
Nem toda celebração precisa ser barulhenta. Há momentos importantes da vida cuja verdadeira comemoração encontra seu significado na paz, presença, reflexão, simplicidade. Nas emoções internas, enfim. Como uma graça inesperada ou um instante de conexão profunda, sem precisar de alarde ou plateia.
Para nos tocarem, o que algumas histórias pedem de nós é apenas tempo e silêncio. “O milagre de Natal na Serrinha de Santa Maria”, escrita por Bruno Paulino e ilustrada por Carlus Campos, é uma delas.
Neste especial, O POVO+ apresenta um conto em que palavra e imagem se encontram para lembrar que a festa também pode acontecer como a árvore acesa no alto da serrinha: longe do ruído, firme apenas na luz que sustenta.

O milagre nasce de um território real e simbólico: a Serrinha de Santa Maria, em Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará, a 186 quilômetros de Fortaleza.
“É um lugar que tem um imaginário poético muito rico na região”, narra o escritor Bruno Paulino, que é quixeramobinense e conhece bem a vista.
Ele lembra que José de Alencar, “nome basilar do romance brasileiro”, ambienta parte de O sertanejo (1875) nessa geografia, “inclusive com narrativas mirabolantes como as histórias dos bois encantados”.
E se no topo da árvore de Natal brilha uma estrela, no topo da serra acende-se a clareira de um lume verde. É desse lampejo que surge a personagem central do conto, dona Lúcia.
Ela foi inspirada em uma figura real que o autor conheceu anos antes, quando interagiu com moradores da serrinha durante uma expedição entre amigos.
“Era período natalino e ela havia construído uma árvore de Natal toda a partir de garrafas PET recicladas. Os enfeites também eram todos feitos de materiais recicláveis. Aquilo me chamou muito a atenção”, conta.
Bruno puxou conversa e a senhora se mostrou alguém que vivia a própria companhia, sem acesso nem mesmo à internet: “Ela disse que não gostava, que não perdia tempo com nada que não a entretesse, que não fosse recíproco a ela. Mas que não era uma pessoa sozinha e nem infeliz”.
“Preferia, em vez de estar na internet, dar água e comida aos bichos. A casa dela era visitada por vários animais remanescentes da fauna da serrinha. A gente encontrou macacos no quintal dela. Eu fiquei encantado. Uma personagem dessas você não pode perder a possibilidade de um dia transformá-la em uma matéria literária”, descreve.
A narrativa se constrói, então, a partir de gestos, do silêncio e da rotina aparentemente simples. Bruno Paulino associa essa escolha à sua formação espiritual e literária.
Devoto de Santa Teresinha do Menino Jesus, ele se apoia na noção de que “não existe gesto pequeno”. “Nenhuma ação é pequena se a finalidade daquela ação for o amor”, resume.
Soma-se a isso a influência de “um grande mestre da poesia e literatura brasileiras”, Manuel Bandeira: “Eu gosto de observar a poesia do ordinário, do dia a dia, do cotidiano”.
O silêncio, no texto, não é ausência. Para o escritor, é matéria. “Eu gosto de personagens que preenchem as narrativas com silêncios”, afirma.
E acrescenta uma reflexão que atravessa o tempo presente: “Muitas vezes, o silêncio é a resposta. É uma coisa que tem nos faltado hoje, na sociedade pós-industrial. O silêncio é um grande luxo”.
A árvore de Natal feita de materiais recicláveis assume valor simbólico no enredo. “Tem um significado importante de que a gente possa dar importância às coisas desimportantes, como diria o poeta Manuel de Barros. Que a beleza das coisas não está na sua aparente utilidade, mas na importância que a gente dá a elas”, expressa.
Para ele, esse é um símbolo para se pensar o Natal: “O que é importante no período natalino? É uma pergunta que quase todo mundo se faz”.
O questionamento se amplia quando o escritor fala de milagres. Ele recorre a Guimarães Rosa para contemplar que “os milagres acontecem a todo momento” e que “o cotidiano está cheio de pequenos milagres”. O desafio é aprender a vê-los.
A natureza simples, sábia e generosa do povo sertanejo atravessa a narrativa. “Eu sou, sobretudo, apaixonado pela ética do povo sertanejo e pela pureza da sua fé. Quando eu me encontro com um sertanejo, eu nunca sou professor, só sou aluno.”
