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IJF: imenso em tamanho, história, números e no que representa para a saúde do Ceará
Reportagem Seriada

IJF: imenso em tamanho, história, números e no que representa para a saúde do Ceará

Gestado em 1936, o gigante "Frotão" reúne o que há de mais completo em termos de estrutura na rede pública de assistência à saúde em Fortaleza. Ao passo em que enfrenta problemas por vezes inerentes a um serviço de alta complexidade, a unidade de nível terciário se consolida como referência e ajuda a formar profissionais com a amplitude e humanização que a população dependente do SUS necessita
Episódio 4

IJF: imenso em tamanho, história, números e no que representa para a saúde do Ceará

Gestado em 1936, o gigante "Frotão" reúne o que há de mais completo em termos de estrutura na rede pública de assistência à saúde em Fortaleza. Ao passo em que enfrenta problemas por vezes inerentes a um serviço de alta complexidade, a unidade de nível terciário se consolida como referência e ajuda a formar profissionais com a amplitude e humanização que a população dependente do SUS necessita Episódio 4
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I, jota, éfe: três letras, uma sigla, milhares de pessoas envolvidas e múltiplos significados para cada uma delas.

Do subsolo ao 8º andar, do bloco administrativo ao estacionamento, do ambulatório no preservado prédio da antiga Assistência Municipal ao moderno edifício do IJF 2, o Instituto Doutor José Frota é uma cidade à parte que acontece tácita no meio do Centro de Fortaleza.

Encarar o gigantesco complexo hospitalar e se entranhar nele — seja como paciente, acompanhante ou observador — é se deparar com uma infinidade de perspectivas sobre um mesmo personagem — um IJF que se personifica na forma de suas histórias e ganha corpo, cérebro, coração, voz.

 

 

Antes do primeiro passo para atravessar a rua Barão do Rio Branco até o número 1816, um giro de 360 graus permite analisar a vizinhança, que se distribui entre funerárias, lanchonetes, restaurantes, farmácias, gráficas, lojas de produtos médicos e hospitalares, estacionamentos, lotérica e casa de apostas — estabelecimentos instalados para atender às demandas de quem vive, trabalha ou precisa do IJF.

Também não faltam opções de escritórios de advocacia especializados em seguros como o DPVAT "Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito, anteriormente Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres (DPVAT)" , auxílio-doença, auxílio-acidente, pensão por morte, seguro de vida, ações trabalhistas, aposentadoria, empréstimo e indenização — o que já diz muito sobre o impacto e a recorrência de acidentes de trânsito ou no ambiente de trabalho que levam vítimas todos os dias a esse complexo hospitalar.

Um pouco mais à frente, na paralela Senador Pompeu, a vista ainda alcança a faculdade de Direito da UFC e as tradicionais caixas d’água que até 1967 abasteciam a Cidade.

Construção do IJF, inaugurado em 1993. O prédio originou-se na esquina de trás em 1936, com a Assistência Municipal de Fortaleza (AMF)(Foto: Arquivo O POVO.Doc)
Foto: Arquivo O POVO.Doc Construção do IJF, inaugurado em 1993. O prédio originou-se na esquina de trás em 1936, com a Assistência Municipal de Fortaleza (AMF)

Já na entrada, fumantes compartilham o semblante cansado e as angústias de visitar ou acompanhar um paciente observados pelas figuras religiosas da capelinha.

No subsolo, após a identificação junto à vigilância, uma fila se forma antes dos guichês do balcão de informações.

Depois de cadastrar a biometria e atravessar a catraca, nunca se sabe o que virá a seguir.

Por ser uma unidade de nível terciário voltada a urgência e emergência, os casos mais complexos estão lá e fazem a fama de “hospital de guerra”.

Os 665 leitos de internação do IJF recebem, além de fortalezenses, pacientes do Interior e de estados vizinhos, que têm à sua disposição mais de 20 especialidades em plantão 24 horas.

Entre elas estão clínica médica, emergencistas, pediatria, cirurgia geral, cirurgia plástica, cirurgia vascular, cirurgia pediátrica, cirurgia bucomaxilofacial, traumatologia, neurocirurgia, anestesiologia, endoscopia digestiva e respiratória, otorrinolaringologia, oftalmologia, terapia intensiva, terapia intensiva pediátrica, radiologia, cirurgia torácica e nefrologia.

