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Chuva de veneno: o uso de drones na pulverização de agrotóxicos e uma população à deriva
Reportagem Seriada

Chuva de veneno: o uso de drones na pulverização de agrotóxicos e uma população à deriva

Em Limoeiro do Norte, agropolo fruticultor do Ceará e terra de Zé Maria do Tomé, "todo mundo conhece alguém com câncer". No primeiro episódio desta série de reportagens, O POVO+ mostra a vida de quem mora em uma zona do agronegócio — e como a chegada dos drones intensifica o crescimento da aviação agrícola no Brasil
Episódio 1

Chuva de veneno: o uso de drones na pulverização de agrotóxicos e uma população à deriva

Em Limoeiro do Norte, agropolo fruticultor do Ceará e terra de Zé Maria do Tomé, "todo mundo conhece alguém com câncer". No primeiro episódio desta série de reportagens, O POVO+ mostra a vida de quem mora em uma zona do agronegócio — e como a chegada dos drones intensifica o crescimento da aviação agrícola no Brasil Episódio 1
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No verde e fértil Vale do Jaguaribe, com a Chapada do Apodi como pano de fundo, a previsão do tempo não é medida apenas por termômetros e barômetros.

Ali, às margens do rio Jaguaribe, onde fixaram-se populações, desenvolveram-se costumes e forjaram-se culturas, cercada por imensas lavouras de banana, melão, mamão, acerola, coco, goiaba, pitaya e tomate, a pequena Limoeiro do Norte enfrenta um fenômeno que não se vê nos mapas meteorológicos: a chuva de veneno.

Na terra de Zé Maria do Tomé, o vento carrega pesticidas, a terra absorve químicos e a água dos canais — a mesma que irriga as plantações — se mistura a um legado invisível e silencioso de contaminação. Para produtores, engenheiros agrônomos e fabricantes, são os chamados “defensivos agrícolas”; para a Constituição, são “agrotóxicos”; para quem perde a saúde e a vida, é simplesmente “veneno”.

 

 

O que já era uma ameaça constante nesse agropolo fruticultor do Ceará se intensifica com a aprovação do uso de drones pulverizadores no apagar das luzes de 2024. A tecnologia, que promete precisão e eficiência, agora desperdiça menos produto e leva o veneno a lugares antes inalcançáveis, avançando sobre casas, escolas e corpos pela deriva "Deriva é o desvio da trajetória de partículas/gotículas de um defensivo agrícola, durante a pulverização, que faz com que não atinjam o alvo desejado, mas atinjam outras plantas e/ou ambientes, causando diversos prejuízos." .

No município que um dia foi conhecido como “a terra das bicicletas”, o passado de ruas movimentadas por pedais cedeu espaço ao ronco dos motores das caminhonetes do agronegócio — e ao zumbido metálico dos drones que riscam o céu, despejando químicos sobre o presente e o futuro da população.

Mas a mudança não veio apenas pelo ar. Nos corredores do poder, a política também sofreu uma reviravolta.

Em 2008, um jovem trabalhador do almoxarifado químico de uma das empresas de fruticultura instaladas na região morreu. Durante três anos ele foi responsável por produzir a calda tóxica (mistura de princípios ativos de agrotóxicos utilizada para pulverizar as frutas). Após investigação realizada por uma equipe do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e pesquisadores do Núcleo Tramas/UFC, o diagnóstico para explicar a morte foi hepatopatia crônica desencadeada por substâncias tóxicas(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Em 2008, um jovem trabalhador do almoxarifado químico de uma das empresas de fruticultura instaladas na região morreu. Durante três anos ele foi responsável por produzir a calda tóxica (mistura de princípios ativos de agrotóxicos utilizada para pulverizar as frutas). Após investigação realizada por uma equipe do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e pesquisadores do Núcleo Tramas/UFC, o diagnóstico para explicar a morte foi hepatopatia crônica desencadeada por substâncias tóxicas

O governador Elmano de Freitas (PT), que há 23 anos advogava pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e coassinou a primeira lei contra a pulverização aérea de agrotóxicos do Brasil, agora defende justamente o contrário.

A Lei Estadual Nº 16.820/19 conhecida como Lei Zé Maria do Tomé "Em dezembro de 2018, a Assembleia Legislativa aprovou o Projeto de Lei 18/15, de autoria do deputado estadual Renato Roseno (Psol), subscrito pelos então deputados Elmano de Freitas (PT) e Joaquim Noronha (PRP), que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará. Sancionado pelo governador Camilo Santana, o projeto virou a Lei estadual 16.820/19. O Ceará é o primeiro estado do País a adotar essa legislação em favor da saúde pública e da proteção ambiental. A Lei 16.820/19 insere o artigo 28-B na Lei estadual Nº 12.228/93, que trata do uso de agrotóxicos no Ceará. Esse dispositivo veda a pulverização aérea dessas substâncias na agricultura. Quem descumprir a lei fica sujeito a pagar multa de 15 mil Unidades Fiscais de Referência (UFIRs) — em torno de R$ 50 mil." , criada para impedir a pulverização aérea, acaba de ser alterada.

A decisão ignora alertas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que associam a exposição a esses produtos ao aumento de casos de câncer e outras doenças graves.

 

Problemas de saúde associados à exposição a agrotóxicos de acordo com pesquisas

 

 

Para quem vive no entorno das plantações, os números frios das pesquisas ganham rostos e nomes conhecidos. Em Limoeiro do Norte, município de quase 60 mil habitantes a 200 quilômetros de Fortaleza, “todo mundo conhece alguém com câncer”.

Nesta série especial, O POVO+ investiga como a chegada dos drones intensifica o impacto da aviação agrícola no Brasil e mostra quem são as pessoas que recebem a consequência direta de uma assinatura no Palácio da Abolição — entre o progresso e a contaminação, a tecnologia e a doença, a promessa de desenvolvimento e a realidade de quem não pode escolher o que respira.

 


 

“Acho mais prudente que seja feito por um drone, não por uma pessoa”

O tema gerou muitas críticas a Elmano pela forma como foi aprovado na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Deputados alegaram falta de tempo para discussão sobre o projeto, que tramitou em regime de urgência e foi sancionado horas depois pelo governo.

Em entrevista ao O POVO ainda em dezembro, o gestor defendeu a realização de pesquisas para avançar na transição para um defensivo agroecológico.

“Devemos investir em pesquisa. Até lá, acho mais prudente, que nessa transição, até termos o defensivo, que (a pulverização) seja feita por um drone e não por uma pessoa.”

Elmano de Freitas (PT), Governador do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Elmano de Freitas (PT), Governador do Ceará

Questionado sobre as críticas que recebeu e como se sentiu, pontuou: “Senti que um governador, para ser governador, tem que ter coração grande. Ter paciência, tranquilidade, disposição para dialogar e o futuro vai demonstrar”.

Por fim, o petista fez uma indagação a quem criticou a medida. “Pergunto ao parlamentar, ao cidadão que discutiu, se fosse você que tivesse que aplicar o agrotóxico numa planta para ganhar seu dia a dia, você preferia aplicar, inalar e cair na sua pele, ou você preferia ter o drone? Quem tem sensibilidade com o trabalhador vai falar que prefere o drone”.

