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Valéria Pinheiro: ser ponte para a travessia de outras mulheres
Reportagem Seriada

Valéria Pinheiro: ser ponte para a travessia de outras mulheres

Para cruzar as duas cidades que existem em uma Fortaleza atravessada por desigualdades, as pontes, às vezes, são pessoas. Valéria Pinheiro é uma delas. Construir uma travessia segura para outras mulheres foi o que a levou a Ser Ponte e fazer a ligação entre dois mundos separados por "abismos"
Episódio 3

Valéria Pinheiro: ser ponte para a travessia de outras mulheres

Para cruzar as duas cidades que existem em uma Fortaleza atravessada por desigualdades, as pontes, às vezes, são pessoas. Valéria Pinheiro é uma delas. Construir uma travessia segura para outras mulheres foi o que a levou a Ser Ponte e fazer a ligação entre dois mundos separados por "abismos"
Episódio 3
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Pontes servem para dar continuidade ao caminho — e podem ser o único meio de aproximar distâncias ou de sair de um lado e chegar até outro. Para cruzar as duas cidades que existem em uma Fortaleza atravessada por desigualdades, as pontes, às vezes, são pessoas. Valéria Pinheiro é uma delas. Construir uma travessia segura para outras mulheres foi o que a levou a Ser Ponte e fazer a ligação entre dois mundos separados por “abismos”. Como provoca BaianaSystem, ► Diz em que cidade que você se encaixa: cidade alta ou cidade baixa?

É que percepção requer envolvimento — e por isso Valéria está sempre envolvida por gente. É assim como quem busca olhar no olho. Diretora-presidente da ONG Ser Ponte, a pesquisadora começou com uma ação emergencial que deveria durar quatro meses para ajudar famílias vulneráveis durante a pandemia de Covid-19. O projeto de distribuição de renda completa quatro anos em abril.

Mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela diz que se afastou “da Valéria planejadora urbana, que olha para a Cidade pelos próximos 10 anos em grande escala”, e se aproximou “da dona Maria, ali do São Miguel, para que ela tenha o que comer amanhã”.

Valéria Pinheiro, presidente da ONG "Ser Ponte" (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Valéria Pinheiro, presidente da ONG "Ser Ponte"

“Oi, Val, tem um grupo organizando uma coleta de material para doar. Quem está recebendo?”; “Val, pode contar comigo. Minha cunhada montou algumas cestas básicas, queria saber se é possível doar para o projeto”; “Quero ajudar. Pode me incluir nessa lista de doadores”; “Me dê detalhes, quero ajudar como puder”; “Fiquei sabendo do movimento, quero divulgar e contribuir”.

Assim, com a ajuda de doações e voluntariado, a organização chegou a 2024 com 60 famílias chefiadas por mulheres nas periferias da Cidade beneficiadas, um impacto na vida de pelo menos em cerca de 240 pessoas.

Em 2023, foi arrecadado e transferido um montante de R$ 203mil com os recursos obtidos a partir de doações e ações como brechós e venda de produtos da lojinha da ONG. Em média, ao longo do ano, foram beneficiadas 92 famílias por mês com uma quantia mensal de R$ 180, valor que foi elevado para R$ 200 a partir de outubro.

Equipe da ONG Ser Ponte(Foto: Reprodução/Ser Ponte Fortaleza)
Foto: Reprodução/Ser Ponte Fortaleza Equipe da ONG Ser Ponte

Apesar de o apurado parecer muito, desde o fim da pandemia a diminuição de caixa tem afetado a sobrevida do projeto de renda básica: entre fevereiro e dezembro, as doações caíram cerca de 34%. Por esse motivo, foi necessário se despedir dos territórios Moura Brasil, Vila Velha e Lagamar, alguns dos que estiveram desde a primeira doação.

Pela conjuntura, a ONG permaneceu em 60 casas dos territórios Serviluz, Barroso, Raízes da Praia, Caça e Pesca, São Miguel e Sabiaguaba, com um impacto direto na vida de pessoas vulneráveis, carentes de um olhar cuidadoso, distantes ou forçadamente afastadas dos seus direitos mais básicos — entre eles, o direito à cidade. A pandemia acabou, mas elas seguem em isolamento.