Dessas, as mais demandadas para cirurgia de emergência são traumato/ortopedia, cirurgia geral, cirurgia plástica, neurocirurgia, vascular, oftalmologista, bucomaxilofacial, cirurgia pediátrica, cirurgia torácica e otorrinolaringologia.

A estrutura também possui 20 salas de cirurgia, centro de diagnóstico por imagem (radiografia, tomografia, ressonância magnética, hemodinâmica, endoscopia, ultrassonografia, ecocardiografia), laboratório de análises clínicas, central de esterilização de material, banco de sangue, centro de estudos e pesquisas, consultórios e ambulatório, além de áreas administrativas e de materiais.

Divisão dentro da estrutura do IJF

 

Um heliponto de cerca de R$ 3,1 bilhões enfeita (ou enfeia, para alguns) o topo do prédio principal, elemento construído para facilitar o deslocamento de pacientes transportados de helicóptero — mas feito com base em um projeto arquitetônico equivocado.

Reformas não deram jeito e chegaram a ser embargadas após análise do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea/CE).

Enquanto isso, a estrutura segue como uma cobertura de luxo para pombos, urubus e gaviões, além de gerar despesas com manutenção e um sobrepeso na edificação.

Rachadura em pilar no 8º andar do IJF, abaixo do heliponto(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Rachadura em pilar no 8º andar do IJF, abaixo do heliponto

É o que pondera o arquiteto e urbanista José Sales, coordenador do projeto original e do Plano Diretor do IJF, convidado pelo então prefeito Juraci Magalhães para desenhar com sua equipe o roteiro que teve um fim impreciso na mão de outro profissional.

48 técnicos ajudaram a construir o modelo inicial que se tornou referência regional e depois nacional, com setores considerados inéditos quanto à sua inclusão — como a unidade de queimados, o centro de estudos e a residência médica.

Eles não participaram e nem foram consultados, porém, sobre a instalação do equipamento de quase 20 toneladas, como demonstra Sales no primeiro episódio dessa série de reportagens.

Com a pressão sobre os pilares, rachaduras passaram a surgir na edificação, o que preocupa o arquiteto.

“Um equipamento daquele tamanho e complexidade por onde passam milhões de pessoas por ano pode chegar a um estado de estresse inimaginável, e se não houver a manutenção ele entra em colapso”, alerta.

Questionada sobre esse tópico, a assessoria do IJF respondeu que “o heliponto segue em processo de manutenção corretiva e preventiva para a adequação às orientações do serviço aeromédico da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer), da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Governo do Estado (SSPDS), bem como para o realinhamento dos protocolos e processos para o acolhimento de pacientes e custeio do equipamento”.

A nota não menciona detalhes como as despesas com essa estrutura e o pessoal responsável pela manutenção, no entanto.

Entre as perguntas enviadas por esta reportagem à assessoria do hospital, estavam, ainda, questionamentos sobre os materiais e medicamentos mais utilizados e os valores desembolsados mensalmente para pagamento de insumos e pessoal, além de custos diários com a internação de um paciente. Sobre esses pontos, não houve resposta.

 

 

IJF: 88 anos de proteção à vida

O IJF já nasceu com a missão de ser um equipamento focado no atendimento de alta complexidade, caracterizado pelo conjunto de terapias e de procedimentos de elevada especialização.

Se encaixam nessa categoria, de acordo com o Ministério da Saúde, procedimentos que envolvem alta tecnologia e/ou alto custo, como é o caso de traumato-ortopedia e de neurocirurgia — que integram o catálogo de serviços da unidade.

Os cidadãos têm acesso através de duas modalidades: referência ou pronto atendimento de emergência. Na primeira, o usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) é encaminhado por outra unidade, como, por exemplo, as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou os hospitais da rede Frotinha. Já na segunda, a população tem acesso ao equipamento por meio do serviço de urgência. 