E complementou: “E não é que estamos dizendo que é bom, é ruim ter agrotóxico (...) se eu pudesse, proibiria o trabalhador de aplicar agrotóxico na sua vida, isso deveria ser nossa luta de cidadania do trabalhador rural. Tem pouca coisa tão insalubre quanto um trabalhador rural andando com agrotóxico e aplicando”.

 

As culturas mais dependentes de agrotóxicos

 

Esta reportagem buscou a assessoria da Casa Civil no dia 13 de fevereiro para solicitar uma entrevista com o governador e questioná-lo, dentre outros pontos, sobre uma possível revogação da medida. Até o fechamento do material, no entanto, não houve retorno.

A Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA) também foi procurada, mas respondeu que “trabalha mais direcionada às pautas da agricultura familiar”. A equipe de reportagem foi orientada a entrar em contato com a Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Ceará (SDE).

Em diálogo com a assessoria da SDE, que solicitou o envio das perguntas direcionadas ao titular da pasta, a reportagem foi informada apenas que “o secretário está em agenda em vários municípios”.

 

 

Trabalhadores rurais em risco: “exigências são frágeis e há pouca fiscalização” 

Em nota, o Fórum Cearense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (FCCIUA), grupo ligado ao Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT/CE), reforçou sua preocupação e o posicionamento contrário à liberação.

Dentre as questões apontadas está “a dificuldade já existente em fiscalizar o uso dessas substâncias”, tema sobre o qual o Fórum se debruça.

A coordenadora do FCCIUA, procuradora Geórgia Aragão, destaca que atua no combate aos efeitos dos agrotóxicos na saúde dos trabalhadores rurais desde 2009, quando conheceu a situação de perto ao coordenar a Procuradoria do Trabalho de Limoeiro do Norte.

A procuradora do trabalho Georgia Aragão é procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT/CE) e coordena o Fórum Cearense de Combate aos Impactos do Uso de Agrotóxicos (FCCIUA)(Foto: Acervo do MPT-CE)
Foto: Acervo do MPT-CE A procuradora do trabalho Georgia Aragão é procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT/CE) e coordena o Fórum Cearense de Combate aos Impactos do Uso de Agrotóxicos (FCCIUA)

“As principais demandas estão relacionadas com a temática da contaminação da água por princípios ativos de agrotóxicos, sendo que alguns deles, como a atrazina, são proibidos em outros países”, detalha.

A procuradora chama a atenção para a “ausência de capacitação e treinamento adequados aos trabalhadores para aplicação de agrotóxicos”, assim como para o “não fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados e em perfeito estado de conservação”.

Além disso, cita “o descarte inadequado e a reutilização indevida das embalagens de agrotóxicos vazias” e “a isenção tributária para os agrotóxicos, sendo que há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF) a qual requer a inconstitucionalidade desta isenção”.

Enquanto representante do Fórum, Aragão esteve na Assembleia Legislativa para levar ao conhecimento dos deputados a intensa articulação de entidades e órgãos públicos pela retirada do projeto de lei da pauta. O objetivo era possibilitar um amplo debate com a sociedade e análise aprofundada do tema sob o ponto de vista técnico.

“Levei a nota técnica expedida pelo FCCIUA requerendo uma discussão do tema com a população cearense e os órgãos que tratam da matéria, mas não houve êxito no pleito”, afirma.

Conforme analisa a procuradora, as exigências para operar drones pulverizadores são frágeis, com formação online e pouca fiscalização. Ela observa, portanto, que há riscos de uso indiscriminado e sem controle desses equipamentos.

“Isso pode acarretar graves impactos à saúde da população, a exemplo de diversos infortúnios que já ocorreram no Brasil. Como a intoxicação de alunos e trabalhadores ocasionada por uma chuva de agrotóxicos por pulverização aérea em uma escola municipal de Rio Verde, em Goiás, em 2013", cita.

 

Como identificar intoxicação por agrotóxico?

 

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que os agrotóxicos causam 70 mil intoxicações agudas e crônicas por ano e que evoluem para óbito, em países em desenvolvimento. Mais de sete milhões de casos de outras doenças agudas e crônicas não fatais também são registrados.

Em decorrência do desenvolvimento do agronegócio no setor econômico, desde 2008 o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. São pelo menos 720 mil toneladas de pesticidas para uso agrícola espalhados pelos quatro cantos do País, segundo os dados mais recentes (2021) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

A quantidade aumentou quase quatro vezes em relação a 2003, quando era de 183 mil toneladas. Os Estados Unidos, segundo maior consumidor mundial de agrotóxicos, registraram 457 mil toneladas em 2021.

 

O que fazer em caso de intoxicação por agrotóxico

 

Ao mesmo tempo, como um importante produtor de commodities — seja para exportação, como cana-de-açúcar, milho e soja, ou para consumo, como arroz e feijão —, o tamanho de área cultivada atingiu 10,9 kg ha-1 em 2021, quase 3,5 vezes do que tinha há 18 anos.

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) alerta que as pessoas que trabalham diretamente nas lavouras estão mais suscetíveis a intoxicações, mas que a exposição a resíduos de agrotóxicos nos alimentos e no ambiente, geralmente em doses baixas, pode afetar toda a população.

O instituto cita infertilidade, impotência, abortos, malformações, efeitos no sistema imunológico e câncer como potenciais problemas relacionados.

Um estudo epidemiológico sobre os impactos à saúde humana nos municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e Russas — onde se expande a agropecuária —, aproximadamente 97% dos agricultores familiares e trabalhadores do agronegócio estavam expostos a agrotóxicos(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Um estudo epidemiológico sobre os impactos à saúde humana nos municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e Russas — onde se expande a agropecuária —, aproximadamente 97% dos agricultores familiares e trabalhadores do agronegócio estavam expostos a agrotóxicos

Além disso, o Inca critica a permissão do uso, no Brasil, de agrotóxicos já banidos em outros países — como é o caso do glifosato, um dos herbicidas mais comuns nas lavouras brasileiras, classificado como potencial causador de câncer.

Um relatório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mostra que os mais consumidos em 2023 foram glifosato, mancozebe, 2,4-D, acefato, clorotalonil, atrazina, S-metolacloro, glufosinato – sal de amônio, malationa e dibrometo de diquate.

 

 

Casos de câncer em Limoeiro diminuíram desde aprovação da Lei Zé Maria do Tomé

Em 2006, O POVO noticiou: “Cresce número de casos de intoxicação por agrotóxicos”. A matéria da jornalista Rita Célia Faheina informava que “mais de 1.100 casos de internações hospitalares por causa de intoxicações causadas pelo uso de agrotóxicos foram notificados em 2005”.

Em 2024, duas décadas depois, 378 casos de intoxicação exógena por agrotóxicos foram notificados no Ceará — uma diminuição de 65% —, segundo os dados mais recentes obtidos pela reportagem junto à Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa/CE).

Foram registrados 5.884 casos (entre suspeitos e confirmados) no período de 2011 a 2024 no Estado. Confira:

 

Incidência de intoxicações exógenas por agrotóxicos no Ceará (2011-2024)

 

Com relação aos cânceres, em 2009 foram registrados 42 casos de câncer em Limoeiro do Norte, numa população que era de 50 mil habitantes.

De acordo com os dados mais recentes do painel Oncologia do DataSUS, entre 2020 e 2024 foram registrados 663 casos de câncer no município, agora com quase 60 mil habitantes.

Dessas neoplasias, a mais prevalente foi o câncer de mama (82 casos), seguido do câncer de pele (44 casos) e câncer de próstata (36 casos).