No centro, o contraste entre tempos e modos de viver o Natal. Um contraponto aos dias atuais: “ruidosos, barulhentos, mercantilizados, expositivos”.
Ao fim da leitura, Bruno espera que o leitor perceba que a vida “não precisa de grandes guinadas, nem de viradas épicas para continuar fazendo sentido”.
“E que, apesar de todos os contratempos, a vida vale muito. Ter essa compreensão de que a vida segue em frente é o grande milagre”, finaliza.

Coube ao ilustrador Carlus Campos traduzir visualmente a narrativa — o que não foi difícil. “O desafio fica fácil quando me encanto com o texto”, revela o experiente artista.
O processo foi conduzido pelo encantamento e a primeira imagem surgiu de imediato: “A casinha de dona Lúcia”.
Uma descrição de Bruno sobre as paredes foi suficiente para conectar a mente de Carlão, como é conhecido, às memórias de casas de interior onde morou na infância.
A partir daí, os traços e as cores vão fluindo num lindo encontro entre palavra e imagem.
Mesmo após décadas ilustrando para o jornal, Carlus ainda vê cada texto como um recomeço.
“Ilustrar um conto é sempre uma experiência nova. No texto literário há mais liberdade e o ilustrador pode trabalhar com subjetividades.”
Para a diretora de jornalismo do O POVO, Ana Naddaf, que participou da concepção do especial, esse “mimo” em forma de narrativa captura o espírito de celebração e renovação da época natalina. O traço autoral de Carlus Campos, por sua vez, “é o laço final deste presente”.
“A escolha foi por um conto na sua melhor essência natalina. Não necessariamente como o clássico de Dickens, com personagem rabugento, nem o fantasioso de Hoffmann, com bonecos e ratos. Mas uma história que viesse do sertão, com cheiro de facheiros, de paredes queimadas de sol, de uma personagem que poderia ser convidada a estar à mesa de Natal conosco”, contempla.
A proposta, acrescenta o editor-chefe de Design, Gil Dicelli, foi “narrar um conto genuinamente nordestino — inédito, regional e profundamente ligado à nossa identidade e ao nosso jeito de celebrar”.
Neste especial, imagem e palavra foram pensadas como gesto de afeto. Texto e ilustração pensados como um presente poético.
Os dois elementos “caminham juntos para contar essa história, enquanto o design costura tudo como um livro”.
É esse encontro que O POVO+ antecipa aos leitores, que poderão pegar e fruir da edição impressa nesta quarta-feira, véspera de Natal.
A seguir, o conto. Um presente aberto com cuidado, feito para ser tocado, lido e, sobretudo, sentido.

Bruno Paulino
Quando lhe perguntavam sobre sua vida de viúva sem filhos, respondia sem hesitar:
— Apesar da solidão, não sou uma pessoa infeliz. Não quero conversa com nada que não me dê atenção. E ocupo meu tempo com o que me olha de volta.
Essa sinceridade sem esforço dava à palavra dela um peso de verdade, era como se dissesse pouco para revelar muito. Mas naquele dezembro havia algo diferente no terreiro. Quem chegasse à porta encontraria, erguida triunfante, a árvore de Natal mais inesperada da Serrinha, talvez de todo o sertão de Quixeramobim.
Era alta, verde de um verde de garrafa reaproveitada, moldada por mãos que entendiam de paciência — cada garrafa cortada e encaixada nas outras, cada laço feito de retalhos, cada filete de luz recolhido de sobras de enfeites antigos, tudo cuidadosamente orquestrado. A árvore brilhava à noite como se tivesse luz própria, quase tímida, mas impossível de ignorar. Era bonita de um jeito particular: não imitava nada, apenas afirmava o que era.
Na véspera de Natal, Lúcia acordou mais cedo, colocou água para ferver, ascendeu o fogareiro, tratou da cachorrinha velha que mancava embaixo do cajueiro, jogou milho para as galinhas, e botou água pros burregos. Não esperava visitas naquela noite; desde que o marido partira, muitos Natais vinham e passavam em silêncio. Mas isso nunca a entristecia.
