Aviso: esta reportagem não utiliza imagens fortes, mas o texto possui trechos que tratam de violência e seu conteúdo pode ser sensível para algumas pessoas.
Sirenes de ambulância, cheiro de álcool, olhares apreensivos, corpos que se seguram com firmeza nas chances e outros que tentam não sucumbir diante das preocupações. Respeitado, mas, sobretudo, temido — afinal todos estão sujeitos a um dia estar na pele de um paciente ou acompanhante —, o Instituto Doutor José Frota (IJF) é um reflexo da dinâmica urbana que o cerca.
Hospital público de nível terciário — de maior porte e complexidade que os demais —, os leitos e corredores desse complexo hospitalar são igualmente complexos: recebem o motociclista entregador de delivery politraumatizado em um acidente de trânsito, a dona de casa que sofreu uma queimadura grave enquanto realizava trabalhos domésticos, o adolescente intoxicado após uma tentativa de suicídio, a criança engasgada com uma miçanga, o idoso que caiu da rede e fraturou o fêmur.
De Assistência Municipal a Frotão, o IJF acompanhou momentos importantes no Ceará — como o crescimento da Grande Fortaleza, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), endemias, epidemias e pandemias, diferentes administrações públicas.
Com 24 horas de proteção à vida e chamado pelo nome do médico que lhe emprestou esse lema, consolidou-se como o maior centro médico de urgência e emergência do Estado, referência no Norte e Nordeste no socorro às vítimas de traumas de alta complexidade como fraturas múltiplas, lesões vasculares e neurológicas graves, queimaduras e intoxicações.
Mas se no passado a chegada de indústrias e automóveis motivaram um aumento no fluxo de atendimentos oriundos da Capital e de outros municípios cearenses, hoje a saúde é atravessada pelo aumento da violência urbana.
Todas as visitas que a equipe do O POVO+ fez durante esta série de reportagens comprovaram isso.
Numa delas, em meio ao movimento frenético de ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192) e de prefeituras de outras cidades, um jovem motociclista chegava com o capacete em punho e pisando em falso ainda com a mochila do aplicativo de entrega de comida nas costas.
Acidente de moto por imprudência no trânsito devido à pressa para chegar o mais rápido possível com o pedido, segundo admitiu ele próprio.
O jovem entregador entra para uma estatística daqueles afetados pela tragédia de circunstância inesperada ou um instante irresponsável: 70% das ocorrências de trânsito atendidas no hospital envolvem motociclistas.
Na ala infantil, ao atravessar a passarela e entrar no IJF 2, Gersilene Rodrigues acompanhava a filha Lara Sophie, de 10 anos, que havia acabado de sair da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) após passar por uma cirurgia para amputar a perna.
A menina estava com o avô em uma moto quando os dois foram atingidos por uma viatura da Polícia Militar do Ceará (PMCE) que atendia a uma ocorrência.
O acidente, que aconteceu em Caucaia e teve grande repercussão local, ocorreu no dia 12 de agosto, véspera do aniversário de Sophie.
Mesmo assustada, Gersilene se esforça para entender e acompanhar todos os procedimentos, pois sua vontade de voltar para casa só não é maior que a de ver a filha bem.
“Eu tento passar força para ela, conversar, mostro vídeos de crianças que vivem normalmente com a prótese, correm, andam de bicicleta. Ninguém queria que isso acontecesse, mas a vida dela é o mais importante. A gente tem muita fé em Deus e sabe que enquanto a gente tem essa luta nossa, muita gente aqui dentro tem lutas ainda maiores”, diz.
Outro caso recente que repercutiu localmente e pôde ser atestado pela reportagem foi o da bebê de 11 meses alvejada na cabeça durante um tiroteio no bairro Joaquim Távora, em coma na UTI do IJF desde o dia do ocorrido, em 14 de junho, quando tinha 9 meses.
Para lá também foram levadas as vítimas — 9 crianças e adolescentes — lesionadas durante tentativa de chacina que aconteceu uma semana depois, em 21 de junho, numa areninha do bairro Barroso.