Apesar da alta incidência para a quantidade de habitantes, os números registram uma diminuição nos últimos anos — em 2024 foram 42 casos, assim como em 2009. Acompanhe no gráfico a seguir.

 

Incidência de casos de câncer em Limoeiro do Norte (2020-2024)

Uma das estratégias para promover a qualidade de vida e reduzir, controlar ou eliminar os riscos à saúde de populações expostas a agrotóxicos é o desenvolvimento de medidas preventivas, protetivas e de promoção à saúde, preconizadas pela Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA), do Ministério da Saúde (MS).

O monitoramento passa pela análise ampliada dos fatores de risco no território e da situação de saúde da população exposta ou potencialmente exposta a agrotóxicos, como forma de fornecer evidências para a elaboração do planejamento, organização e operacionalização das ações de promoção e de prevenção da saúde e de atenção integral à saúde.

No Ceará, foi iniciado em 2021 o trabalho de implantação da vigilância de populações expostas a agrotóxicos em 34 municípios.

Municípios prioritários da vigilância em saúde para populações expostas a agrotóxicos no Ceará

Conforme registra o boletim epidemiológico do Programa Nacional de Vigilância de Populações Expostas a Contaminantes (VIGIPEQ) de 2023, o Estado ocupa a 8ª posição do Nordeste entre os estados que mais comercializam agrotóxicos.

Mas o documento chama a atenção para o fato de que “há muita subnotificação e/ou campos que não são preenchidos ou ignorados” durante o processo de preenchimento das notificações — o que evidencia que esses números podem ser ainda maiores.

O POVO+ procurou a Secretaria Municipal da Saúde de Limoeiro em 7 de fevereiro para entender se a pasta já identificou impactos diretos dos agrotóxicos na saúde da população, como funciona o acompanhamento dos pacientes com câncer, se há algum tipo de monitoramento da qualidade da água e dos alimentos e se as políticas públicas atuais são suficientes. Até o fechamento da reportagem, entretanto, não houve retorno às solicitações.

Segundo a Portaria MS nº 1.271, de 6 de junho de 2014, a intoxicação por agrotóxicos faz parte da Lista de Notificação Compulsória (LNC) do Sistema Único de Saúde (SUS) e deve ser notificada semanalmente por meio da ficha de intoxicações exógenas do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) por médicos, outros profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços públicos e privados que prestam assistência ao paciente.

 

 

“É briga de cachorro grande com vira-lata”

A família da psicóloga Márcia Xavier é testemunha e vítima direta dos problemas gerados pelo uso de agrotóxicos na região do Baixo Jaguaribe.

Moradora da comunidade Tomé, em Limoeiro do Norte, ela era apenas uma criança de 9 anos quando começou a sofrer com irritações nos membros inferiores e órgãos genitais.

Hoje, aos 34, ela lida com as sequelas do problema enquanto preocupa-se com a filha pequena, Sophia, que sofre com sinais de puberdade precoce. Com apenas 1 ano e meio a bebê apresentou crescimento das mamas e pelos pubianos. Um ultrassom pélvico confirmou que os órgãos reprodutivos se desenvolviam precocemente.

‘Sou vítima três vezes do agrotóxico’, disse Marcia Xavier em audiência sobre a puberdade precoce em bebês causada por agrotóxico(Foto: Will Shutter/Câmara dos Deputados)
Foto: Will Shutter/Câmara dos Deputados ‘Sou vítima três vezes do agrotóxico’, disse Marcia Xavier em audiência sobre a puberdade precoce em bebês causada por agrotóxico

Sophia e outras crianças da comunidade tiveram amostras de sangue e urina coletadas para uma análise que levou a cientista Ada Pontes, da Universidade Federal do Ceará (UFC), a descobrir que havia no corpo delas uma concentração de substâncias proibidas no Brasil desde 1985: o organoclorado e os piretroides.

Mas como, mesmo sem estarem em contato direto com o campo, as duas foram contaminadas? Uma das suspeitas é de que a contaminação tenha ocorrido porque, durante muito tempo, Márcia lavou a roupa do marido — que é agricultor e manipula substâncias em lavouras de banana e melão.

Além disso, a comunidade do Tomé está cercada por extensas lavouras de fruticultura irrigada que recebem pulverizações aéreas e terrestres constantemente há décadas.

Para se ter uma noção do quão nocivas essas substâncias podem ser, o acesso ao rio Tocantins precisou ser proibido pela prefeitura do município de Estreito, no Maranhão, depois que três caminhões carregados de agrotóxicos caíram da ponte após o desabamento ocorrido em dezembro de 2024(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Para se ter uma noção do quão nocivas essas substâncias podem ser, o acesso ao rio Tocantins precisou ser proibido pela prefeitura do município de Estreito, no Maranhão, depois que três caminhões carregados de agrotóxicos caíram da ponte após o desabamento ocorrido em dezembro de 2024

Foi justamente por denunciar isso que o pai de Márcia foi brutalmente assassinado em 21 de abril de 2010. Ela é a filha mais velha do líder comunitário e ambientalista Zé Maria do Tomé — e foi por sair em defesa da saúde dela que ele descobriu uma situação bem mais crítica do que se pensava.

“Quando eu nasci, papai trabalhava viajando para uma empresa de isolamento térmico. Passava muitos meses fora, até que decidiu ficar em definitivo aqui. Foi nessa época que começou a ter uma intensidade maior de episódios de intoxicação entre as pessoas, e eu fui uma delas”, conta Márcia.

“Ele começou a me levar para o médico, para consulta, e era sempre aquilo: passava um remédio, uma injeção, mas nada tinha efeito. E só aumentando, já pegando assim na virilha.”

Márcia Xavier é diretora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente (Ceresta) de Limoeiro do Norte e filha de Zé Maria do Tomé, ativista morto em 2010 por denunciar e combater a pulverização aérea de agrotóxicos(Foto: Nilmar Lage/Greenpeace)
Foto: Nilmar Lage/Greenpeace Márcia Xavier é diretora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente (Ceresta) de Limoeiro do Norte e filha de Zé Maria do Tomé, ativista morto em 2010 por denunciar e combater a pulverização aérea de agrotóxicos

“Até que um dia uma médica sugeriu que ele trocasse a água que eu tomava banho e toda noite lavasse lençóis e toalha. Você imagina a dificuldade pra uma família pobre ter que comprar água mineral pra banhar um filho, né? Mas funcionou. E foi melhorando”, relata.

Márcia lembra que esse foi o pontapé para que Zé Maria começasse a ser o que hoje se chama de vigilante popular em saúde: “Ele não tinha estudo, mas tinha ação. Ele conhecia o território e observava as modificações do ambiente. Até animais domésticos e os peixes que precisavam dessa água estavam morrendo. Foi então que ele percebeu que era a água que estava contaminada”.

Em uma das investigações do pai que acompanhou, ela lembra ter visto “sacos e garrafas de veneno dentro da piscina de captação de água para a comunidade”.