O significado das cores no edifício do IJF

Para a médica Airtes Vitoriano, membro do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec/CE), essa casa de saúde é “fundamental para o Estado, pois não há nenhuma instituição pública ou privada que tenha o atendimento que se encontra lá”.

“A cidade cresceu, a Fortaleza de 30, 50 anos atrás não é a de hoje. Aumenta o número de meios de transporte, aumenta a sobrecarga de cuidado das mulheres que nem sempre conseguem dar conta de casa e filhos com 100% de atenção, aumenta a negligência com pessoas idosas, a violência das pessoas entre si, aumenta a pressa para se deslocar de um lugar para outro”, elenca.

Como problemáticas, Airtes aponta que “há problema de aposentadoria de servidores, haja vista que os ingressantes no primeiro concurso, o de 1994 (ano seguinte à inauguração do hospital), já estão nessa fase. Nos últimos anos, o número de concursos públicos não tem sido suficiente para suprir a demanda cada vez maior de servidores nos hospitais”.

Quantitativos do IJF

 

Por outro lado, a médica ressalta importantes serviços prestados à população cearense como os desempenhados pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ceatox) do IJF, que completou 40 anos em 2024.

Trata-se do único do Estado e serve de referência em todo o País pela qualidade na assistência às vítimas de acidentes com animais peçonhentos (como escorpiões e cobras) e intoxicações agudas, acidentais ou autoprovocadas, causadas por medicamentos, produtos de limpeza, substâncias químicas, pesticidas, agrotóxicos e até plantas.

A equipe é composta por médicos, enfermeiros, farmacêuticos e biólogo, com conhecimentos compartilhados para o atendimento no hospital e também remoto, para toda a população e também para profissionais da saúde de outros hospitais da Capital e do Interior, por telefone (85 3255 5012) e WhatsApp (85 98439 7494).

Principais atendimentos do IJF

 

Outro destaque é o trabalho da Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cihdott), que encara a difícil tarefa de noticiar o óbito — uma atividade cuidadosa que tornou o núcleo reconhecido pelo maior número de efetivação de doadores de órgãos do Brasil.

“É uma equipe profissional especializada em fazer esse contato, em esclarecer todas as dúvidas, explicar e fazer esse diálogo acontecer da maneira mais acolhedora possível, com respeito, escuta e paciência”, explicita a enfermeira Aline Braga, coordenadora da comissão.

O processo acontece poucas horas após a confirmação do óbito por parada cardiorrespiratória ou morte encefálica e, através dele, pessoas na fila de transplante de córneas, rins, fígado, coração, pulmão e pâncreas recebem uma chance de continuar a viver.

A enfermeira Aline Braga é coordenadora da Comissão Intra Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cihdott) do IJF(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A enfermeira Aline Braga é coordenadora da Comissão Intra Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cihdott) do IJF

“Trata-se de um trabalho difícil porque você comunica muito sofrimento, é uma notícia muito brusca. Muitas vezes se trata de uma pessoa que saiu para trabalhar numa moto e sofreu um acidente, levou um tiro num assalto, estava tranquila, correndo, praticando um esporte e tudo aconteceu”, lembra.

Além disso, o IJF se tornou uma das principais instituições de ensino, contribuindo na formação de novos profissionais, não apenas médicos, e se consolidando como o maior hospital do Ceará, com a estrutura mais completa em termos de número de leitos, equipe multidisciplinar, laboratórios e centros cirúrgicos, o que o faz ser esse gigante — também conhecido como Frotão.

É o que salienta o médico radiologista Leonardo Alcântara, membro da diretoria do Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec/CE), que também evidencia os muitos problemas do Instituto debatidos e combatidos pela entidade.

 

 

“O sindicato defende não apenas causas que envolvem o trabalho da categoria, mas também a luta por uma saúde de qualidade à população que depende do SUS. Sendo o IJF nosso principal hospital público, estamos constantemente acompanhando tudo o que acontece”, aponta.

Uma das problemáticas mais recorrentes, conforme o médico, é o atraso de pagamento dos médicos que atuam por meio de cooperativas de serviços especializados, como anestesiologistas e emergencistas.