Basta uma mudança de dia de semana, a combinação entre data de pagamento e sexta-feira, um evento de grande porte na Cidade (ou mais de um, como Fortal e Festival Hallelluya, que aconteceram simultaneamente em julho), um jogo de futebol como Clássico-Rei — de repente, começa a chegar uma ambulância atrás da outra e a corrida contra o tempo invade porta adentro.
E assim acontece, como narram enfermeiras e técnicas em enfermagem no grande e silencioso salão de onde acompanham e protegem a vida dessas pequenas e vulneráveis pessoas.
Mais adiante, tornou-se comum ver, entre um corredor e outro, pessoas com algemas presas à maca, guardas municipais que transitam e policiais militares que fazem a escolta de pacientes provenientes do sistema prisional.
O cenário é tão preocupante que o próprio refeitório do IJF foi palco de um assassinato brutal em abril deste ano, o que evidencia que essa unidade não fica de fora dos problemas relacionados à segurança pública.
Na época, representantes da Prefeitura e do Governo do Estado trocaram críticas e muito se discutiu sobre a responsabilidade do Instituto, mostrando que ele também se tornou alvo de uma espécie de “exploração política”.
Enquanto os gestores trocavam farpas, além da família da vítima — Francisco Mizael, de 29 anos —, o episódio traumatizou os mais de 4 mil funcionários que fazem essa pequena grande cidade funcionar — entre servidores efetivos e prestadores de serviços terceirizados.
Entre médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, nutricionistas e outros, são esses profissionais que também recebem, cotidianamente, mulheres vítimas de violência doméstica, pacientes agredidas por envolvimento com o tráfico de drogas ou por viverem em território de disputa entre facções criminosas.
Com atendimento totalmente gratuito e plantão permanente para casos de extrema gravidade, o IJF recebe pacientes por demanda espontânea ou encaminhamento dos órgãos de regulação de leitos municipal e estadual.
Por isso a unidade acolhe, ainda, pessoas em situação de rua, enfermos que chegam desacordados, confusos ou sem documentação.
É aí que entra o trabalho dos assistentes sociais da unidade que, dentre uma quantidade enorme de outras funções, ajudam a localizar familiares e a encontrar um destino onde os pacientes possam continuar seu tratamento.
Os dados levantados pelo núcleo, aliás, também servem de orientação para a formulação e promoção de políticas públicas, por isso são fornecidos a delegacias, promotorias e outros órgãos que atuam junto a pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.
“Nem sempre o trauma se encerra no trauma. São muitas histórias em que a pessoa não pode confiar de voltar para casa. É a saúde atravessada pela violência”, resume a assistente social Pâmela Santos, do Núcleo de Serviço Social do hospital.
Ela dá o exemplo de um paciente de Maracanaú, que precisava pegar as medicações no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em um bairro que ele não podia mais visitar por conta de ameaças de morte: “Aí a gente atualizou as receitas por aqui para ele pegar no território mais perto do abrigo onde ele ia ficar”.
“Muitas vezes não existe um suporte familiar, o paciente sai daqui e não tem acesso a nenhuma renda, nenhum trabalho. São pessoas que vivem em situação de extrema pobreza, condições de moradia precárias, sem rede de apoio nenhuma. É a vulnerabilidade no sentido realmente da sobrevivência”, expõe.
Após o caso Mizael, em articulação com o Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde), o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) convocou representantes do IJF, da Prefeitura de Fortaleza, da segurança municipal, da Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) e da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) para cobrar a efetivação de ações que garantam a segurança de pacientes, visitantes e profissionais que atuam na unidade de saúde.
Em dezembro de 2023, o Ministério Público já havia recomendado que a gestão adotasse medidas para aumentar a segurança do equipamento. Uma vistoria no mês anterior constatou, ainda, carência de pessoal e o afastamento de profissionais para tratar da saúde mental.