Limoeiro do Norte é terra de Zé Maria do Tomé, agricultor e líder comunitário na região da Chapada do Apodi que lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos e foi assassinado em 2010. No fim de 2018, após quatro anos de tramitação, foi aprovada a Lei n° 16.820/19, mais conhecida como Lei Zé Maria do Tomé, que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Limoeiro do Norte é terra de Zé Maria do Tomé, agricultor e líder comunitário na região da Chapada do Apodi que lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos e foi assassinado em 2010. No fim de 2018, após quatro anos de tramitação, foi aprovada a Lei n° 16.820/19, mais conhecida como Lei Zé Maria do Tomé, que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará

Atualmente Márcia é diretora-geral do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental (Ceresta) em Limoeiro do Norte. Ao lado da mãe, dona Branquinha, e dos dois irmãos mais novos, ela se mantém firme para continuar a luta do pai.

Todavia, atenta a uma frase de Zé Maria que nunca sai da sua cabeça: “Essa é uma briga de cachorro grande com vira-lata”.

 

 

“A caneta, a mão e a estrutura política que assinam a lei assassinam Zé Maria do Tomé mais uma vez”

Antes de analisar o que está por trás da aprovação, o facilitador e ativista socioambiental, Paulo Ricardo Schneider, do Greenpeace Fortaleza, lembra que é preciso entender que os drones usados na pulverização aeroagrícola são diferentes dos equipamentos mais conhecidos pela sociedade — aqueles comumente utilizados para fotografias aéreas ou mapeamentos.

“A ideia que as pessoas possuem de drone ainda é muito ligada à mídia, fotografia, filmagem. Tanto que é difícil fazer essa conexão entre os drones que usamos e os que são usados, por exemplo, em guerras ou, nesse caso, na pulverização de agrotóxicos”, observa.

Em dezembro de 2024, o governador Elmano de Freitas (PT) sancionou o projeto de lei que libera a pulverização de agrotóxicos no estado por meio de drones, aeronaves remotamente pilotadas (ARPs) ou veículo aéreo não tripulado (Vant)(Foto: Jacto/Divulgação)
Foto: Jacto/Divulgação Em dezembro de 2024, o governador Elmano de Freitas (PT) sancionou o projeto de lei que libera a pulverização de agrotóxicos no estado por meio de drones, aeronaves remotamente pilotadas (ARPs) ou veículo aéreo não tripulado (Vant)

“Se nós imaginamos que drone é uma coisa extremamente reduzida e pequena, a gente não consegue ter a dimensão do estrago que um drone pode fazer. Talvez esse seja nosso principal desafio, criar pontes com a sociedade para que ela entenda que estamos falando de um drone que pode chegar a 2 metros, capaz de liberar centenas de metros cúbicos por segundo.”

Schneider avalia o cenário como uma “democratização da matança” e que há recortes de gênero, classe e raça quando se trata de quem sentirá o impacto direto: “Trabalhadores negros, pobres, mulheres, pessoas precarizadas que manipulam, abastecem e limpam essas grandes lavouras e indústrias”.

De maneira indireta, porém, ele alerta que “a pulverização está para todo mundo, inclusive para quem acha que está muito distante, na cidade, protegido, longe do campo e das lutas campesinas. Isso vai atingir a todos nós, pois estamos falando de um fluxo em cadeia”.

“A aprovação dessa lei foi uma atitude traiçoeira, sorrateira, muito bem planejada e elaborada. É uma lei que tem royalties, endereço bancário e uma especulação dentro dela. Mas é também uma lei assassina”, assevera.

Para o ativista do Greenpeace, a liberação dos drones “mata mais uma vez o Zé Maria do Tomé". "A caneta, a mão, a estrutura política e financeira que assinam essa lei estão sujas e novamente o assassinam”, define.

“E não só isso, ela está dando um recado muito nítido para os movimentos da agroecologia, para a universidade, que executa pesquisas importantíssimas em nível nacional e internacional, para os trabalhadores. E o recado é: a luta é totalmente desigual. Ela comunica que somos um sistema gigantesco financiado, estruturado, equipado e baseado para ser autoritário, arbitrário e violento.”

 

 

“O agro não é tech, não é pop e muito menos tudo”

Para o historiador Reginaldo Ferreira de Araújo, que é ativista socioambiental no Vale do Jaguaribe, “o agro não é tech, não é pop e muito menos tudo”.

Pedagogo e mestre em educação e movimentos sociais, Reginaldo é representante do Movimento 21 de Abril (M21), criado para preservar a memória de Zé Maria do Tomé e seguir os princípios encabeçados por ele.

“Eles dizem que o agronegócio carrega o Brasil nas costas, mas é o Estado, é o povo que carrega o agronegócio nas costas. Trabalhamos com os pés no território e sabemos o que o povo está passando desde que chegaram as empresas nessa região”, desabafa.

A Escola Agrícola Padre Lino Gottardi fica cerca por fazendas de diferentes culturas. A principal delas é a banana(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR A Escola Agrícola Padre Lino Gottardi fica cerca por fazendas de diferentes culturas. A principal delas é a banana

Ele testemunha desde a perda de terra dos agricultores familiares, até o adoecimento de comunidades inteiras: “Nossas plantações estão sendo contaminadas e nossas abelhas estão morrendo com a chuva de veneno. Por que não vêm conhecer a realidade da vida do povo nas verdadeiras zonas de sacrifício do agronegócio?”

Conforme relata, em Limoeiro do Norte “todo mundo conhece alguém com câncer, toda família tem alguém com câncer”. “Para você ter uma ideia, dois prefeitos já morreram de câncer”, relembra.

Reginaldo conta que, desde que a proibição da pulverização aérea entrou em vigor, os aviões começaram a ser vistos indo até a divisa com o Rio Grande do Norte e voltando.

Proporção de fazendas no entorno da Escola Agrícola Padre Lino Gottardi. No canto inferior direito está a comunidade de Tomé(Foto: Reprodução/Google Earth)
Foto: Reprodução/Google Earth Proporção de fazendas no entorno da Escola Agrícola Padre Lino Gottardi. No canto inferior direito está a comunidade de Tomé

“Eles vinham até a fronteira e voltavam, não entravam aqui. Mas nós não queremos só o Ceará livre de veneno, queremos o País todo, o mundo todo.”

Além disso, o representante do M21 entende que os drones também podem ser enquadrados como pulverização aérea. "E eles (empresários) estavam tão certos dessa aprovação que nós soubemos que os drones já estavam sendo testados e usados em algumas fazendas. Ou seja, já vinham sendo comprados.”

O historiador compara os efeitos dessa pulverização intensa nos ares com as consequências do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial.

Demonstração de uso do drone agrícola DJI Agras T50, que consegue pulverizar até 120 hectares por dia(Foto: Divulgação/Alcoolvale)
Foto: Divulgação/Alcoolvale Demonstração de uso do drone agrícola DJI Agras T50, que consegue pulverizar até 120 hectares por dia

“Aqui você vê criança nascendo sem braço, sem perna. Criança de 2 anos que já tem mama, criança com câncer. É um processo muito violento em troca de um discurso mentiroso de geração de emprego e renda. Porque no fim das contas é tudo mecanizado, nas fazendas há pouquíssimos trabalhadores”, ratifica.

E atesta: “Trouxeram um hospital regional pra cá, pode trazer dez, não dá conta da demanda de problema de pele, câncer, malformação. Em toda esquina de Limoeiro tem uma loja de agrotóxico, uma farmácia e uma igreja”.

“É surreal e perverso o que acontece aqui. É um estado de guerra química o que a gente vive e o drone vem pra piorar isso. O pior foi a aprovação vir de um governo que era aliado, das mãos de uma pessoa que é fruto das lutas sociais. Mas ele (Elmano) sabe que a gente não vai desistir. A gente é maratonista, nós vamos lutar para revogar e para expandir a proibição nos outros estados.”

