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"Latifúndios hídricos": Nos oásis do semiárido cearense, a água é para poucos
Reportagem Seriada

"Latifúndios hídricos": Nos oásis do semiárido cearense, a água é para poucos

O POVO+ entrevistou o pesquisador Diego Gadelha, coordenador do Observatório da Questão Hídrica do Ceará, do IFCE, para entender o histórico de injustiça hídrica no Vale do Jaguaribe, sua relação com o uso de agrotóxicos e como a formação de um agropolo fruticultor aconteceu nessa região
Episódio 4

"Latifúndios hídricos": Nos oásis do semiárido cearense, a água é para poucos

O POVO+ entrevistou o pesquisador Diego Gadelha, coordenador do Observatório da Questão Hídrica do Ceará, do IFCE, para entender o histórico de injustiça hídrica no Vale do Jaguaribe, sua relação com o uso de agrotóxicos e como a formação de um agropolo fruticultor aconteceu nessa região
Episódio 4
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A chegada dos perímetros irrigados mudou a dinâmica do Vale do Jaguaribe, um dos oásis do Ceará em torno do rio Jaguaribe — o maior curso d’água do Estado e cuja bacia hidrográfica cobre mais de 50% do território cearense.

Essa importante região do semiárido nordestino, antes habitada por pequenos agricultores, foi escolhida na década de 1960, no período da ditadura militar, como prioritária nas políticas nacionais de irrigação.

Ao implementar essas obras em territórios onde os efeitos da seca são mais expressivos, um dos principais objetivos era melhorar a qualidade de vida da população através da produção agropecuária. Além disso, o aproveitamento dos solos aluvionares e o assentamento de famílias de agricultores sem terra seria uma maneira de fazer a reforma agrária.

Construção do canal principal de irrigação no Perímetro Irrigado de Morada Nova, em 1969(Foto: Reprodução/Acervo Dnocs)
Foto: Reprodução/Acervo Dnocs Construção do canal principal de irrigação no Perímetro Irrigado de Morada Nova, em 1969

Morada Nova foi o município piloto nessa experimentação de desenvolvimento rural, com a instalação do primeiro perímetro irrigado em 1970. A partir da década de 1980, com a construção do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi (PIJA), a Chapada do Apodi passou por significativas transformações.

No entanto, o mesmo projeto concentrou terras e intensificou conflitos agrários na região, principalmente devido à distribuição desigual de água.

O empreendimento impulsionou o cultivo de monoculturas em larga escala, majoritariamente voltadas para o mercado externo. A chegada de grandes empresas nacionais e multinacionais voltadas à fruticultura irrigada expandiu o agronegócio e agravou problemas como a expulsão de pequenos produtores e a apropriação de canais e aquíferos.

Os cultivos desenvolvidos no Perímetro Irrigado de Morada Nova variam entre grãos, como arroz e feijão; frutas, como banana, graviola, acerola e coco; gado para corte e produção de leite(Foto: Divulgação/Dnocs)
Foto: Divulgação/Dnocs Os cultivos desenvolvidos no Perímetro Irrigado de Morada Nova variam entre grãos, como arroz e feijão; frutas, como banana, graviola, acerola e coco; gado para corte e produção de leite

O POVO+ entrevistou o pesquisador Diego Gadelha, coordenador do Observatório da Questão Hídrica do Ceará (OQHICE), para entender o histórico de injustiça hídrica na região, sua relação com o uso de agrotóxicos e como a formação desse agropolo fruticultor cresceu em cima de desigualdades.

O Observatório é um projeto de extensão vinculado ao campus Fortaleza do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que cartografa e sistematiza dados sobre os conflitos hídricos do Estado.

Gadelha também explica o termo “latifúndio hídrico”, cunhado por ele, e como a convivência com o semiárido é ameaçada por essa concentração de terra e, consequentemente, de água.

 

 

O POVO+ — Professor, antes de partir para as problemáticas, gostaria que explicasse como a chegada dos canais irrigados mudou a dinâmica do Vale do Jaguaribe. Qual o objetivo desse projeto público e quais os seus principais impactos nessa região?

Diego Gadelha — A irrigação no Vale do Jaguaribe tem várias fases. De maneira geral, foi uma região escolhida pelo poder público federal e estadual para receber um conjunto de obras hídricas. Por décadas e décadas essa região foi sendo pontilhada, os seus rios e açudes foram sendo aprisionados.

Em ordem cronológica, três grandes açudes foram construídos para barrar os principais rios da região: Orós, Banabuiú e Castanhão. No caso do Orós e do Castanhão, o rio Jaguaribe; no caso do Banabuiú, o rio Banabuiú, criando uma estrutura de controle e armazenamento dessa água.