Durante o encontro de abril foi exposta a atual situação do hospital e a necessidade de melhorias emergenciais em diversas áreas, como maior controle no acesso, intervenções físicas para instalação de equipamentos de vigilância (como câmeras, por exemplo), maior quantidade de guardas municipais e incremento de forças de segurança dentro da unidade hospitalar.
Para se chegar a soluções mais concretas, ficou definida, na reunião, a criação de uma comissão interinstitucional para aprofundar o tema e elaborar um plano de ação que envolva questões de segurança, saúde, vigilância e fluxo de atendimento, especialmente no que se refere à presença de pacientes custodiados na unidade de saúde.
A ideia da comissão é entender por que existe demora nas transferências e liberações de pacientes sob tutela do sistema prisional, mesmo quando o tratamento de saúde não demanda tanto tempo.
Em maio, foi a vez do problema de desabastecimento de medicamentos e insumos entrar em pauta. De acordo com denúncias recebidas pelo MP do Ceará, essa situação tem sido recorrente no IJF, ocasionando à população prejuízos no fluxo de atendimento, aumento do tempo de internação e adiamentos de cirurgias.
“O IJF é uma unidade muito importante para assistência aos pacientes. É constante o hospital responder que o desabastecimento na farmácia é pontual, pois o reabastecimento é dinâmico. Entretanto, desde 2021, recebemos reclamações frequentes de desabastecimento, como falta de dipirona, de algodão, de álcool em gel, desde os itens mais básicos até os medicamentos mais importantes, para assistência aos casos mais complexos”, sinaliza a promotora de Justiça Ana Cláudia Uchoa.
Ao O POVO+, a promotora explica que o MP atua em defesa da saúde pública e do SUS, por isso recebe muitas denúncias e reclamações contra hospitais, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e postos de saúde.
“De dois anos para cá tem chegado muitas reclamações contra o IJF, tanto de servidores quanto de pessoas que vão lá e denunciam falta de medicamentos, falta de insumos básicos, falta de segurança, subdimensionamento do pessoal”, detalha Uchoa.
O que acontece é que, por conta desses problemas, surgem outros: “Aí não realiza a cirurgia porque está faltando medicação, aí a internação fica prolongada porque não realizou a cirurgia, aí gera uma superlotação”.
De acordo com o superintendente do IJF, José Maria Sampaio, muitos dos problemas no hospital refletem questões urbanas que requerem soluções de segurança pública.
“Do ponto de vista legal, precisamos de equipes com capacidade de investigar, de resolver e de nos ajudar com todas as complexidades do hospital, para que possamos fazer a assistência ao paciente. Há pontos muito sensíveis, próprios de um hospital de grande porte e de emergência”, pontua.
Com o aumento dos casos de violência impactando a rotina dos atendimentos, a direção do IJF instituiu a Gerência de Segurança Cidadã (Sesec), por meio da Guarda Municipal de Fortaleza (GMF).
É o que explica, em nota, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS): “O setor conta com aproximadamente 170 funcionários, entre guardas municipais, porteiros e recepcionistas, além de um sistema de videomonitoramento e catracas com reconhecimento biométrico para o controle de acessos, orientação e ordenamento da permanência no ambiente hospitalar, promovendo a garantia da integridade patrimonial e, sobretudo, a proteção de usuários e trabalhadores”.
Em comunicado enviado a esta reportagem, que questionou quais foram as medidas tomadas tanto a nível de reforço da segurança quanto para com os trabalhadores após o homicídio, a pasta afirmou que “uma viatura da corporação também permanece em apoio às equipes e realiza o patrulhamento nas ruas próximas ao hospital”.
Segundo a SMS, a Gerência de Gestão de Pessoas e o Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (Sesmt/IJF) são responsáveis por atender e acompanhar os profissionais do hospital, “promovendo a segurança laboral e a assistência à saúde, inclusive com acompanhamento psicológico permanente”.
“Os servidores também contam com a assistência do Instituto de Previdência do Município de Fortaleza (IPM) para consultas, exames e procedimentos”, indica o informe.
