Alimentos orgânicos, cultivados sem o uso de agrotóxicos ou fertilizantes sintéticos, têm ganhado cada vez mais espaço nas prateleiras e na vida dos consumidores brasileiros. Além da busca por um estilo de vida mais saudável, a escolha por esse tipo de produto pode ser reflexo de uma maior preocupação com o meio ambiente.
O consumo desses alimentos aumentou 16% entre 2021 e 2023, o que evidencia que as pessoas buscam mais sabor, nutrição e equilíbrio no que comem — mas, também, que estão mais conscientes em relação à importância do acesso a produtos cultivados sem contato com defensivos agrícolas no Brasil.
Atenta a essa mudança no comportamento da população, a maior fazenda de acerola orgânica do País, que fica no Ceará, mostra que é possível manter a produção em larga escala com o uso de defensivos naturais como caldas sulfocálcica e viçosa.
Como resultado, a Meri Pobo Agropecuária Ltda. tem expandido suas atividades — com comercialização e exportação de frutas para Estados Unidos, China e países da Europa.
A empresa do austríaco Johann Feldgrill fica na zona rural do município de Jaguaruana (a 186 quilômetros de Fortaleza) e produz, além de acerola, frutos como mamão, pitaya, coco e goiaba — todos cultivados exclusivamente com insumos orgânicos.
A agropecuária também atua no município de Russas (a 168 quilômetros de Fortaleza) e tem como foco a exportação, por isso metade do que produz vai para países como Holanda, Reino Unido, Espanha, Rússia, Coreia do Sul, China, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Estados Unidos.
Os outros 50% são comercializados em redes de supermercados dos estados do Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro — com expectativa de aumentar a capacidade de produção para 1.200 toneladas e chegar a outros estados brasileiros.
O italiano Matteo Agnese, gerente-geral da Meri Pobo, explica que a empresa “nasceu com a visão de estabelecer a agricultura orgânica em grande escala com o objetivo de produzir alimentos altamente saudáveis em volumes significativos, unindo sustentabilidade e eficiência”.
Segundo Agnese, o Ceará foi escolhido para tornar esse objetivo realidade “graças aos seus solos extremamente produtivos e ao clima favorável, onde a incidência de pragas e doenças é limitada”.
Além disso, o manejo orgânico não se trata de não pulverizar contra uma praga ou doença, mas também de nutrir a planta.
Das principais culturas produzidas nas fazendas da empresa, a acerola e o mamão apresentam os melhores resultados e são os pilares da produção. “Por outro lado, a goiaba tem apresentado desafios para a produção orgânica, exigindo soluções inovadoras para garantir sua viabilidade”, diz.
O gerente-geral acredita que aplicar o manejo orgânico em outros tipos de plantação “é um desafio”: “Cada cultura exige um protocolo de manejo específico, que está em constante aprimoramento. Fatores como adaptabilidade às
“Além disso, a melhoria contínua das condições do solo através de práticas de agricultura orgânica regenerativa reflete diretamente na qualidade final do produto, proporcionando maior shelf life, melhor consistência, sabor mais intenso e maior valor nutricional.”
Matteo Agnese acrescenta que, como produtor de alimentos, “é muito satisfatório garantir produtos saudáveis para a população brasileira e mundial. Essa diferenciação é um dos principais benefícios da produção orgânica nos mercados globais”.
Com investidores austríacos e italianos, a Meri Pobo possui 800 hectares plantados e uma perspectiva de alcançar mil hectares até 2026 — uma expansão que conta com incentivo milionário do governo estadual e deve se materializar com uma nova unidade industrial destinada à fabricação de sucos concentrados de frutas, hortaliças e legumes.
“O potencial de produção de frutas tropicais do Ceará é conhecido mundialmente. E uma empresa que produz de forma orgânica, alimentos mais saudáveis e com qualidade para exportar, tudo isso gerando renda e empregos para os cearenses, merece todo o nosso apoio”, comentou o governador Elmano de Freitas (PT) durante a assinatura do protocolo de intenções que garante incentivo para expansão da Meri Pobo, em 2023.
O investimento total será de cerca de R$ 75 milhões. Em contrapartida, a empresa, que emprega pouco mais de 400 pessoas, deve “criar 200 novos postos de trabalho”.
“Crescemos significativamente nos últimos dois anos, com muitas áreas alcançando a produção máxima. Os incentivos que foram dados são aqueles que estão abertos a todas as empresas que atendem aos critérios legais”, aponta Matteo Agnese.
O que a Meri Pobo “achou particularmente atraente no Ceará”, de acordo com o gerente-geral, foi que “os órgãos de decisão foram e são parceiros confiáveis em um quadro também muito confiável”.
“As projeções para os próximos anos são manter esse crescimento com a mesma insistência, segurando a produção de longo prazo e levando produtos saudáveis de alta qualidade a um número ainda maior de clientes nacionais e internacionais”, expõe.
O primeiro empreendimento da Meri Pobo foi implantado em 2013 no Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas, projeto público de irrigação que desvia água do maior açude do Ceará, o Castanhão, para enormes canais de onde é bombeada para irrigar plantações o ano inteiro.
2013 também foi o ano em que o Ceará sofreu a pior seca prolongada registrada no Estado desde 1910 — que começou em 2012, segundo dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Na época, as comunidades rurais e a população do semiárido cearense eram abastecidas por carros-pipa. Mas a Meri Pobo e outras empresas do agronegócio da região não tiveram obstáculos para acessar água — graças às outorgas que permitem captar grandes volumes do rio Jaguaribe e outros aquíferos.