“Recentemente alertamos sobre a possível descontinuidade de anestesiologistas por falta de pagamento. Por muitas vezes tivemos que intervir, enviando ofícios e realizando reuniões com a superintendência do IJF para cobrar a regularização dos pagamentos às cooperativas para que os serviços à população não fossem interrompidos”, indica.

Radiografia de bebê engasgado com metal de pregador de roupas no setor de endoscopia do IJF(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Radiografia de bebê engasgado com metal de pregador de roupas no setor de endoscopia do IJF

Além disso, outro problema constante citado não apenas pelo titular do Simec, mas quase unanimemente, é a falta de insumos básicos, próteses e medicamentos: “Também recentemente, fizemos uma campanha para chamar atenção da população sobre a escassez desses insumos, como luvas, esparadrapos, analgésicos, e como esse problema, que vem se arrastando pelo menos desde 2022, interfere na realização de cirurgias”.

“Fizemos uma mobilização em frente ao IJF com cartazes e entrega de panfletos para a população tomar conhecimento sobre essa situação e, consequentemente, entender a demora para a realização de procedimentos. Estamos aguardando um posicionamento da instituição em relação às medidas que estão sendo implantadas para garantir o fornecimento desses materiais”, diz.

Alcântara ratifica que se trata de um hospital de grande porte de nível terciário projetado para atender o perfil de alta complexidade, mas que, por outro lado, “tem assistido a um aumento de atendimento de nível secundário, ou seja, de média complexidade, nos últimos anos”.

Fila durante troca de acompanhantes no IJF(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Fila durante troca de acompanhantes no IJF

A causa principal, de acordo com o médico, são as reformas nos Frotinhas: “O Frotinha de Messejana passou quatro anos fechado para uma reforma e o IJF estava absorvendo essa demanda, o que não é o ideal”.

Em relação à formação, o presidente do Simec assevera o papel relevante desse complexo hospitalar na troca de conhecimentos entre médicos e outras categorias: “O hospital possui programas de residência em diversas especialidades, como medicina de emergência, traumatologia, cirurgia geral, anestesiologia, medicina intensiva, neurocirurgia, ortopedia, radiologia e diagnóstico por imagem”.

“Nela, os residentes têm a oportunidade de atuar em um grande centro de emergência, aprendendo na prática do dia a dia e aprimorando técnicas com grandes profissionais renomados, além de participarem de pesquisas originais que têm o IJF como fonte, com estudos publicados em revistas científicas e utilizados como referência em diversos casos”, sublinha.

 

 

Olhar humanizado e a dimensão da mente em um cotidiano de vulnerabilidades

Cerca de 3 mil estudantes participam das turmas de estágio e internato (medicina) acadêmico do Instituto Doutor José Frota por ano, além de residência em diversas áreas da saúde.

Por ser referência no socorro aos pacientes, as vagas são procuradas pro estudantes de todo o País, que buscam a troca de conhecimento com os profissionais do hospital e a experiência única na rotina de uma das maiores emergências do Brasil.

Todos eles transitam por salas e corredores para participar de aulas, palestras, encontros e acompanhar procedimentos de enfermagem, farmácia, fisioterapia, nutrição, serviço social, psicologia, odontologia e outros — uma experiência que pode mudar a perspectiva de muitos desses profissionais.

Quem atesta essa proporção é a psicóloga Adriane de Sousa, residente no IJF, que, entre uma atividade e outra, compartilha reflexões sobre a dimensão da mente no cotidiano de vulnerabilidades que o hospital encara.

A psicóloga Adriane de Sousa faz parte da residência multiprofissional do IJF e, entre uma atividade e outra, compartilha reflexões sobre a dimensão da mente no cotidiano de vulnerabilidades que o hospital encara(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A psicóloga Adriane de Sousa faz parte da residência multiprofissional do IJF e, entre uma atividade e outra, compartilha reflexões sobre a dimensão da mente no cotidiano de vulnerabilidades que o hospital encara

“Fazer parte desse hospital é uma experiência muito rica, a gente passa por várias vivências. E dentro do campo da psicologia é um mundo, né? Porque a gente lida desde situações mais simples, no sentido de uma resolução mais palpável, que a gente consegue deixar bem desenhadinho com o paciente intervenções e potencializar encaminhamentos para fora daqui, até situações mais complexas de violência, vulnerabilidade, tentativas de suicídio”, resume.