Os açudes, então, antecedem uma política de irrigação. Uma política de diligência sistemática a partir do aproveitamento racional dessas águas de açudagem começa mesmo no período da ditadura militar — com destaque para o primeiro perímetro irrigado na região, que é o Perímetro Irrigado de Morada Nova.

 

Linha do tempo: perímetros irrigados e expansão do agronegócio no Interior do CE

 

Hoje com 55 anos de implementação, foi construído ali no fim da década de 60 para início da década de 70, passando a operar em fases: primeira fase, segunda, terceira, até se consolidar como maior perímetro do Ceará. Ele capta água do rio Banabuiú, da planície aluvial de Morada Nova.

Essa foi a primeira experiência irrigada e serviu como um grande laboratório não só para o Vale do Jaguaribe e para o Ceará, mas para o Nordeste como um todo.

Centenas de hectares foram desapropriados, essa população que ocupava aquela área foi removida e tudo isso a cargo do governo federal, sobretudo do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs).

O Dnocs construiu um espaço distribuído em lotes, com canais de irrigação que captam água do rio, numa perspectiva de desenvolvimento induzido — na época centrado, principalmente, na cultura do arroz, tomate, milho, feijão e algodão.

Junto com Morada Nova veio um outro perímetro pequeno no Vale do Jaguaribe, no município de Jaguaruana. Na década de 80 vem o Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, esse primeiro fora da planície de inundação do rio.

A água é captada no rio Quixeré e sobe um desnível de mais de 100 metros de altitude até o topo da Chapada do Apodi, onde encontra solos super ricos e planos.

Vista aérea do Açude Castanhão, em Jaguaribara(Foto: JÚLIO CAESAR/O POVO)
Foto: JÚLIO CAESAR/O POVO Vista aérea do Açude Castanhão, em Jaguaribara

Essa obra marca uma transição na política econômica brasileira, com a entrada do Brasil no receituário neoliberal e uma mudança nessa política de irrigação.

Se na época de Morada Nova a prioridade era o assentamento de colonos, de pequenos agricultores, para que eles fossem transformados em camponeses e pequenos empresários, a transição já começa a diversificar aqueles que são selecionados para os perímetros irrigados. O Jaguaribe-Apodi já nasce com a perspectiva de integrar pequenos, médios e grandes proprietários.

E o quarto PI da região, já construído na década de 90 (a primeira fase no século XXI e a segunda fase já no governo Lula), foi o Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas.

Esse mais moderno, completamente pensado e estruturado já com todo um arcabouço jurídico, normativo e uma política de irrigação sobre a hegemonia do neoliberalismo consolidado no Brasil.

O Dnocs é responsável pela gestão operacional de 37 projetos públicos de irrigação, todos localizados em estados nordestinos: Maranhão (2), Piauí (6), Ceará (14), Rio Grande do Norte (5), Paraíba (3), Pernambuco (4) e Bahia (3)(Foto: Comunicação/Dnocs)
Foto: Comunicação/Dnocs O Dnocs é responsável pela gestão operacional de 37 projetos públicos de irrigação, todos localizados em estados nordestinos: Maranhão (2), Piauí (6), Ceará (14), Rio Grande do Norte (5), Paraíba (3), Pernambuco (4) e Bahia (3)

Isso já no período de reprimarização "Reprimarização é um processo em que um país passa a exportar mais produtos primários do que manufaturados." da nossa pauta de exportação, de comoditização "Comoditização é o processo de transformar bens, serviços, ideias e até pessoas em commodities, mercadorias vendáveis. É um fenômeno que ocorre em diversos setores da economia. " da nossa economia e, sobretudo, de ascensão de um consenso que o semiárido só iria se desenvolver a partir da fruticultura, que o casamento entre irrigação e essa cultura seria a porta de desenvolvimento do semiárido.

A construção do Castanhão e do Eixo das Águas é acompanhada da construção do canal de integração, cuja função é levar água até a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e, no percurso, atender alguns usos prioritários como os perímetros irrigados.

Todos esses projetos aconteceram no Nordeste como um todo, sobretudo no Nordeste semiárido, um espaço privilegiado para a difusão do pacote da revolução verde.

A revolução verde é esse projeto geopolítico, esse paradigma de produção sustentado por um tripé tecnológico: a mecanização agrícola, o uso de insumos químicos (leia-se agrotóxicos e fertilizantes), e uso de sementes geneticamente melhoradas.