Em uma das rodas de conversa realizadas no bairro Praia do Futuro II, o agente territorial Carlão perguntou o que melhorou nesses anos de Ser Ponte. A resposta das mulheres foi que a ONG consegue melhorar a alimentação das crianças, impacta no aprendizado deles, por vezes financiou material escolar, roupa, calçado, garantiu energia elétrica com a quitação de dívidas, evitou despejos ao completar o valor de um aluguel, e continua a fazer a diferença na vida de cada integrante dessas famílias.

Mulheres chefes de família do Raízes da Praia beneficiárias da Ser Ponte(Foto: Reprodução/Ser Ponte Fortaleza)
Foto: Reprodução/Ser Ponte Fortaleza Mulheres chefes de família do Raízes da Praia beneficiárias da Ser Ponte

Mas assim como a existência da Ser Ponte vai além da pandemia, a existência de Valéria Pinheiro também vai além da Ser Ponte.

“A gente não vive sozinho no mundo. A gente está em coletivo desde que nasceu. A gente sobrevive e é alimentado por outras pessoas. A gente é ensinado por outras pessoas, aprende a andar, a tomar banho, a se cuidar por outras pessoas. Então eu não vejo como não sermos comunidade”, analisa.

Valéria morou no bairro Siqueira até os 18 anos, uma periferia muito próxima aos limites da Cidade: “Circulava muito porque meu pai tinha um pequeno comércio e eu conhecia muitas pessoas, fazia entregas. Ficou na minha lembrança as diferenças de precariedade mesmo dentro de um bairro precário”.

O pai de Valéria possuía um pequeno comércio e ela costumava ajudar com as entregas em uma bicicleta(Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal)
Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal O pai de Valéria possuía um pequeno comércio e ela costumava ajudar com as entregas em uma bicicleta

“Eu sou adotada, e isso é muito importante para a minha história. Acredito que isso tem muito a ver com esse caminho que eu escolhi percorrer. Carrego muitas lembranças da infância, mas sempre gostei de ficar muito sozinha. Ficava muito entretida com as minhas próprias coisas, com meu próprio mundo”, recorda.

Passou no vestibular para Direito com 17 anos, curso que escolheu porque “queria fazer alguma coisa por mais Justiça no mundo”. No dia a dia, ficou decepcionada ao perceber que o Direito é um instrumento que, como uma faca, “pode servir para ferir alguém como para dividir o pão”.

“Estando lá dentro eu entendi que esse é um instrumento muito mais usado para cometer injustiças do que o contrário. Mas não desisti, conheci o Centro de Assessoria Jurídica Universitária Popular, o Caju, que é um projeto de extensão que atua em pautas de direito à cidade, e passei a exercitar o conhecimento jurídico na luta. Isso que me segurou na faculdade e é muito base do que eu sou até hoje, foi o começo da minha caminhada de militância em direitos humanos”, conta.

“Saindo da faculdade, fui convidada a trabalhar na ONG Ceará Periferia por conta desse meu percurso no Caju. Já de cara, com 23 anos, coordenei uma campanha por um Plano Diretor participativo, para lutar por um planejamento urbano mais democrático. Então muito nova fui para o terceiro setor e fiquei nessa entidade até 2011, quase 10 anos. Foi uma grande escola, coordenei muitos projetos lá, sempre nesse campo do direito à cidade”, continua.

“De lá, fui fazer o mestrado em Planejamento Urbano na UFRJ e voltei para trabalhar na Universidade, onde eu permaneço até hoje. Trabalhei durante muitos anos no Laboratório de Estudos da Habitação, o Lehab, sempre nesse campo do direito à cidade, do contato direto com movimentos populares, sempre colocando esse conhecimento que a universidade pública nos proporciona a serviço da população, como deve ser”, narra.

