. A apresentação lotou o Theatro José de Alencar em diversas temporadas e ganhou o Prêmio Funarte de melhor coreografia.

Em 2012, a Escola recebeu a Ordem do Mérito Cultural, maior comenda da Cultura do Brasil, concedida pelo Governo Federal. Os programas e ações voltados para as crianças, jovens e familiares (sobretudo as mães) atendidos são destaques nacional e internacionalmente.

Um exemplo é a campanha do Outubro Rosa “Com um passo, você pode ser inspiração”, parceria com um laboratório de medicina diagnóstica: a cada mamografia realizada por pacientes, uma é doada em prol de mães de alunos da ONG Edisca.

Dora Isabel de Araújo Andrade, mais conhecida como Dora Andrade, nasceu em 13 de março de 1959 (Foto: Dora Andrade/Acervo pessoal)
Foto: Dora Andrade/Acervo pessoal Dora Isabel de Araújo Andrade, mais conhecida como Dora Andrade, nasceu em 13 de março de 1959

Em 2021, 47 mulheres puderam fazer o exame fundamental para o diagnóstico precoce do câncer de mama a partir da ação.

“Desde muito jovem via em nossa casa minha mãe acolher, sistematicamente, pessoas que vinham a Fortaleza para cuidar da saúde, resolver problemas, visitar parentes. À época, aquilo me irritava um tanto, pois perdíamos por completo nossa privacidade. O tempo me mostrou como minha mãe estava certa”, expõe.

A professora continua:

“Me mostrou a importância de servir, da importância de construirmos redes de apoio, sobretudo quando se trata de intervir em uma problemática grande e complexa como por exemplo a questão da pobreza que é onde eu atuo. Em nossa luta, possuir uma rede de apoio passa a ser vital”.

Dora explica que a rede de apoio da Edisca é composta “primeiramente por representantes das comunidades atendidas, pois são eles que melhor sabem dizer de suas problemáticas e prioridades. Soma-se a esse grupo coordenadores da Edisca, conselheiros, amigos e parceiros. Essa constelação provou-se bastante eficaz e eficiente, provavelmente porque o coletivo é mais sábio”.

Alunos do projeto O POVO Educação entrevistam Dora Andrade, bailarina e idealizadora do Projeto Edisca(Foto: MARIANA PARENTE)
Foto: MARIANA PARENTE Alunos do projeto O POVO Educação entrevistam Dora Andrade, bailarina e idealizadora do Projeto Edisca

Um dos momentos mais marcantes para a fundadora da Escola foi a ação junto às comunidades e aos projetos sociais durante a pandemia de Covid-19. “Nunca trabalhamos tanto. Toda a equipe veio para dentro da instituição montar e distribuir cestas de alimentos e kits de higiene. Nos dois anos, a Edisca distribuiu mais de 500 toneladas de alimentos. Me senti viva, útil”, recorda.

“Gosto muito de pensar em mim como artista e como coreógrafa. Como criadora, sinto a necessidade de trazer à cena temas ligados ao tempo que me foi dado a viver, muitas vezes ligados às minorias”, retrata.

Dora acredita que um dos papéis da arte “é justamente provocar reflexões nos espectadores”: “Por esse motivo montamos o Jangurussu, que denunciava a condição sub humana das populações que habitam os lixões das grandes cidade”.

 Ensaio do corpo de bailarinos do balé Edisca, em 2017(Foto: MARIANA PARENTE)
Foto: MARIANA PARENTE Ensaio do corpo de bailarinos do balé Edisca, em 2017

“Montamos o Koi Guerra, que denunciava a favelização dos povos originários, falamos sobre o Nordeste, sobre a espiritualidade, sobre a sustentabilidade, acreditando que essa poética traria força, luz e interesse as temáticas apresentadas”, analisa.

Para a artista, esse trabalho “contribui para a criação de um novo olhar, um olhar mais sensível às causas sociais, humanas e ambientais, findando por gerar mobilização trazendo mentes, braços e corações para a ações para a boa luta”.