A empresa utiliza como fontes de água o rio Jaguaribe, poços e açudes localizados dentro da fazenda, todos interligados ao sistema de irrigação.
Provocado sobre o fato de que o cultivo em larga escala exige um grande volume de irrigação, Matteo Agnese pontuou que “essa estrutura permite a utilização eficiente dos recursos hídricos, ajustando o uso conforme a disponibilidade e a época do ano”.
“Além disso, dentro do manejo orgânico, buscamos melhorar continuamente a condição do solo, favorecendo maior aeração e retenção de umidade. Isso contribui diretamente para a redução da lâmina de irrigação, tornando o uso da água ainda mais eficiente. Essa abordagem é fundamental, pois reconhecemos as limitações dos recursos hídricos. Uma parte significativa da nossa irrigação é realizada por meio de gotejamento, garantindo maior precisão e eficiência no uso da água.”
Em contrapartida ao consumo cada vez maior de defensivos agrícolas, multiplicam-se também os movimentos sociais e organizações da sociedade civil que pesquisam e denunciam os impactos dos agrotóxicos, para combater o seu avanço e apresentar alternativas a este modelo.
Além do manejo orgânico, uma alternativa para atender à demanda por alimentos no Brasil é através da agroecologia. Apesar de serem parecidos, o primeiro tem a ver com técnicas de cultivo, enquanto a outra busca mudar todo o sistema alimentar.
Nessa abordagem, o manejo dos sistemas agrícolas considera a viabilidade econômica dos pequenos produtores e alia isso a princípios ecológicos, com atenção à conservação ambiental e à saúde pública.
Além disso, estimula a independência de quem produz, diminui custos ao priorizar utilização de técnicas e recursos locais, potencializa a segurança alimentar através da rotação de culturas e incentiva a organização comunitária, promovendo troca de conhecimentos tradicionais e científicos.
Não muito distante desse território de disputa onde está a Meri Pobo, em Limoeiro do Norte, uma iniciativa camponesa produz frutas, verduras e legumes sem utilização de defensivos agrícolas.
É o acampamento Zé Maria do Tomé, no perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi — a materialização da luta de um líder assassinado em 2010 por defender sua comunidade dos efeitos nocivos dos agrotóxicos.
Desde 2014, quando centenas de famílias sem terra ocuparam a área de aproximadamente mil hectares, a produção agrícola tem garantido consumo de alimentos livres de substâncias tóxicas.
Além da subsistência através da venda do excedente nas feiras agroecológicas da região, o acampamento fortalece a agricultura familiar camponesa por meio da exportação dos alimentos para outros municípios, com uma parte da produção destinada à Central de Abastecimento do Ceará (Ceasa), em Fortaleza.
Enquanto se mobiliza pelo direito de habitar o terreno de propriedade do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), a comunidade “hoje faz um consumo cuidadoso, há união com movimentos que defendem o direito à terra, à água e à alimentação saudável”.
É o que relata Renato Pessoa, acampado e membro da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“O legado de Zé Maria do Tomé está espalhado por toda a Chapada do Apodi através dessas práticas agroecológicas. Sua luta ia além da pulverização aérea de agrotóxicos, era pelo cuidado com a água consumida, a defesa da terra para pequenos agricultores e cultivo de alimentos sem veneno. Se o campo não planta, a cidade não janta”.
A agricultura familiar, berço da agroecologia, já é responsável pelo abastecimento de 70% dos alimentos consumidos no País.
O projeto Brasil Sem Veneno, do observatório do agronegócio De Olho nos Ruralistas, identificou, em 2022, pelo menos 542 iniciativas de resistência aos agrotóxicos pelo Brasil, incluindo aquelas de movimentos sociais e organizações, pesquisas acadêmicas, ações educativas e comunicacionais, projetos institucionais e propostas legislativas.
O MST lidera, há mais de uma década, a produção de arroz orgânico da América Latina, segundo dados do Instituto Riograndense de Arroz.
A colheita da safra de 2022/2023 foi estimada em 16 miltoneladas de arroz em uma área de 3.200 hectares que envolve o trabalho de 352 famílias divididas em 22 assentamentos e sete cooperativas. O movimento também foi responsável pela doação de milhares de toneladas de alimentos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil.
Nas comunidades tradicionais e movimentos camponeses, a agroecologia é predominantemente liderada por mulheres. Essa é uma bandeira central da Marcha das Margaridas, manifestação que a cada quatro anos reúne milhares de camponesas em Brasília em protesto pelos direitos das trabalhadoras rurais e contra a violência vivenciada pelas mulheres do campo e da floresta.
Conquistar uma bancada no Congresso Nacional que seja crítica ao uso de agrotóxicos e contrária aos modelos de produção do agronegócio é um dos objetivos das organizações que lutam pela agroecologia no País.
A chegada dos perímetros públicos irrigados mudou a dinâmica do Vale do Jaguaribe, um dos oásis do Ceará em torno do rio Jaguaribe. Mas um histórico de injustiça na distribuição dessa água acompanha o projeto e cria “latifúndios hídricos” no semiárido cearense. No quarto episódio dessa série de reportagens, entenda como a formação de um agropolo fruticultor aconteceu nessa região e sua relação com o uso crescente de agrotóxicos no Ceará.
Série de reportagens mostra os efeitos da aprovação do uso de drones na pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará a partir de Limoeiro do Norte, agropolo fruticultor e terra de Zé Maria do Tomé. Na esteira desse tema, o especial aborda o legado do agricultor assassinado em 2010 e investiga as camadas de um problema silencioso e invisível que cresce em solo brasileiro