"Essa obra marca uma transição na política econômica brasileira, com a entrada do Brasil no receituário neoliberal e uma mudança na política de irrigação." Diego Gadelha, pesquisador do IFCE

Então o que há de mais moderno na agricultura se desenvolve no semiárido de maneira mais intensiva nos perímetros irrigados. Eles são locus dessa agricultura moderna.

Porque, ao propiciar água, plantação e colheita o ano inteiro, propiciar ganhos de produtividade, propicia o uso mais intensivo dessas tecnologias que caracterizam essa cultura moderna que depois será chamada de agronegócio.

A fruticultura vai ser o carro-chefe dos perímetros irrigados, porque tem um alto valor agregado e também encontra uma posição de mercado de maior destaque, sobretudo para exportação.

Não que todo perímetro exporte toda a sua produção, mas há um espaço significativo da exportação para algumas culturas — com destaque para o melão, melancia e banana.

No entorno dos perímetros irrigados formam-se verdadeiros oásis em meio ao semiárido cearense(Foto: Comunicação/Dnocs)
Foto: Comunicação/Dnocs No entorno dos perímetros irrigados formam-se verdadeiros oásis em meio ao semiárido cearense

Consequentemente, há uma atração das maiores empresas de capital nacional e internacional. Junto com isso vem a mecanização agrícola, o uso de fertilizantes, agrotóxicos, biotecnologia de maneira geral.

São os espaços de maior produtividade, de maior rentabilidade e mais conectados às cadeias globais de valor. Essa é a função e o objetivo da agricultura irrigada: desenvolver o semiárido a partir desse paradigma e desse modelo de produção.

Com a transposição do rio São Francisco, as águas do Castanhão correm pelo Eixão das Águas. Nesse caminho, o Tabuleiro de Russas está estrategicamente posicionado.

Então toda a água que passa para Fortaleza, da transposição e do Castanhão, passa ao lado do Tabuleiro de Russas, tornando esse um perímetro privilegiado do ponto de vista da segurança hidráulica e, consequentemente, um dos mais cobiçados para a chegada de empresas de olho na fartura que esses recursos proporcionam e cada vez mais proporcionarão.

Açude Gavião sangrando(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Açude Gavião sangrando

Eles historicamente foram e seguem sendo os maiores consumidores de água outorgadas do Vale do Jaguaribe, e consequentemente do Ceará. Mais do que Morada Nova, que foi o primeiro perímetro, Jaguaribe-Apodi e Tabuleiro de Russas são considerados os perímetros mais modernos e rentáveis — e também aqueles que serão direta e indiretamente apropriados pelo agronegócio fruticultor.

O mais interessante é que o Jaguaribe-Apodi vai sendo invadido pelas empresas nacionais e multinacionais. Estudos do próprio Dnocs e do Ministério Público Federal (MPF) mostram que ele começou a ser grilado pelas bordas.

Empresas multinacionais e nacionais começaram a comprar ilegalmente, a invadir essas terras para cercar o perímetro irrigado e usar a água e essas terras férteis justamente por estarem próximas aos canais.

Os canais de irrigação são verdadeiros oásis do ponto de vista da distribuição e da segurança hídrica no Vale do Jaguaribe e no Ceará como um todo.

Cada perímetro irrigado compreende uma área dividida em vários lotes que são explorados na produção agrícola. Eles possuem uma infraestrutura de irrigação que leva água aos assentamentos, seja através de canais, drenos, estações de bombeamento ou adutoras(Foto: Comunicação/Dnocs)
Foto: Comunicação/Dnocs Cada perímetro irrigado compreende uma área dividida em vários lotes que são explorados na produção agrícola. Eles possuem uma infraestrutura de irrigação que leva água aos assentamentos, seja através de canais, drenos, estações de bombeamento ou adutoras

Esses perímetros estão cada vez mais dominados, os seus lotes, por médias e grandes empresas. Então essa água que, em tese, na proposta inicial, seria distribuída entre segmentos como pequenos, médios e grandes agricultores, técnicos agrícolas, profissionais de ciências agrárias, cada vez mais está concentrada em poucas empresas.

Elas vêm comprando, monopolizando, arrendando ou mesmo controlando o processo de compra dessa produção dentro do perímetro. A água que circula dentro deles está cada vez mais sendo apropriada por poucos usuários, que têm condições financeiras, técnicas, jurídicas e informacionais inclusive para se manter lá dentro nos períodos de seca.

As forças políticas ligadas à agricultura familiar, campesina e aos movimentos sociais do campo, de longa data, já denunciavam esse processo que a gente vem chamando de contrarreforma agrária vinculado à política dos perímetros.