Conforme narram colaboradores ouvidos pela reportagem, os profissionais que atuam no IJF são cobrados por tudo aquilo que as políticas públicas não foram capazes ou não quiseram fazer.
Se a educação colapsou, sua demanda reprimida chega ao IJF. Se a segurança pública não supriu a demanda, os cadáveres e feridos batem à porta do “Frotão”. Se a saúde preventiva não percebeu o caos, os casos considerados irresolutos restam para o maior hospital da Cidade.
Por trás das máscaras estão pais, filhos, irmãos, cônjuges, companheiros e companheiras ausentes nas ceias de Natal, festas de Réveillon, aniversários e muitas outras ocasiões.
Assim como outras categorias, são pessoas que querem que suas angústias sejam consideradas. E almejam, sobretudo, respeito — para que não sejam responsabilizados por condutas negligentes de gestores.
Há 16 anos, “trabalhar no IJF era um sonho” de Heloísa (nome fictício para preservar a identidade da fonte). Em entrevista ao O POVO+, a técnica de enfermagem conta que já atuou em diversos setores do hospital desde que entrou como servidora pelo concurso público de 2008, na gestão da então prefeita Luizianne Lins (PT).
Ela conversa com a equipe de reportagem em anonimato por ser “constantemente perseguida”: “não me calo diante das injustiças e ao ver tanta coisa errada nesse lugar”.
Antes de chegar no nível de medo de represálias que sente hoje, Heloísa, assim como muitos profissionais que entraram junto com ela, lembra com emoção da forte admiração que sempre sentiu pelo complexo hospitalar.
“O IJF tem um encanto. Quando a gente entra, adquire um amor tão grande. Às vezes a gente se sente tão bem que até estica a hora de ir para casa descansar. Tirar horas extras era uma diversão e não um sacrifício”, narra.
“Porém, quem quer fazer a enfermagem que aprendemos nos livros acaba se deparando com um hospital voltado apenas para a visibilidade externa para fins políticos”, aponta.
E continua: “Assim como muitos colegas, cheguei a comprar do próprio bolso materiais de higiene para os pacientes. A gente se sente bem em ver nossos pacientes bem”.
“Eu tinha um orgulho de dizer que trabalho no maior hospital de traumas do Nordeste. Hoje sinto vergonha. As pessoas nos olham com pena”, desabafa.
Segundo a servidora, “os anos foram se passando e a vontade de ir trabalhar foi diminuindo. Lá não é mais o lugar de exercer a real enfermagem que aprendemos nos livros. E olha que ainda não falei de salário. Isso não era tão importante”.
Conforme relata Heloísa, “hoje o IJF é movido exclusivamente pela política. Diretores e chefes de equipe são marionetes e só pensam em manter seus cargos. O caso do Mizael foi apenas um ocorrido. Apenas o mais sério. Antes dele já foram dois homicídios nas dependências do hospital”.
A servidora cita que há colaboradores que entram para o quadro por meio da indicação de vereadores, por exemplo: “Os funcionários que não são da enfermagem, o pessoal do nível elementar, tipo maqueiros, recepcionistas, zeladores, eles são pessoas que entram lá através de indicação de vereadores”.
E os que entram sem indicação, segundo Heloísa, “após três meses de trabalho são chamados e é exigido deles a carta de um vereador, uma indicação por escrito. Nesse período eles são treinados, pegam a rotina e tudo, mas geralmente o que acontece é que eles não apresentam a carta e são demitidos, afastados. Às vezes não chega nem a fazer o contrato de trabalho”.
“Já tivemos um maqueiro que todo mundo tinha medo dele e que todo mundo sabia que ele era chefe de facção no Pirambu. O hospital não está nem aí, sabe? Fazer política pública de saúde de dentro de um gabinete com ar-condicionado é fácil, mas vai lá no corredor ver como é a realidade nua e crua”, salienta.