Em 2014, o então deputado Elmano de Freitas era presidente da comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa do Ceará e esteve na Chapada do Apodi, onde dialogou com o historiador e ativista ambiental do Vale do Jaguaribe, Reginaldo Ferreira de Araújo(Foto: Reginaldo Ferreira / Acervo pessoal)
Foto: Reginaldo Ferreira / Acervo pessoal Em 2014, o então deputado Elmano de Freitas era presidente da comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa do Ceará e esteve na Chapada do Apodi, onde dialogou com o historiador e ativista ambiental do Vale do Jaguaribe, Reginaldo Ferreira de Araújo

Um plebiscito popular foi lançado em 15 de fevereiro por organizações populares, movimentos sociais, sindicatos, ambientalistas e líderes comunitários para pedir a revogação da medida e conscientizar a sociedade cearense sobre a temática.

Essa lei é um crime absurdo e flagrante. Se a Europa não permite lá, por que temos que aceitar aqui? Com o plebiscito, o povo entenderá bem o que está em jogo. Entendendo, lutará até o fim para que a lei seja derrubada e nossos direitos conquistados”, declara Joelma Lima, integrante do M21.

E segue: “Em todos os cantos, em todos os lugares, ninguém quer comer veneno para enriquecer meia dúzia de capitalistas. E quem tem fome tem direito de comer alimentos saudáveis. É dever do Estado garanti-los”.

 

 

“Se é errado no avião, no drone é pra ser também”

Na mesa dos agricultores Valdeci e Celi não tem espaço para comida de fora: tudo o que os alimenta e também os dois filhos vem do pequeno quintal da família.

“Planto feijão, banana, gengibre, pimentão, melancia, caju, acerola, manga, goiaba, limão. Eu faço meu suco sem veneno, só dou isso a eles”, conta Celi.

O casal de agricultores Valderi e Celi vivem com os dois filhos e o cachorrinho Becky em uma casa simples em Limoeiro do Norte, onde plantam o que comem(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR O casal de agricultores Valderi e Celi vivem com os dois filhos e o cachorrinho Becky em uma casa simples em Limoeiro do Norte, onde plantam o que comem

Ela explica que “gostava muito de comida temperada com pimentão, tomate, essas coisas”. “Eu adorava. Até que uma vez eu vi gente passando o veneno podre e comecei a ter medo de comer. Fiquei pensando... Quantas pessoas comem sem saber, né?”.

“Uma das coisas melhor que você tem pra temperar uma panela é pimentinha, pimentão. Mas não tem como, quando eu vi, nunca mais comprei e nunca mais comi. É um risco mesmo isso”, diz.

O alívio de Celi vai além da alimentação saudável. Valderi trabalhava como pulverizador, mas deixou a profissão para se dedicar à apicultura.

Valderi trabalhou como pulverizador para uma empresa de agropecuária da região, mas deixou a função para produzir a própria subsistência. Já Celi, que também já era agricultora, deixou de consumir produtos de fora desde que viu uma pulverização acontecendo(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Valderi trabalhou como pulverizador para uma empresa de agropecuária da região, mas deixou a função para produzir a própria subsistência. Já Celi, que também já era agricultora, deixou de consumir produtos de fora desde que viu uma pulverização acontecendo

Pelo que acompanhava no dia a dia, testemunha que “o veneno não é coisa boa, mas o mau uso dele é o pior". 

“Não tem respeito com horário, por exemplo. Porque tem uns produtos que não é ideal que seja de dia, tem que ser à noite. Tem uns muito fortes que só de você sentir o cheiro tem gente que passa mal.”

“Aí eu digo assim: qual é a diferença do avião pro drone? Dá no mesmo. Assim, a gente vê a diferença de um pro outro, né? O avião é bem mais agressivo. Mas se é errado no avião, no drone é pra ser também. Tem escola, tem casa, tem muita coisa que pode o vento levar o agrotóxico em cima”, argumenta.

Família vive do que produz e o que sobra é vendido nas feiras agroecológicas organizadas pelo acampamento Zé Maria do Tomé(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Família vive do que produz e o que sobra é vendido nas feiras agroecológicas organizadas pelo acampamento Zé Maria do Tomé

O negócio ainda está no início, mas enquanto prepara o maquinário ele também reflete sobre como os agrotóxicos afetaram sua vida. É que tornou-se comum haver mortandade de abelhas na região — outro efeito associado à pulverização.

“Eu não sou de ficar criticando. Você tem sua área isolada, tem capacidade de usar? Tudo bem. Mas eu acho que tem que respeitar a vida do ser humano. E não é nem só do ser humano, porque tem as abelhas, então é respeitar a vida dos seres vivos.”

 

 

“Vi um drone e lembrei de quando era criança e via os aviões”

A poucos dias para o Natal, os moradores do acampamento Zé Maria do Tomé preparavam-se para mais uma edição da feira agroecológica quando a notícia começou a se espalhar.

“Da casa da minha mãe, vi um drone e lembrei de quando era criança e via os aviões. Eu nem entendia o que era aquilo, mas hoje sinto o retrocesso”, conta o acampado Renato Pessoa, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na região.

São 64 famílias no local que completa 11 anos de existência em maio. O número já foi bem maior, com 150 famílias, mas “essa é uma caminhada muito longa”.

O acampamento Zé Maria do Tomé foi formado em 2014 por famílias que ocuparam uma região da 2ª etapa do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR O acampamento Zé Maria do Tomé foi formado em 2014 por famílias que ocuparam uma região da 2ª etapa do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi

Batizado em homenagem póstuma ao militante, o acampamento tem uma produção agrícola que faz contraponto ao agronegócio. O processo organizativo tem garantido práticas agroecológicas por parte das famílias, garantindo uma forma sustentável de lidar com a terra, de produzir alimentos variados e fortalecer a agricultura familiar camponesa dessa região.

Mas Renato explica que a área de mil hectares no Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi é administrada pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), que em 2018 entrou com uma ação de reintegração de posse.

“Recebemos ameaças sérias e a polícia militar já chegou a cercar o local pra fazer despejos. Nós buscamos e recebemos apoio de alguns movimentos, da Defensoria Pública da União (DPU) e de escritórios como o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, da Assembleia Legislativa do Ceará (EFTA)”, relembra.

Renato Pessoa mora no acampamento Zé Maria do Tomé e é dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na região(Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Foto: Júlio Caesar/O POVO Renato Pessoa mora no acampamento Zé Maria do Tomé e é dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na região

De acordo com o defensor público federal Edilson Santana, que é defensor regional de direitos humanos no Ceará (DRDH/CE) e acompanha a situação, “o caso encontra-se na Comissão de Conflitos Fundiários da Justiça Federal, com o encaminhamento de diligências para a celebração de uma solução extrajudicial”.

“Atualmente a Advocacia-Geral da União (AGU) está analisando uma proposta apresentada pela DPU para a regularização da área”, disse a esta reportagem.