A experiência é diferente do que Adriane estava acostumada a lidar no dia a dia como psicoterapeuta infantil, mas o primeiro dos dois anos de residência já lhe têm ensinado muito: “A gente consegue ter uma experiência muito ampla e múltiplas possibilidades de intervenção, de perceber diversos setores da sociedade que acabam vindo para cá”.

“Aqui eu sou muito desafiada. Acho que nunca me coloquei tanto para estudar. O cotidiano nos instiga a oferecer o melhor para o paciente, alcançar o máximo de possibilidades para uma resolução do caso. E pensar sempre que, depois que sai daqui, onde ele recebe o máximo de recurso que a gente pode oferecer, esse paciente vai para a rede. Então pensar em estratégias e nesse acompanhamento após a internação também”, detalha.

Como já era a expectativa da psicóloga, “o perfil de paciente do IJF é um perfil traumático”: “Então o contato inicial que a gente consegue fazer com ele e com os familiares é muito significativo. E à medida que o tempo passa, eu percebo mais o quanto esse trabalho da psicologia aqui dentro é importante. Não só da nossa área, mas de todas as outras. Isso é algo que nós, residentes, compartilhamos muito. De chegar e olhar o paciente, sentar e conversar, pensar em estratégias observando todas essas várias facetas do sujeito”.

Para Adriane, enquanto psicóloga, o que mais mexe com as emoções “é a sensação de impotência diante de alguns casos”.

“Porque há momentos em que a gente realmente não tem o que fazer. Aí dá aquela angústia. Tem casos de pessoas em situação de rua, por exemplo, que você acessa a rede inteira, revira, tenta acessar a família, mas fica aquela sensação de que poderia ter feito mais”, expõe.

Os casos que mais mobilizam a psicóloga Adriane de Sousa, residente do IJF, são os que envolvem pessoas em situação de rua(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Os casos que mais mobilizam a psicóloga Adriane de Sousa, residente do IJF, são os que envolvem pessoas em situação de rua

E reflete: “É acessar esse lado humano de que nós temos um limite e só pode ir até ‘aqui’. Eu só posso fazer isso aqui, é o que eu tenho. E que isso seja o melhor para o paciente, oferecer aquilo que, dentro das possibilidades de cada contexto, seja o melhor”.

O que foi um “baque inicial” no começo, hoje a residente descreve como um “amadurecimento”.

“O campo da saúde tem muitas fragilidades de articulação, isso não é só no IJF. E o acesso às pessoas dentro das suas individualidades e singularidades é algo muito delicado e complexo. Os casos que mais me mobilizam, por exemplo, são casos de pacientes em situação de rua. Muitas vezes são pessoas que vêm de muita violência, privação de muitos recursos. São casos que exigem muitas participações e interlocuções”, retrata.

A psicóloga Adriane de Souza é residente no IJF e compartilha reflexões sobre a dimensão da mente no cotidiano de vulnerabilidades que o hospital se depara (Samuel Setubal/O POVO)

“O IJF sempre foi uma referência para mim e fazer parte desse hospital é uma experiência muito rica. Aqui é uma grande escola. Dentro do campo da psicologia, então, é um mundo” — Adriane

Assim como outros profissionais que se dedicam dias e noites dentro do hospital, Adriane, que reside temporariamente nele, observa que o IJF é um retrato da sociedade.

“Com o passar do tempo a gente vai percebendo que a nossa sociedade está ficando mais violenta, mais desumana. E a gente atesta isso pela qualidade dos casos que chegam aqui. A gente precisa evoluir muito enquanto sociedade, e estar aqui dentro também nos proporciona essas reflexões. O IJF muda nossa perspectiva sobre as coisas. Aqui é uma grande escola, eu gosto muito de estar aqui”, declara.

Estar em contato com a realidade dos pacientes nesse hospital emociona a psicóloga e, na avaliação dela, contribui para a formação de um profissional de olhar mais humanizado: “São pessoas que têm necessidade de atenção e quando você começa a desdobrar questões dela, você entende que são muitos atravessamentos e eles deixam implicações significativas”.