Atualmente, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o IJF conta com aproximadamente 4.500 profissionais em seu quadro de funcionários, dos quais cerca de 80% são servidores efetivos e 20% são prestadores de serviços terceirizados em áreas administrativas, atendimento, manutenção e zeladoria.
Entre 2021 e 2024, ainda segundo a pasta, o quadro foi reforçado com a convocação de 547 novos profissionais por meio de concursos públicos para os cargos de advogado (3), assistente social (20), cirurgião dentista (12), enfermeiro (171), farmacêutico (10), fisioterapeuta (40), fonoaudiólogo (6), médico (67), nutricionista (9), psicólogo (15), técnico de enfermagem (136), técnico de higiene dental (5), técnico de imobilização ortopédica (20), técnico de laboratório (2), técnico de radiologia (20) e terapeuta ocupacional (11).
Nas palavras de Heloísa, “o caso é bem mais complexo”: “o IJF é lotado e tem o público que tem porque a unidade básica não funciona. Aí a pessoa adoece, ou mesmo no caso de acidentes, procura um Frotinha e ele não tem estrutura. Tem dia que não tem raio-X, tem dia que não tem ortopedista, tem dia que não tem ultrassom. Só resta o Frotão, que aceita porque é o jeito, mas aí lota o hospital”.
A técnica de enfermagem acrescenta que, “agora, porque é ano eleitoral, se você chegar você vai ver no máximo 10, 15, 20 pacientes no corredor, coisa que, no geral, é pra mais de 100. Acontecem inúmeros furtos, ameaças a servidores. Eu mesma já fui vítima de ameaça de morte, já fui agredida, meu celular foi quebrado e fiquei no prejuízo. Quem sempre sai perdendo? Funcionários e população”.
A médica Helena (nome fictício), outra servidora que também prefere não se identificar, exprime: “Somos uma categoria de humanos, não somos super heróis. Esses só existem na ficção. Somos reais. A diferença é que constantemente somos expostos a situações extremas que parecem só existir na ficção, como foi a pandemia de Covid-19, por exemplo”.
Ela lembra que assim como várias unidades de saúde em Fortaleza, em 2020, logo que inaugurado o IJF 2, o prédio anexo à unidade principal e batizado com o nome de Juraci Magalhães foi mobilizado e adaptado para receber o elevado volume de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus.
O IJF possui 665 leitos e registra, a cada 12 horas, 200 novos atendimentos, em média. Em 2023, a Emergência registrou 73.098 acolhimentos, a maioria deles causada por acidentes domésticos e de trabalho, seguido de 18.236 quedas (25%), 13.899 colisões de trânsito (19%) e 5.443 situações de violência (7%).
Significa que acidentes domésticos, acidentes de trabalho e ocorrências de trânsito dominam os registros no hospital que hoje conta com um prédio de 6 andares e outro com 8 andares.
Do total de leitos, metade é ocupada por pacientes de outros municípios e metade por residentes de Fortaleza — panorama que se repete há décadas.
Em 2023, dos 15.079 pacientes que necessitaram de internação e ocuparam leitos para tratamentos cirúrgicos e clínicos, 7.217 (48%) foram enviados de outras cidades, enquanto 7.862 (52%) eram fortalezenses, segundo dados fornecidos pela SMS.
Entre os pacientes, 45.278 eram do sexo masculino (62%), 32.363 tinham entre 20 e 49 anos (44%), 20.554 tinham menos de 19 anos (28%) e 20.181 tinham mais de 50 anos (28%).
Dos 73.098 adultos e crianças acolhidos na Emergência, 24.892 (34%) chegaram de outros municípios e 48.206 (66%) eram de Fortaleza. Os municípios que mais enviaram pacientes ao IJF foram Caucaia (3.211), Maracanaú (1.832), Pacatuba (821), Aquiraz (792) e Horizonte (767).
Outros 17.469 pacientes que deram entrada no IJF no ano passado chegaram de municípios além da Grande Fortaleza.