A esperança de Renato é que, entre as medidas previstas, está a transformação do acampamento em um Projeto de Assentamento Irrigado por meio da destinação do terreno ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O cheiro de veneno é forte na região e mistura-se com o frescor da terra molhada, que facilmente se dispersa pelo ar. As plantações ficam bastante próximas das residências e até de escolas(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR O cheiro de veneno é forte na região e mistura-se com o frescor da terra molhada, que facilmente se dispersa pelo ar. As plantações ficam bastante próximas das residências e até de escolas

“Falta ainda esse repasse legal da área e desenhar onde é que vai ser cada coisa, que tamanho, que formato. Temos as nossas propostas, mas tecnicamente a gente sabe que algumas coisas podem mudar. Felizmente é uma causa bem abraçada e a gente está bem encaminhado.”

Diante da proibição imposta pela lei, os aviões que despertavam a atenção de Renato criança ainda são vistos, mas sobrevoam até a divisa com o Rio Grande do Norte e voltam, segundo fontes confirmaram ao O POVO+.

Um aeroporto utilizado para dar suporte às aeronaves no lado cearense fica na estrada onde Zé Maria do Tomé foi assassinado. Um enorme portão é o único vestígio que sobrou no local, que hoje está desativado e coberto pela vegetação.

 

 

Número de registros de drones cresce em ritmo acelerado

No Brasil, a frota aeroagrícola é diversificada em termos de idade e tipo de aeronave, com predominância de helicópteros e aviões movidos a pistão. No entanto, os drones são o que há de mais moderno em termos de pulverização aérea de insumos.

O País tem mais de 188.704 drones registrados até janeiro de 2025, dos quais 6.460 estão categorizados em alguma nomenclatura que inclui a pulverização agrícola como finalidade — um número que aumentou quase três vezes em menos de dois anos.

Dados disponibilizados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) mostram que o mercado tem crescido a cada ano: em agosto de 2023, eram 2.287 drones registrados com esse fim; já em março de 2024, eram 4.136.

A título de comparação, a frota brasileira de aeronaves agrícolas terminou 2023 com 2.539 aeronaves, sendo 2.509 aviões e 30 helicópteros.

Trata-se da segunda maior frota de aviões agrícolas do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, que possuem em torno de 3,6 mil aeronaves.

O modelo de drone DJI Agras T40 é o campeão de registros na Anac(Foto: Reprodução/ADS Drones)
Foto: Reprodução/ADS Drones O modelo de drone DJI Agras T40 é o campeão de registros na Anac

O registro regular dos drones junto à agência deve ser um pré-requisito, já que existe uma legislação nacional orientada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para a utilização deles: é a Portaria Nº 298/2021, que estabelece regras para operação de aeronaves remotamente pilotadas (ARPs) destinadas à aplicação de defensivos e afins.

Essa portaria também determina que os operadores de ARP devem possuir registro junto ao ministério por meio de requerimento no Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (Sipeagro).

O modelo mais registrado na Anac é o Agras T40 (3wwdz-40a), da fabricante DJI, cuja unidade pode custar entre R$ 60 mil e R$ 270 mil. O valor varia de acordo com o kit adquirido (se acompanha itens como baterias, carregador e controle remoto, por exemplo).

Na internet, é vendido como um equipamento que “suporta várias missões, desde levantamento, mapeamento, pulverização e dispersão”, com uma capacidade de até 40 quilos e dispersão de 50 quilos (70 litros). Vazio, o dispositivo pesa cerca de 32 quilos.

O manual de voo especifica: “O sistema de pulverização é equipado com bombas e rotores de acoplamento magnético, aspersores atomizados duplos e válvulas antivazamento. Quando utilizado com sensores de peso, o sistema de pulverização fornece detecção de nível de líquido em tempo real e melhora a eficiência de pulverização, além de economizar pesticida líquido”.

“Recomenda-se pulverizar herbicidas, fungicidas e inseticidas com ventos inferiores a 3 metros/segundo, pois eles podem espalhar e causar fitotoxicidade, podendo ser venenosos”, indica.

O guia orienta que a distância entre uma aeronave e outra seja superior a 10 metros para evitar interferências. Essa é, também, a distância mínima segura entre a máquina e o operador ao decolar ou pousar, conforme o documento.

A aeronave é programada para “desacelerar ao detectar um obstáculo 15 metros à frente ou 15 metros atrás”. Caso surja alguma obstrução no caminho, a máquina deve “frear imediatamente e fazer um voo estacionário”.

Por outro lado, essa configuração pode ser desabilitada no aplicativo, ainda de acordo com o guia do usuário.

Trecho do manual de voo dos drones Agras T40 e Agras T20P, da DJI(Foto: Reprodução/DJI)
Foto: Reprodução/DJI Trecho do manual de voo dos drones Agras T40 e Agras T20P, da DJI

Uma análise realizada pelo Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag), entre os anos 2011 e 2023, evidencia um crescimento contínuo desse segmento, ainda que com oscilações econômicas e políticas.

Entre os fabricantes, a brasileira Embraer é responsável por mais da metade da frota (53%) e pelas versões do avião agrícola Ipanema, modelo lançado nos anos 1970 e que desde 2004 tem saído de fábrica movido a etanol.

Há uma concentração de aeronaves em estados como Mato Grosso e Rio Grande do Sul, o que reflete a importância desses estados na produção agrícola de grãos e outras culturas de grande escala como soja, milho e arroz. Na sequência vêm São Paulo, Goiás e Bahia.

Entre fabricantes de modelos aeroagrícolas, a brasileira Embraer é responsável por mais da metade da frota (53%) e pelas versões do avião agrícola Ipanema — modelo lançado nos anos 1970 e que desde 2004 tem saído de fábrica movido a etanol(Foto: Castor Becker Junior)
Foto: Castor Becker Junior Entre fabricantes de modelos aeroagrícolas, a brasileira Embraer é responsável por mais da metade da frota (53%) e pelas versões do avião agrícola Ipanema — modelo lançado nos anos 1970 e que desde 2004 tem saído de fábrica movido a etanol

Com a regulamentação, a expectativa é de que o uso de drones continue a crescer e complemente a frota tradicional de aeronaves agrícolas. Se para alguns isso representa medo, para outros representa evolução e aumento de produtividade.

Pela sua velocidade e precisão, a aviação consegue aproveitar melhor as janelas climáticas para as aplicações — já que, tanto por terra quanto pelo ar, é preciso respeitar os parâmetros de velocidade do vento, umidade relativa do ar e temperatura ambiente.

Em áreas maiores, o fator velocidade é importante para que se complete o tratamento antes de uma praga mudar de estágio (o que poderia exigir outra dosagem de produto, por exemplo), ou mesmo que ela se propague para outra lavoura.

O engenheiro agrônomo Gabriel Colle é diretor executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag)(Foto: Divulgação/Sindag)
Foto: Divulgação/Sindag O engenheiro agrônomo Gabriel Colle é diretor executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag)

É o que explica, em entrevista ao O POVO+, o engenheiro agrônomo Gabriel Colle, diretor executivo do Sindag.

“Pelo fato de não tocar na lavoura, o avião não causa amassamento de plantas por rodas, o que pode significar entre 3% e 5% a mais de grãos colhidos. Sem contar que isso permite ao avião operar na emergência para prevenir ou combater pragas logo após períodos chuvosos, onde a lama não permite a entrada de tratores sem o risco de atolar ou fazer grandes estragos na plantação”, justifica Colle.

O agrônomo observa que essa “é uma ferramenta essencial em grandes áreas, onde se necessita de uma cobertura uniforme e com tempo limitado de aplicação. Justamente o caso das principais lavouras da economia brasileira: soja, algodão, trigo, milho, arroz, cana-de-açúcar, laranja, florestas comerciais e outras”.