Corpo de baile, grupo de teatro, alfabetização, informática, biblioteca e nutrição, além de atendimento médico, odontológico e psicopedagógico são programas da Escola, cujos benefícios diretos chegam a uma média de 300 jovens. O corpo de balé é sucesso no circuito nacional e também em países como Itália, Portugal e França.

 

 

Quantos passos são necessários para mudar a vida de alguém?

A bailarina e ginasta rítmica Nicole Lemos, de 10 anos, é pequena no tamanho, mas gigante em potencial. A menina conheceu a Edisca por meio de uma oficina de dança inclusiva através do Dança-Libras.

Em parceria com a Edisca, a plataforma de pesquisa e criação que tem a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como principal fonte de comunicação e produção cênica, realiza um projeto importante para que pessoas surdas possam desenvolver talento e amor pela dança.

Nicole nasceu com deficiência auditiva, mas o fato de não ouvir não a impediu de dançar. Aos 5 anos, a avó de Nicole, professora de balé, percebeu o talento da neta para a dança. Logo na primeira aula, a menina seguiu os passos e movimentos mesmo sem ouvir, apenas através da vibração da música e observação da coreografia.

A pequena Nicole Lemos, de 10 anos, é uma criança surda que se apaixonou pela dança e se tornou bailarina. Na Edisca ela participa de oficinas da dança inclusivas(Foto: Nicole Lemos/Acervo pessoal)
Foto: Nicole Lemos/Acervo pessoal A pequena Nicole Lemos, de 10 anos, é uma criança surda que se apaixonou pela dança e se tornou bailarina. Na Edisca ela participa de oficinas da dança inclusivas

A mãe de Nicole, Orleanna Lemos, ressalta que foi um mês especial: “Teve oficinas para surdos, para cegos, para cadeirantes, foi maravilhoso. Todos que participaram adoraram e a gente gostaria que tivesse de novo. São causas muito invisíveis e que precisam dessa oportunidade”.

Nem todas as meninas que passam pela Edisca seguem no caminho da dança, mas esse não é o foco. A jornalista Danny Monteiro, por exemplo, aprendeu através da Escola que poderia ser o que escolhesse.

“Aproveitei tudo o que as artes e os estudos me proporcionaram. Fiz amizades para a vida toda. Convivi com mulheres incríveis, líderes e visionárias, que me ensinaram — na prática — o tal do ‘empoderamento feminino’, quando esse termo ainda nem existia”, conta.

“Do ballet, eu herdei a disciplina e a resiliência: palavras importantes para quem quer ser jornalista neste País. Do canto coral, a projeção vocal. Do teatro, a presença de palco. Das aulas de inglês, a coragem para se aventurar em outras línguas. E por aí vai…”, elenca.

Hoje ela mora em Belo Horizonte (MG), mas os passos sempre a trazem de volta: “Sempre que volto à Fortaleza, dedico um dia para visitar esse lugar tão especial da minha história. Porque ser um ‘educando’ da Edisca vai muito além do que usar um uniforme. Simplesmente porque o que marca o nosso caráter, não sai assim facilmente. Carrego comigo sempre, para onde eu for”.

  

 

Passos do bem: como ajudar a Edisca

Pessoas físicas e empresas podem contribuir com o trabalho da Edisca.

Para doar via Pix, a chave é o CNPJ: 69.697.662/0001-69. Para doar via depósito bancário, os dados são esses a seguir.

Banco do Brasil: Agência 2937-8, C/C: 111251-1 | Caixa Econômica: Agência 1977 / Operação: 003 / Conta: 0512-6

Para doações dedutíveis no Imposto de Renda de Pessoa Física ou Jurídica, ligue para (85) 3278-1515 / 98869-1180, ou escreva para edisca@edisca.org.br. Para doações livres através da internet, acesse os sistemas Pagseguro ou Paypal.

 


  • Edição O POVO+ Regina Ribeiro
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  • Identidade visual Cristiane Frota
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Fotografia Fernanda Barros
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Série de reportagens apresenta quatro mulheres cujas histórias também contam a história da cidade: Mocinha, Lúcia Simão, Valéria Pinheiro e Dora Andrade — cada uma a sua maneira fez da própria força impulso para transformar o lugar onde vive