A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) ratificou, em nota a esta reportagem, que o Instituto Doutor José Frota é de gestão municipal, conforme consta no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), e que, portanto, a pasta não tem gerência sobre a unidade.
“Por meio da Política Estadual de Incentivo Hospitalar, que visa ampliar o acesso da população aos serviços de saúde, a Sesa repassa, mensalmente, R$ 6 milhões ao IJF. Em seis anos, o Instituto recebeu do Estado R$ 249.113.389,24, valor destinado ao custeio geral da unidade”, informa.
Para se ter uma ideia, em 2023 o Instituto recebeu, em recursos, R$ 620 milhões de fontes municipais, R$ 72 milhões de fontes estaduais e R$ 24 milhões de fontes federais.
Fonte dos recursos destinados ao IJF em 2023
Em 2013, a rede própria de serviços de saúde da SMS era formada por 92 postos de saúde, dois Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), o Centro de Especialidades Médicas José de Alencar (Cemja), duas Farmácias Populares, 14 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), oito hospitais secundários, um hospital terciário (IJF) e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192).
Fora isso, havia uma rede conveniada composta por hospitais privados ou filantrópicos credenciados e clínicas públicas, privadas ou filantrópicas que prestam serviços de consultas e exames.
Já a atenção secundária na rede própria era feita pelos oito hospitais distritais, conhecidos como Frotinhas (três) e Gonzaguinhas (três), além do Centro de Atenção à Criança e do Hospital Nossa Senhora da Conceição.
Equipamentos da rede de atenção à saúde em Fortaleza (2013-2024)
A rede hospitalar municipal tinha 956 leitos, sendo 553 nos hospitais secundários e 403 no terciário. O atendimento de urgência e emergência era feito também pelo Samu.
Os dados foram compilados pela jornalista Juliana Diógenes há 10 anos, época em que escreveu o livro “IJF: histórias despercebidas de um hospital”, obra em que se aprofundou no cotidiano do hospital e registrou um dos mais completos trabalhos já feitos sobre o Instituto.
Uma década depois, o cenário sofreu poucas mudanças para atender a população de mais de 2,4 milhões de habitantes, como mostra o gráfico acima.
De acordo com a Secretaria de Saúde do município, a atenção primária à saúde é composta por 132 postos de saúde e seis carretas itinerantes do Programa Vem Saúde.
Dentre os serviços ofertados nessas unidades estão as farmácias básicas e polo, as Salas de Apoio à Mulher que Amamenta/posto de coleta de leite humano, os Núcleos de Desenvolvimento Infantil (NDI) e os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs).
Além desses, conforme nota da pasta, há 24 equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), dos quais 16 são Centros de Atenção Psicossocial (seis gerais, três infantis e sete álcool e outras drogas), cinco unidades de acolhimento e três residências terapêuticas.
Na rede especializada, Fortaleza possui um Núcleo Municipal de Atenção à Criança e Adolescente com Transtorno do Espectro Autista (Nutea) e quatro policlínicas.
As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), por sua vez, passaram a integrar, a partir de 2012, a rede secundária. O município dispõe de seis delas, localizadas nos bairros Edson Queiroz, Jangurussu, Itaperi, Bom Jardim, Vila Velha e Cristo Redentor.
A rede também conta com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192 Fortaleza) e nove hospitais que atendem urgência e emergência traumatológica, cirúrgica, pediátrica, obstétrica e ginecológica.
São esses: Hospital Dra. Zilda Arns Neumann; Hospital da Criança (HCF); Hospital Nossa Senhora da Conceição; Hospital Distrital Evandro Ayres de Moura (Frotinha do Antônio Bezerra); Hospital Distrital Maria José Barros de Oliveira (Frotinha da Parangaba); Hospital Distrital Edmilson Barros de Oliveira (Frotinha de Messejana); Hospital Distrital Gonzaga Mota José Walter (Gonzaguinha do José Walter); Hospital Distrital Gonzaga Mota Barra do Ceará (Gonzaguinha da Barra); e Hospital Distrital Gonzaga Mota Messejana (Gonzaguinha de Messejana).