“(A aviação agrícola) é um setor essencial para a competitividade do agronegócio. Além de garantir
produtividade (que quer dizer produzir mais na mesma a área), trata-se de uma ferramenta que também otimiza o uso de insumos (aplicando apenas o necessário). Ou seja, a aviação existe no Brasil e em tantos países com agricultura forte porque é confiável e economicamente vantajosa.”

A adoção de novas tecnologias e as práticas de manutenção e renovação da frota têm dado efeito no setor aeroagrícola brasileiro. No caso dos aviões, o setor tem crescido, em média, 4% ao ano.

Em 2024, o Brasil tornou-se o principal mercado das fabricantes norte-americanas Air Tractor e Thrush, que produzem aviões agrícolas turboélices. Ou seja, superou o mercado doméstico da indústria estadunidense, justamente o país que tem a maior aviação agrícola do mundo.

O Brasil tem a segunda maior frota de aviões e helicópteros agrícolas do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos(Foto: Castor Becker Junior)
Foto: Castor Becker Junior O Brasil tem a segunda maior frota de aviões e helicópteros agrícolas do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos

No caso dos drones, Colle acredita que “vieram para ficar”: “São uma ferramenta importante para áreas menores e terrenos muito acidentados, aliada dos pequenos agricultores e um complemento no arsenal tecnológico de grandes produtores”.

“Além disso, como são considerados também aviação agrícola, são abrangidos pela legislação e fiscalização que recai sobre o setor. Até países da Europa como Espanha e Reino Unido estão liberando o uso de drones.”

O diretor do Sindag lembra que, “em 2023, a própria chefe da Divisão de Aviação Agrícola (DAA) do Ministério da Agricultura brasileiro participou, na Inglaterra, de uma conferência sobre uso de drones no trato de lavouras da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ela foi mostrar como o Brasil regulamentava a ferramenta junto com apresentações de regulamentos do Canadá, Austrália e Japão”.

Os pulverizadores de barra são montados em tratores e equipados com barras horizontais que possuem múltiplos bicos de pulverização(Foto: Divulgação/John Deere)
Foto: Divulgação/John Deere Os pulverizadores de barra são montados em tratores e equipados com barras horizontais que possuem múltiplos bicos de pulverização

Empresas do ramo divulgam que a utilização dos drones causa menor impacto porque, ao substituir a aplicação manual, evitaria o contato do trabalhador com o produto.

Além disso, o sobrevoo dos drones é mais baixo, o que reduziria a deriva. Por esse motivo, a técnica tem conquistado adeptos em todas as regiões e vem sendo considerada legal até mesmo em municípios que já tinham proibido a pulverização aérea — como Nova Venécia, no Espírito Santo.

Sobre essa questão, Gabriel Colle enxerga uma oportunidade de “esclarecer pontos importantes”: “A deriva (neste caso, quando o produto aplicado se desvia do alvo) ocorre principalmente quando não são observados parâmetros climáticos de temperatura ambiente, umidade relativa do ar e velocidade do vento. Trata-se de um risco inerente a todas as formas de aplicação. Ou seja, pode ocorrer com aplicações feitas por tratores e até com os pulverizadores costais”.

Trabalhadores do agronegócio fazem contato com agrotóxicos através de atividades como a pulverização costal, preparação de misturas, trabalho em plantio recém-pulverizado, descarte de embalagens, limpeza de roupas, transporte e armazenamento de substâncias(Foto: Divulgação/Jacto)
Foto: Divulgação/Jacto Trabalhadores do agronegócio fazem contato com agrotóxicos através de atividades como a pulverização costal, preparação de misturas, trabalho em plantio recém-pulverizado, descarte de embalagens, limpeza de roupas, transporte e armazenamento de substâncias

“O que ocorre aí é que o avião acaba sofrendo por sua própria transparência (ele é sempre visto e ouvido a longas distâncias). Enquanto os outros equipamentos muitas vezes estão muito mais perto e passam despercebidos”, continua.

Mas o importante, segundo o engenheiro agrônomo, é “esclarecer que a segurança da aplicação depende de seguir os cuidados com as condições meteorológicas, o uso do EPI e seguir a bula do produto”.

De acordo com o diretor do Sindag, em janeiro de 2019, quando a pulverização aérea foi proibida no Ceará, “havia apenas quatro aviões operando no Estado e a saída deles não fez diferença nos casos de contaminação”.

“Pelo contrário: no restante daquele ano houve aumento nos casos de contaminação e nos dois anos seguintes o índice não ficou abaixo dos três anos anteriores, segundo o próprio relatório do Programa Nacional de Vigilância de Populações Expostas a Contaminantes Químicos no Ceará.

Com relação aos regramentos aos quais obedecem esse setor, Colle ressalta que é exigida “uma formação no mínimo técnica de praticamente todos os profissionais que operam”.

“Desde o piloto, tem que ser piloto comercial e somar 370 horas de voo para poder entrar no curso de piloto agrícola, além da obrigatoriedade de um engenheiro agrônomo com curso de coordenador de aviação agrícola (CCAA). É obrigatório, também, a presença de um técnico agrícola com curso de executor em aviação agrícola (CEAA) na equipe de solo em cada operação em campo”, elenca.

Além disso, conforme o agrônomo, cada empresa precisa ter um pátio de descontaminação onde as aeronaves e equipamentos de aplicação são lavados e a água residual vai para um sistema de tratamento. Usa-se ozonizador para quebrar as moléculas dos agentes químicos.

 

 

“Nosso compromisso é com a competitividade do setor e a segurança alimentar”

A agropecuária tem um peso importante na economia brasileira e foi responsável por cerca de 22% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional em 2024. No mesmo ano, o total de divisas geradas na exportação ultrapassou 160 bilhões de reais, quase metade das exportações do País.

Como um dos maiores produtores e exportadores de alimentos, o agronegócio brasileiro é destaque no mundo. “Somos um parceiro estratégico para todos os países preocupados com a segurança alimentar. Devido às crescentes taxas de produtividade, à inovação tecnológica e à sustentabilidade do setor, atraímos investimentos e promovemos a geração de renda e desenvolvimento para a população.”

É o que ressalta Ana Lígia Lenat, coordenadora de produção agrícola da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Ana Lígia Lenat, coordenadora de produção agrícola da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)(Foto: Wenderson Araujo/CNA)
Foto: Wenderson Araujo/CNA Ana Lígia Lenat, coordenadora de produção agrícola da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)

Como consequência desses números, o País também tem batido consecutivos recordes de registro de agrotóxicos, substâncias que servem para evitar perdas de rendimento da produção agrícola para pragas e patógenos de plantas.

Agravante a isso, já existem evidências científicas de que as mudanças climáticas ao redor do planeta têm alterado populações de pragas e a proporção de pragas para insetos benéficos. Um estudo da US-American Seattle University indica que a atividade de insetos em regiões de cultivo aumentará junto com as temperaturas.

Os insetos procuram condições que lhes convêm e se deslocam para novas áreas que carecem de seus inimigos naturais. Isso faz com que suas populações cresçam, resultando em mais danos às culturas.

Além disso, como resultado do estresse relacionado ao clima, o potencial natural das plantas para resistir a pragas diminui.