Quando consultada pela equipe de reportagem sobre seus horários, Valéria contou que tem acompanhado a mãe, Ozenira Pinheiro, na quimioterapia — ela trata um câncer descoberto em dezembro(Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal)
Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal Quando consultada pela equipe de reportagem sobre seus horários, Valéria contou que tem acompanhado a mãe, Ozenira Pinheiro, na quimioterapia — ela trata um câncer descoberto em dezembro

Em 2020, ela percebeu que as coisas iriam piorar: “Muitíssimo. Eu pensei logo na fome, na falta de trabalho que ia acontecer de maneira muito rápida. Então decidi muito rapidamente chamar pessoas para me ajudarem a sustentar alguma atuação mais emergencial para fazer chegar o básico: comida, álcool em gel, máscara”.

“Os pedidos de ajuda, as histórias, as mortes, as internações chegavam para mim 24 horas, era desesperador”, lembra.

Na última vez que fizeram levantamento, mais de 72% das pessoas que ajudavam a Ser Ponte eram mulheres. “O que é contraditório, porque a gente sabe que a gente recebe menores salários, temos trabalhos mais precários, risco de sermos demitidas, e, mesmo assim, a gente é mais solidária”, opina.

“E é confortável estar rodeada de mulheres, mas ao mesmo tempo tem aquele incômodo, aquela raiva mesmo de 'sim, cadê os homens nessa história? Qual a parte que cabe a eles nesse latifúndio de injustiças?'. São as mulheres, principalmente as mulheres negras, que carregam o maior peso das precariedades”, exclama.

Valéria explica que compreende, hoje, o quanto tudo isso também é estrutural: “Essas pessoas precisam estar vivas para aproveitar essa Cidade, o filho dela precisa estar vivo, precisa sobreviver, precisa se alimentar, receber acesso ao básico”.

“Fortaleza é uma das cidades mais desiguais do mundo, também uma das cidades mais violentas, e esses dados não estão dissociados. A gente tem uma legislação urbana que é referência mundial, a gente sabe o que fazer, o que falta é o compromisso dos poderes públicos de efetivar o que está na legislação. Temos aí o processo de revisão do Plano Diretor atrasadíssimo e com um processo sendo feito de maneira muito questionável”, aponta.

“Há vários instrumentos possíveis de serem aplicados para democratizar o acesso a políticas urbanas. Nós estamos falando de moradia, de mobilidade, de saneamento, de meio ambiente, geração de emprego e renda, participação popular. Tudo isso tem a ver com direito à cidade”, continua.

Valéria Pinheiro, presidente da ONG "Ser Ponte" conhece de perto as diversas realidades das mulheres nas periferias de Fortaleza (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Valéria Pinheiro, presidente da ONG "Ser Ponte" conhece de perto as diversas realidades das mulheres nas periferias de Fortaleza

Valéria acrescenta que “a Cidade é mistura e é importante que se misture, mas isso não é possível com essa política que há décadas tira pessoas pobres de áreas bem infraestruturadas e joga para os limites, às vezes até para fora. Temos o exemplo desses grandes conjuntos habitacionais que sofrem com a incidência do aumento de poderio das facções. Nesse modelo não há cidade”.

 

 

São necessárias muitas mãos para construir uma ponte

“Comer”: essa é uma das atividades básicas mais citadas pelas famílias quando questionadas sobre o que não conseguiriam fazer se a Ser Ponte não existisse.

Um em cada dez brasileiros (9,9%) passou por situação de insegurança alimentar severa entre 2020 e 2022, de acordo com o relatório global "Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Além disso, quase um terço (32,8%) da população do País está incluída nas categorias de insegurança alimentar severa ou moderada, o que equivale a 70,3 milhões de brasileiros. No Ceará, são mais de 2 milhões de cearenses nesta condição, segundo estudo divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan).