“Isso nos faz desenvolver um olhar de humanidade, de compreender melhor o que levou aquele sujeito àquela condição, desde as implicações internas às externas. Porque às vezes nós temos uma tendência de culpar muito a vítima, sendo que o contexto dela é extremamente privativo de direitos, é um ambiente violento, ela cresceu sem possibilidades”, finaliza.

 

 

“IJF é indispensável para a formação dos profissionais da área da saúde”

Além de se destacar no ensino, o Instituto Doutor José Frota abriga profissionais que desenvolvem uma série de pesquisas nas mais diversas áreas da saúde — o que torna o hospital referência, também, em pesquisa, desenvolvimento e difusão de conhecimento técnico e científico, assim como na formulação e gestão de políticas públicas.

A Assessoria do Centro de Estudos e Pesquisas (Cepesq/IJF) é responsável pelo acompanhamento das ações de educação, por meio de programas de estágios e internato acadêmicos, mantidos em convênio com instituições públicas e privadas, e residências médicas e multiprofissionais, com seleções públicas e recebimento de bolsas conforme regulamentação.

O setor também coordena as ações de divulgação científica, com a publicação de livros, revistas, guias e eventos.

Estudantes na biblioteca do centro de pesquisas do IJF. Na parede, fotografias dos diretores do hospital (Dr. José Frota no canto superior esquerdo)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Estudantes na biblioteca do centro de pesquisas do IJF. Na parede, fotografias dos diretores do hospital (Dr. José Frota no canto superior esquerdo)

Uma das pesquisas mais conhecidas e com reconhecimento internacional é sobre o uso da pele de tilápia para o tratamento de queimaduras, coordenada pelo professor Odorico de Moraes, docente do departamento de fisiologia e farmacologia e diretor do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (UFC), e pelo médico Edmar Maciel, pesquisador do NPDM e presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ).

O estudo inédito e bem sucedido no auxílio à regeneração do tecido humano é uma alternativa menos dolorosa ao tratamento habitual oferecido pelos centros de queimados da rede pública do País, à base de sulfadiazina de prata.

Pioneira, a pesquisa tem sido aplicada desde 2016 e chegou a ser mencionada na famosa série americana Grey’s Anatomy (Anatomia de Grey), além de outros seriados médicos estrangeiros como The Resident, Dr. House, C.S.I NY e The Good Doctor que a apresentaram como um inovador procedimento brasileiro.

Equipe discute sobre cirurgia antes de iniciar o procedimento com um paciente queimado(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Equipe discute sobre cirurgia antes de iniciar o procedimento com um paciente queimado

A UFC, aliás, é uma das principais instituições de ensino parceiras do IJF no desenvolvimento de pesquisas que ajudam a aprimorar o campo da ciência e saúde em todo o Ceará.

“Trata-se de uma espécie de termômetro epidemiológico da saúde em nosso Estado”. Assim define o IJF o médico geriatra João Macedo Coelho Filho, diretor da Faculdade de Medicina da UFC.

Isso porque, nas palavras de Macedo, “é o principal hospital na área de medicina de urgência do Ceará, uma unidade de referência e de grande volume de atendimentos em situações agudas”.

O médico Dr. João Macedo Coelho é diretor da Faculdade de Medicina da UFC e docente da instituição desde 1991(Foto: Viktor Braga/UFC)
Foto: Viktor Braga/UFC O médico Dr. João Macedo Coelho é diretor da Faculdade de Medicina da UFC e docente da instituição desde 1991

“Pode, portanto, fornecer informações importantes para a tomada de decisões na saúde, incluindo a implementação de políticas de prevenção para uma série de agravos, notadamente aqueles ligados à violência urbana”, avalia.

Daí a relevância da troca entre universidade e IJF: “O que acontece no hospital pode inspirar pesquisas acadêmicas e essas pesquisas, por sua vez, podem contribuir para a solução de problemas de saúde. Isso é facilitado pelo fato de muitos docentes e pesquisadores dos cursos de saúde serem também profissionais do IJF”.