Sobre esses pontos, Lenat reforça que “a CNA defende a utilização responsável de defensivos agrícolas, pois eles são importantes para garantir a produtividade e a segurança alimentar da nossa agricultura tropical”.

E continua: “Para tanto, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) participa do Programa Aplicador Legal, iniciativa do Ministério da Agricultura, para registrar e capacitar os profissionais aplicadores de defensivos no campo. O Senar desenvolve treinamentos presenciais e EaD em boas práticas de manejo de pragas e aplicação de defensivos”.

Ela reconhece que “nos últimos anos a agricultura brasileira foi muito impactada pelas mudanças climáticas”. “Sofreu com secas, inundações, ondas de calor, geadas, granizos e ciclones que levaram à perda na produtividade das lavouras e rebanhos e na disponibilidade de alimentos”, coloca.

Alguns insetos são predadores naturais de pragas agrícolas. É o caso do percevejo do gênero Podisus, que preda lagartas(Foto: Jose Roberto Peruca)
Foto: Jose Roberto Peruca Alguns insetos são predadores naturais de pragas agrícolas. É o caso do percevejo do gênero Podisus, que preda lagartas

Nesse sentido, Lenat diz que “a CNA trabalha para a implementação de medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas de uma forma sistêmica, considerando todos os fatores da produção”.

O POVO+ mencionou que o consumidor tem demonstrado maior interesse por alimentos com menor uso de químicos e questionou como a Confederação avalia essa mudança de demanda, bem como a possível necessidade de adaptação do setor produtivo.

Lenat respondeu que a CNA “está atenta às alterações nos padrões de consumo de alimentos” e é favorável à adaptação do setor.

“Nós representamos todos os tipos de produção: a orgânica, a regenerativa e a convencional. Nosso compromisso é com a competitividade do produtor rural e com a segurança alimentar — aí englobados a qualidade e a quantidade”, finalizou.

 

 

Entrevista

“Essa é uma questão ideológica que não nos interessa. Desconheço isso de intoxicação em comunidade”

Apesar das denúncias sobre intoxicações em comunidades rurais e dos alertas de órgãos de saúde, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec), Amílcar Silveira, rejeita qualquer preocupação com os impactos do uso de agrotóxicos. Para ele, a questão é ideológica e o avanço da pulverização com drones só trará benefícios.

Em entrevista ao O POVO+, Silveira defende o crescimento do agronegócio no Ceará, nega a relação entre pulverização aérea e aumento de câncer e afirma que a prioridade do setor é produzir alimentos de qualidade. Acompanhe:

O POVO+ - O Ceará tem se consolidado como um dos principais produtores e exportadores de frutas do País. Quais fatores impulsionam essa expansão do agronegócio no Estado?

Amílcar Silveira - Existe uma demanda muito forte de FLV, que são as frutas, legumes e verduras. Os supermercados do Ceará faturam aproximadamente 48 a 50 bilhões de reais e eles compram de 12 a 14% de FLV, então estamos falando de, basicamente, 6 bilhões de reais.

Fora isso, nós temos uma exportação de frutas em torno de 80 a 90 milhões de dólares. Então esse é um negócio importante. A nossa meta é que essas exportações cheguem ou ultrapassem os 200 milhões de dólares. Ou seja, há um mercado tanto nacional quanto internacional que demanda do Ceará essa produção.

Amilcar Silveira é presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec)(Foto: THAÍS MESQUITA)
Foto: THAÍS MESQUITA Amilcar Silveira é presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec)

OP+ - Como a Faec avalia o impacto econômico do agronegócio no Ceará, especialmente na geração de empregos e no desenvolvimento das regiões produtoras?

Amílcar - A partir dos estudos do Simpósio Nacional de Instrumentação Agropecuária (Siagro), nós temos propriedade para saber os estados e municípios que são mais propícios ao desenvolvimento do agronegócio.

Guaraciaba do Norte, por exemplo, 48% do seu PIB é agronegócio. Esse aumento do setor nas cidades, principalmente no Interior, proporciona oportunidades que vão desde a geração de emprego até o desenvolvimento dessas áreas rurais.

Em Limoeiro, se você avaliar, lá não tem mendigos. Local que tem um agronegócio forte, a primeira coisa que faz é acabar a miséria.

 

Principais destaques do agronegócio cearense nos últimos anos (valor da produção em milhões de reais)

 

OP+ - O avanço do agronegócio tem gerado preocupações quanto ao uso intensivo de agrotóxicos e seus efeitos na saúde das comunidades rurais. Como a Federação vê essa questão?

Amílcar - Não nos preocupa, porque existe uma nova geração de moléculas de defensivos agrícolas que vão fazer um efeito menos nocivo ao meio ambiente. Além disso, aqui no Ceará tem fábricas de biodefensivos, que é o próximo avanço do agro e vai vir com força.

Na verdade, ninguém quer colocar defensivos agrícolas porque quer, é porque às vezes é necessário. Quando é feito um tratamento em um ser humano, ninguém vai tomar remédio na farmácia porque quer.

OP+ - Casos de intoxicação por agrotóxicos em comunidades rurais do Estado têm sido denunciados. Com a aprovação do uso de drones na pulverização aérea pelo governador Elmano de Freitas no fim do ano passado, essa preocupação tem aumentado. Como a Faec tem acompanhado esse contexto?

Amílcar - O governador nos ajudou com uma demanda nossa. Eu acho que ele foi sensível e pensou no produtor, no trabalhador rural. Porque nunca foi proibido a utilização de defensivos agrícolas, foi proibido a pulverização aérea. Com os drones, vai diminuir a quantidade de utilização de defensivos por hectare.

Então, assim, só melhora o meio ambiente. Essa é uma questão ideológica, política, partidária que não nos interessa. Isso de falar em intoxicação em comunidade, eu desconheço isso.

Se você avaliar pelos dados da Sesa, o que aconteceu em Limoeiro do Norte desde que se deixou de utilizar a pulverização aérea foi um aumento da incidência de câncer.

Então não tem nada relacionado à pulverização aérea. O que tem são retóricas de gente que não produz e não quer ver produzindo. Eu imagino que esse pessoal nem deve se alimentar do nosso produto, do que nós produzimos aqui. O que nós fazemos são alimentos de qualidade.

OP+ - Como o sistema Faec/Senar trabalha para equilibrar o crescimento do agronegócio com a proteção das comunidades tradicionais que vivem nas regiões produtoras aqui do Ceará?

Amílcar - Nós queremos é desenvolver essas comunidades tradicionais. Inclusive estamos lançando um projeto agora que dará assistência técnica para utilização de produtos em hortas urbanas e favelas. Associar a produção de alimentos, seja lá de que tamanho for, com o agronegócio, é algo fantástico e nós vamos cultivar isso.

 

 

No próximo episódio

A aprovação do uso de drones põe em xeque uma luta histórica encabeçada pelo agricultor e ativista Zé Maria do Tomé, que foi assassinado com mais de 20 tiros em 2010 depois de mobilizar toda uma comunidade em torno dos efeitos nocivos dos agrotóxicos na região do Vale do Jaguaribe. No segundo episódio desta série de reportagens, você vai conhecer a história e o legado desse líder comunitário cearense.

  • Textos e recursos digitais Karyne Lane
  • Design Cristiane Frota e Camila Pontes
  • Fotografia Júlio Caesar
  • Edição O POVO+ Catalina Leite e Fátima Sudário
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