Desde abril de 2020, Maria do Socorro Farias, apelidada carinhosamente de Help, atua como agente territorial e liga a Ser Ponte a moradoras do bairro São Miguel, na Grande Fortaleza, comunidade onde vive desde os 10 anos(Foto: Socorro Farias/Acervo pessoal)
Foto: Socorro Farias/Acervo pessoal Desde abril de 2020, Maria do Socorro Farias, apelidada carinhosamente de Help, atua como agente territorial e liga a Ser Ponte a moradoras do bairro São Miguel, na Grande Fortaleza, comunidade onde vive desde os 10 anos

Quatro deles estão na família de Cirlândia Almeida, mais conhecida como Cici, uma das beneficiárias da Ser Ponte: “Eu tenho três filhos, um de 12, outro de 7 e o mais novo, que é autista, de dois anos. No momento eu estou desempregada, faço faxina quando aparece. Na pandemia foi esse dinheiro que ajudou a dar o que comer aos meus filhos, a gente não tinha de onde tirar. Admiro demais o trabalho da Valéria, dela e de todas as mulheres que participam, as agentes, as psicólogas, todas são uma luz na vida da gente”.

“Eu moro aqui há 36 anos e nunca tinha visto um projeto tão forte, são muitas mães sofredores, mães que têm filho envolvido [com o tráfico], mães que estão passando por um momento difícil também. Quando a gente se reúne é muito forte, não tem como, todas as mulheres são muito gratas porque chegou quando a gente estava no fundo do poço. E, às vezes, quando a gente está no fundo do poço, não consegue ver solução”, desabafa.

Para dar conta da demanda, o projeto conta com a atuação de agentes territoriais e as famílias são indicadas pelas lideranças comunitárias.

Desde abril de 2020, Maria do Socorro Farias, apelidada carinhosamente de Help, atua como agente territorial e faz a ponte entre o projeto e é moradora do bairro São Miguel, na Grande Fortaleza, comunidade onde vive desde os 10 anos.

Socorro, que também trabalha na Casa da Mulher Brasileira, recebeu a premiação “Mulher Ponte”, uma proposta de “feminagear” mulheres que são pontes para a travessia de outras mulheres. Além dela, foram homenageadas, também, dona Rosa, do Raízes da Praia, e dona Edna, uma das mães do Curió.

Hoje, aos 53, ela ainda sente as consequências da pandemia e percebe que o perfil das beneficiárias se repete: mulheres negras, mães, chefes de família, desempregadas.

“Já ouvi muitas experiências que me impactaram, que me marcaram muito, mas a primeira vez que eu fui entregar o dinheiro na mão das mulheres foi o dia mais emocionante. A gente estava na pandemia, elas estavam precisando demais. Algumas se emocionaram muito e isso foi uma coisa que me marcou bastante”, lembra.

“Para mim é um crescimento enorme como ser humano, poder acreditar nas pessoas, que ainda existe quem se preocupe com o outro, que se dispõe a cuidar, oferece uma escuta. Acho que essa experiência me tornou uma pessoa melhor e hoje eu vejo o quanto esse trabalho é essencial”, finaliza.

 

   

 

Quer apoiar a Ser Ponte, mas não sabe bem como fazer isso?

Você pode ser ponte de diversas formas: sendo doador, voluntário ou divulgando a ONG. Doar tempo, conhecimento e atenção também é algo bem recebido.

Para tornar-se voluntário ou fazer doação de itens, roupas, materiais ou brinquedos, é só entrar em contato por mensagem no perfil @serpontefortaleza no Instagram e manifestar o seu interesse. O projeto ainda conta com uma lojinha onde é possível adquirir itens como ecobags, blusas, quadros, placas e canecas.

Para doar pelo Pix, a chave é Doar@serponte.org.br
Para doação pelo cartão, basta acessar www.benfeitoria.com/serpontefortaleza
Já por transferência, os dados bancários são esses a seguir: Banco do Brasil C/C | Agência: 1369-2 | Conta corrente: 31.469-2 | CNPJ: 45.009.882/0001-94

 

  • Edição O POVO+ Regina Ribeiro
  • Concepção do projeto Regina Ribeiro
  • Textos Karyne Lane
  • Identidade visual Cristiane Frota
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Fotografia Fernanda Barros
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Fortaleza das Mulheres

Série de reportagens apresenta quatro mulheres cujas histórias também contam a história da cidade: Mocinha, Lúcia Simão, Valéria Pinheiro e Dora Andrade — cada uma a sua maneira fez da própria força impulso para transformar o lugar onde vive