Por que contrarreforma? Porque quando finalmente a água chega nesses territórios pelos canais e pelas obras hídricas, as populações são expulsas.

O caso do Tabuleiro de Russas tem um conjunto de matérias e estudos produzidos; a região onde foi implantada a segunda etapa era dominada pela agricultura familiar.

As comunidades de Lagoa dos Cavalos, Junco, Barbatão, Cipó, Sussuarana, eram todas comunidades que existiam no que hoje é a segunda etapa do Tabuleiro de Russas.

Eram comunidades que estavam em processo de transição agroecológica, sobretudo Lagoa dos Cavalos, que era referência nacional e internacional na produção de mel nessa perspectiva da agroecologia. Era um produto exportado para a Alemanha até. Lá havia criação de ovinos, caprinos, quintais produtivos, agricultura agroflorestal.

E toda essa experiência de algumas décadas de desenvolvimento foi anulada com a chegada do Tabuleiro de Russas, porque essas famílias foram desapropriadas.

Ruínas de casa na comunidade Lagoa dos Cavalos, em Russas(Foto: Reprodução/Facebook/Lagoa dos Cavalos)
Foto: Reprodução/Facebook/Lagoa dos Cavalos Ruínas de casa na comunidade Lagoa dos Cavalos, em Russas

Elas não tinham água em abundância garantida pelo Estado, não tinham cisternas de placa, barragens subterrâneas, mas a comunidade conseguiu desenvolver um conjunto de práticas agroecológicas, culturais e agronômicas que tornaram essa região super produtiva.

Então há esse processo de contrarreforma agrária que, ao contrário de distribuir a terra, a concentra. Ao concentrar terra, consequentemente eu concentro água na mão daqueles que serão selecionados para receber um lote, que nem sempre são as famílias impactadas, desapropriadas e expulsas daqueles territórios.

Até 2010 a gente tem um período de abundância hídrica na região. Em 2012 começa uma sequência de anos de baixa pluviometria, de baixa precipitação, e o Ceará entra nas suas maiores secas da história.

Em março de 2013, primeiro ano da última seca mais severa no Ceará, já havia sido registrada uma perda de 100 mil cabeças de gado(Foto: Reprodução/Arquivo O POVO)
Foto: Reprodução/Arquivo O POVO Em março de 2013, primeiro ano da última seca mais severa no Ceará, já havia sido registrada uma perda de 100 mil cabeças de gado

O Vale do Jaguaribe é intensamente atingido por essa seca. No transcurso dela, os grandes açudes vão perdendo água. O Banabuiú seca completamente, praticamente vai para o volume morto, o Castanhão também. O Orós resistiu um pouquinho mais.

Mas a oferta reduziu-se significativamente, e esse processo já desigual se intensifica no período da seca. A seca exacerba esse processo de injustiça hídrica que já é de longa data no Vale do Jaguaribe, porque a pouca água era apropriada por aqueles que têm poder econômico e político.

E quem tem poder econômico e político? Em primeiro ponto, a Região Metropolitana de Fortaleza, sobretudo o capital industrial localizado nos grandes eixos como Horizonte, Pacajus e o principal polo industrial hoje do estado do Ceará, que é o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).

OP+ — Em 2013, no auge da pior seca prolongada registrada no nosso estado, quando a população da região semiárida era abastecida por carros-pipa, o primeiro empreendimento da agropecuária Meri Pobo foi implantado no Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas. Para a produção frutífera em larga escala que tem crescido ao longo dos anos, a empresa tem obtido acesso facilitado à água do rio Jaguaribe. Você tem acompanhado esse projeto e sua expansão? É comum que haja uma distribuição desigual de águas nesses locais onde há políticas de irrigação?

Diego Gadelha — Mais preocupante que a chegada da Meri Pobo no período da seca foi a conexão entre o Vale do Jaguaribe e o CIPP. O complexo de mais de 19 mil hectares se torna um grande consumidor de água. Com as termelétricas e a siderúrgica, a demanda hídrica se torna gigante.

Se nossas indústrias num passado não tão distante, como a de calçados, não demandavam água em grande quantidade, o processo implantado no CIPP é intensivo, de exportação. Isso gera um estresse hídrico para a região do Vale do Jaguaribe, que precisa garantir água para esses empreendimentos de capital robusto, com grandes atores econômicos e políticos.

Eu acho que o CIPP e o Complexo Siderúrgico do Pecém (CSP) não podem sair do nosso horizonte quando a gente vai pensar o que foi o processo de gestão das águas durante a seca e o impacto disso para o Vale do Jaguaribe.