O docente e diretor da Famed avalia que “o estágio no IJF é indispensável para a formação dos profissionais da área da saúde, pois essa instituição é única quanto aos procedimentos que realizam, ao perfil dos pacientes atendidos e à multiplicidade de especialistas que nele atuam”.

Vista da sacada em um dos quartos da residência médica do Instituto Doutor José Frota com vista para o IJF 2 e a cidade(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Vista da sacada em um dos quartos da residência médica do Instituto Doutor José Frota com vista para o IJF 2 e a cidade

“Os nossos estudantes estagiam no IJF durante a graduação e na pós-graduação (Residências Médica e Multiprofissional). Não se pode formar um profissional de saúde sem a experiência de passagem e treinamento no IJF”, assegura.

Conforme sinaliza o professor, “a vocação primordial do IJF é a de ser um grande centro de excelência em medicina de urgência, o que envolve ter toda uma estrutura para a realização dos procedimentos mais complexos e também ser um centro de inovação e formação de profissionais no campo da urgência e emergência”.

“Quando se fala em ser de referência, entende-se como necessária a existência de um sistema com unidades de urgência regionais, visto que nenhum hospital central, por maior e mais estruturado que seja, pode atender toda a demanda”, adiciona.

Centro cirúrgico do IJF com máquina moderna que auxilia em procedimentos como cateterismo(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Centro cirúrgico do IJF com máquina moderna que auxilia em procedimentos como cateterismo

Com relação aos desafios que uma instituição dessa magnitude tem a enfrentar, o diretor acrescenta que o “financiamento é sempre um desafio na saúde, notadamente em se tratando de um hospital do porte do IJF”.

“Por acabar tendo uma abrangência estadual, discute-se se seu financiamento não haveria de ser assumido também pelas esferas estadual e federal, afinal, pela sua essencialidade, não pode estar sujeito à insuficiência orçamentária”, alerta.

 

 

“Não adianta ter o melhor médico do mundo se não houver uma boa equipe por trás”

A fisioterapeuta Maria Cira de Abreu Melo está na equipe do IJF “desde a época em que era lá embaixo (na Assistência Municipal)”: “Nós tínhamos uma salinha de ambulatório, nossa equipe era miudinha”.

Ela auxilia na recuperação de pacientes vítimas de queimaduras graves e foi esse trabalho que a levou a fundar, junto do médico Edmar Maciel (cirurgião plástico que foi diretor da unidade de queimados e um dos pioneiros no estudo com uso da pele de tilápia no tratamento de queimaduras), o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ).

Com mais de 30 anos de experiência, a fisioterapeuta recorda das campanhas organizadas com o intuito de conscientizar a população fortalezense da existência de um lugar apropriado para esse tipo de tratamento.

A fisioterapeuta Maria Cira de Abreu Melo está na equipe do IJF desde os anos 1990(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A fisioterapeuta Maria Cira de Abreu Melo está na equipe do IJF desde os anos 1990

“Antes essas pessoas se queimavam e eram atendidas em farmácias ou se tratavam em casa mesmo, por vezes colocando substâncias inapropriadas que pioravam o quadro e até evoluíam para algo bem mais grave. Com as campanhas, elas passaram a conhecer o centro de queimados, um local apropriado e de excelência para tratar das consequências daquele acidente”, relata.

Nessa época, Cira lembra que a maioria dos pacientes queimados já era composta por pessoas de baixa renda: “Era comum que a comida fosse feita em fogareiros ou lugares inadequados, então as crianças vinham sem supervisão e batiam nas panelas sem querer. Eram muitos casos desse tipo”.

“Foi quando nós começamos a campanha de prevenção de queimaduras, fomos para as periferias, escolas públicas, pontos de ônibus, terminais”, rememora.

A fisioterapeuta Maria Cira de Abreu Melo foi uma das fundadoras do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) junto com o médico Edmar Maciel, com quem construiu a primeira sala para acolhimento de crianças com queimaduras na fisioterapia(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A fisioterapeuta Maria Cira de Abreu Melo foi uma das fundadoras do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) junto com o médico Edmar Maciel, com quem construiu a primeira sala para acolhimento de crianças com queimaduras na fisioterapia

Quando o prédio do IJF foi construído já com o projeto de um andar inteiro dedicado ao tratamento de queimados, a fisioterapeuta reivindicou que houvesse uma sala voltada para a terapia ocupacional.