"É só mais um tempo que a vida dá", dizia. Sobre a mesa pequena, alinhou os presentes que passara semanas preparando. Não eram muitos, mas cada um parecia guardar dentro de si uma história. Com restos de madeira, fizera pequenos presépios; com garrafas, esculpira luminárias; com chapas de alumínio, criara estrelas de cinco pontas. Tudo reciclado, recolhido do chão quando ia a Quixeramobim fazer a feira do mês.
Quando a noite chegou, Lúcia vestiu um vestido vermelho já desbotado, mas bem passado. Acendeu a árvore. A luz verde e dourada refletiu no alpendre da casa, pelas paredes queimadas de sol, pelos olhos dela. E então começou o ritual. Desceu a ladeira devagar. Via as luzes de Quixeramobim, achava bonitos aqueles distantes pontos de luz, era como o céu cheio de estrelas, só que lá embaixo.
Na primeira casa deixou uma luminária feita de garrafa PET, na segunda um presépio pequeno. Bateu de porta em porta, ofereceu seus presentes sem dizer muito. Havia, para cada entrega, um sorriso que durava mais do que qualquer palavra.
Algumas famílias insistiram para que ela entrasse, tomasse café, provasse bolo. Ela respondia com a mesma delicadeza de sempre:
— Hoje não. Hoje a noite é das crianças e do menino Jesus. E da minha árvore me esperando lá em cima.
Ao terminar a ronda pelas casas, Lúcia já sentia o peso nos joelhos. Ela subiu devagar a ladeira. A cada passo, a respiração ficava curta e firme, como se o corpo lembrasse que estava velha e não tinha motivo pra disfarçar.
A árvore da sua casa brilhava ao longe, os pisca-piscas davam um efeito quase mágico, como um "lume verde" aceso no alto da Serrinha de Santa Maria. Vista dali, parecia maior do que de manhã, como se tivesse engordado de luz. Lúcia sorriu de lado, aquele sorriso que não chegava ao rosto inteiro, mas bastava. Chegando, quase na porta, ouviu um choramingo. Parou. O barulho veio debaixo do cajueiro. Aproximou-se devagar. A cachorrinha que mancava, a mais antiga da casa, ergueu apenas uma orelha, preguiçosa. O choro não era dela.
Lúcia afastou um galho com a ponta do pé. Era um filhote de caramelo, magro, os olhos grandes demais para o corpo pequeno. Tremia. Talvez de fome. Tinha um fio de ar preso na garganta, como se ainda pedisse licença para existir.
— Quem te largou aqui, meu filho? — murmurou Lúcia, sem esperar resposta.
O cachorrinho tentou se levantar, tropeçou nas próprias pernas, caiu outra vez. Lúcia suspirou fundo — aquele suspiro curto, seco, que ela soltava quando entendia que não havia escolha, apenas caminho.
Abaixou-se com certa dificuldade, pegou-o no colo. A pele áspera, o cheiro de poeira, o coração batendo depressa contra seu braço. Levou-o para dentro. No terreiro, a árvore continuava acesa, espalhando um brilho verde pelas paredes rachadas. Dentro da casa, Lúcia arrumou um pano velho perto do fogareiro ainda quente.
— Deita aí. É o que posso te dar por enquanto — disse.
O filhote se enroscou no tecido e parou de tremer. Fechou os olhos como quem encontra, enfim, um lar. Lúcia acendeu a última vela da noite. A chama oscilou, iluminando os potes de barro, os retalhos, as luminárias de garrafa. Era tudo simples, irregular, sobrevivente — como ela, como o filhote.
Ficou olhando a árvore pela janela. A luz verde batia no rosto dela, acalmando a casa inteira.
— Vai ver é esse o verdadeiro milagre do Natal — murmurou para si.
Deitou-se na rede, puxou o filhote para o colo. O caramelo suspirou, encaixando-se como quem encontra dono e destino. Lúcia adormeceu, sentindo o peso leve daquele corpo quente.
A noite seguiu mansa. E a vida, teimosa, no dia seguinte recomeçaria.
Em clima de reencontro, atravessamos mais um ano e trazemos histórias de personagens que emocionaram, envolveram e encantaram o público, em reportagens veiculadas nas plataformas do O POVO+. São protagonistas da vida cotidiana que encaram passado, presente e futuro