Na rede terciária, o Instituto Doutor José Frota (IJF) permanece como único hospital para atendimentos de alta complexidade.
O levantamento feito pela SMS para esta reportagem refere-se apenas aos equipamentos geridos pelo município, mas a Prefeitura de Fortaleza também possui contratos com a rede complementar, informa a pasta.
Procurada, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa-CE) comunicou ao O POVO+ que, com a Regionalização da Saúde no Estado, a pasta realizou a abertura do serviço de traumato-ortopedia no Hospital Regional do Cariri (HRC) e no Hospital Regional do Vale do Jaguaribe (HRVJ).
Entre 1º de janeiro de 2023 e 22 de julho de 2024, o serviço do HRC realizou 7.668 atendimentos. Já o serviço de trauma do HRVJ, aberto em agosto do ano passado, registrou 4.716 atendimentos até julho deste ano.
Segundo informa a Sesa, juntas, as duas unidades prestam assistência qualificada a mais de dois milhões de pessoas provenientes de 65 municípios localizados nas regiões e também atendem pacientes de outras cidades, incluindo Fortaleza.
por Juliana Diógenes*
Ao ser convidada para escrever um ponto de vista sobre o IJF, fiz uma viagem no tempo. Na pilotagem do teletransporte, estava o meu livro, IJF: Histórias despercebidas de um hospital, publicado em 2013 pela Editora UFC.
Na semana passada, voltei a folheá-lo, como forma de me ambientar para a escrita deste texto. Ninguém entra no IJF à toa. Ao retomar o contato comigo mesma — e com o IJF — do passado, descobri que o livro é um portal para toda a sinestesia provocada por um dos hospitais mais peculiares do Ceará, quiçá do Nordeste.
A ideia de escrever sobre o IJF surgiu como quase toda ideia de escrita: curiosidade. Adicionaria, porém, outra componente: encantamento. Sem qualquer tentativa de romantização.
Chamo de encantado aquilo que é digno de mistério. Eu nunca havia entrado no IJF até então, mas já havia escutado muitas histórias sobre o hospital — a maioria, negativas. Incêndios, negligências, acidentes gravíssimos, abandono do poder público.
Como forma de tentar entender camadas mais profundas dessas e outras histórias, escolhi-o como lugar a ser percebido além das dimensões estruturantes e noticiosas, num trabalho inspirado em etnografia.
Interessava-me conhecer, o mais de perto possível, o cotidiano de quem trabalhava e usava o hospital. Os cheiros, as dores e também as histórias de amor. Toda instituição é feita de pessoas, e humanizar estes espaços é preciso.
A última vez que pisei no IJF foi em 2013. Hoje o hospital representa um novo papel de encantamento para mim: o de um desconhecido que outrora foi conhecido. Imagino que, tal como mudei bastante, o IJF também tenha mudado, em termos estruturais e administrativos.
Suspeito, porém, que uma coisa não tenha mudado: os problemas demasiadamente humanos, que também são políticos e merecem atenção do poder público.
A minha experiência de imersão me fez perceber que o IJF é um reflexo das nossas mazelas sociais, como um espelho que revela quem somos de melhor e de pior — enquanto sociedade. O IJF somos nós.
*Ex-repórter do O POVO, a jornalista é formada pela UFC, pós-graduada em jornalismo literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e mestra em Ciências da Educação (Universidade do Porto, Portugal). É autora do livro-reportagem “IJF - histórias despercebidas de um hospital” (2013), publicado pela Editora UFC
No quarto episódio dessa série de reportagens sobre o Instituto Doutor José Frota (IJF), O POVO+ mostra o hospital como uma cidade à parte e apresenta os importantes serviços prestados por esse instituto à população cearense — da assistência à saúde ao ensino e pesquisa que o tornaram referência para o mundo.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Série de reportagens passeia pela história do hospital IJF, ícone urbano de assistência à saúde, e investiga suas conexões com a cidade e a política da Capital