“Porque esse trabalho aliado à fisioterapia recupera o paciente mais rápido. Um complementa o outro. Essa sala (olha em volta e aponta) foi montada com brinquedos dos meus filhos e dos filhos do doutor Edmar. Como resultado das campanhas, o que aconteceu foi que o número de pacientes do CTQ não diminuiu, e sim aumentou, porque as pessoas passaram a conhecer esse nosso serviço”, ratifica.

Cira narra: “A primeira coisa que digo aos meus pacientes que chegam sem querer se mexer é ‘olha, você não está doente. Você está com uma queimadura. Agora, se você não quiser se mexer e só ficar deitado em cima desse colchão de plástico, aí sim, além de queimado, você vai adoecer’”.

Com mais de 30 anos de experiência, a fisioterapeuta Cira Abreu recorda das campanhas organizadas com o intuito de conscientizar a população fortalezense da existência de um lugar apropriado para esse tipo de tratamento(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Com mais de 30 anos de experiência, a fisioterapeuta Cira Abreu recorda das campanhas organizadas com o intuito de conscientizar a população fortalezense da existência de um lugar apropriado para esse tipo de tratamento

“É muito tempo de recuperação, entende? Tem uma paciente aqui, a Fernanda, que queimou o braço quando era criança, com 10 anos, numa experiência que ela estava fazendo na escola. Hoje a Fernanda já terminou o mestrado, vai iniciar o doutorado, e se você perguntar quantas cirurgias ela já fez, já perdeu foi a conta. Porque tem que ficar fazendo cirurgia reparadora, as cicatrizes acabam afetando alguns movimentos. Isso mexe com a autoestima, com a funcionalidade. Daí a importância da fisioterapia”, pontua.

Sozinho, porém, esse trabalho não surte tanto efeito. Na opinião de Cira, a equipe inteira precisa atuar em conjunto de maneira integrada pelo paciente.

“Nossa equipe é muito boa, sempre procuramos dar o nosso melhor, somos como uma família. Não adianta você ter o melhor médico do mundo se não tiver 50 pessoas por trás. Porque a cirurgia dele não vai ter resultado se não tiver um corpo de enfermagem para cuidar no leito, um bom nutricionista para pensar nas refeições do paciente, uma boa equipe de limpeza para assegurar que as bactérias que estão no chão não se espalhem”, defende.

A fisioterapeuta Cira Abreu é uma servidora antiga do IJF e narra o cotidiano da recuperação no setor de tratamento de queimados do hospital (Samuel Setubal/O POVO)

“Não adianta o melhor médico do mundo se não tiver um corpo de enfermagem no leito, um bom nutricionista nas refeições, uma boa equipe de limpeza para assegurar que as bactérias que estão no chão não se espalhem” — Cira

“A gente vira um apoio para essas pessoas que estão traumatizadas diante do acidente. As mães choram muito, se sentem culpadas, é muito difícil ver o desespero de uma criança. Você sabe o que é uma mãe acompanhar o filho no banho anestésico e ele ficar chorando, agarrado com ela, pedindo para não sentir dor? E, diferente do adulto, a gente precisa que tenha alguém nos auxiliando com a criança. Mas a gente vê elas desabando”, descreve.

E conclui, com os olhos marejados a desfazer seu sutil delineado: “Por outro lado, a gente também vibra pela recuperação do paciente. Ontem mesmo eu botei uma criança para andar. Um trabalho em que você se envolve realmente com aquilo que você está fazendo é mais fácil. Segundo meu pai, tudo aquilo que você faz com amor, a margem de erro é bem miudinha. Mas quando você faz com o nariz arrebitado, achando que sabe de tudo, é bem maior”.

 


 

No quinto e último episódio dessa série de reportagens sobre o Instituto Doutor José Frota (IJF), O POVO+ entrevista o cirurgião e traumatologista bucomaxilofacial José Maria Sampaio Menezes Junior, superintendente do hospital, sobre questões como funcionamento, segurança, vulnerabilidades e planos dessa casa de saúde.

 


"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

 

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