A CSP entra em funcionamento num dos piores anos dessa seca prolongada no Ceará. Em 2016 ela começa a se constituir e produz suas primeiras chapas de aço, bem quando o Castanhão bateu seu pior aporte.

Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP)

Então, além da expansão da fronteira agrícola no próprio Vale do Jaguaribe a partir dos perímetros irrigados e outros empreendimentos privados que constroem esse complexo sistema, há também espaços fora dos experimentos que são tão hidrointensivos quanto os que estão ligados.

Mas volto ao Complexo Industrial: esses empreendimentos não são desligados e alguns entram em operação durante a seca, gerando uma disputa por água entre os capitais industriais da RMF e os demais usuários do Vale do Jaguaribe.

E interessante que o Governo do Estado tomou um partido, no sentido de priorizar o capital industrial em detrimento do capital vinculado ao agronegócio.

Se você pegar as atas do comitê de bacia, quando se estabeleciam os processos de negociação sobre a distribuição de água, você vai perceber o registro do agronegócio, entre aspas, “chorando” por ter sido preterido pelo governo — que garante segurança hidráulica para o capital industrial e acaba minando a perspectiva de segurança hidráulica para o próprio agronegócio.

Ora, você pensa, se o agronegócio foi preterido, o que diria as comunidades rurais. Essas ficaram no último plano e literalmente passaram sede, perderam produção.

Ou seja, aqueles que não estavam diretamente conectados aos grandes açudes, e até mesmo aquelas comunidades que historicamente sempre tiveram água pela perenização do rio Jaguaribe, ficaram sem produzir.

O Eixão das Águas nunca deixou de correr água nenhum dia, e essa água correu para a RMF com o discurso de abastecer a população. Mas o que nós sabemos é que, além de abastecer a população, essa água também ia para a indústria e para o agronegócio.

No período de seca, contraditoriamente, também foi um período em que mais se expandiu a carcinicultura. O camarão foi uma das culturas que mais cresceu em produção hidrointensiva.

Além dos cultivos mais comuns, o Perímetro Irrigado de Morada Nova vem investindo na produção de crustáceos. A carcinicultura é um dos principais investimentos do Nordeste e o Ceará está entre os principais produtores deste segmento(Foto: Divulgação/Dnocs)
Foto: Divulgação/Dnocs Além dos cultivos mais comuns, o Perímetro Irrigado de Morada Nova vem investindo na produção de crustáceos. A carcinicultura é um dos principais investimentos do Nordeste e o Ceará está entre os principais produtores deste segmento

Então, seja o capital industrial, seja a agricultura, seja o camarão, nós temos três grandes frações de capital que impuseram à região um processo de injustiça hídrica nunca antes visto.

Esse modelo de desenvolvimento fez com que hoje alguns produtores não tivessem mais coragem de voltar a produzir. Nossas comunidades ribeirinhas perderam tudo, inclusive a esperança de produzir como antigamente, nos seus pomares e pequenos sítios na ribeira do rio Jaguaribe.

A Meri Pobo, para falar diretamente dela agora, é uma das empresas que tem área de produção dentro e fora dos perímetros irrigados.

A Chapada do Apodi é um contínuo territorial entre Ceará e Rio Grande do Norte onde se constrói um corredor de produção de frutos, com destaque para melão e melancia. Ela é extensa, pega vários municípios do Baixo Jaguaribe: Tabuleiro do Norte, Limoeiro do Norte, Quixeré, Jaguaruana, Russas, todos têm área nesse relevo sedimentado.

Existência de um perímetro irrigado em Russas foi um dos fatores decisivos para definição de investidores interessados em projeto industrial (Foto: EDIMAR SOARES)
Foto: EDIMAR SOARES Existência de um perímetro irrigado em Russas foi um dos fatores decisivos para definição de investidores interessados em projeto industrial

Se você for a Jaguaruana, você ficará impressionada. Porque a Meri Pobo construiu um canal privado gigantesco que capta água do rio Jaguaribe na passagem molhada de Jaguaruana. Parece uma obra de transposição construída pelo poder público.

É uma empresa de capital internacional que se instala em 2013 com um grande empenho na aquisição de terras, investimento no canal e um grande empenho na implantação de áreas ali em Jaguaruana. Com a seca, para não perder tudo, segue uma tendência de "lançar tentáculos" para captar água subterrânea.

Começa a escavar poços e garantir a continuidade do seu processo de produção. Os poços são conectados com sua estrutura hídrica já previamente montada, do seu canal privado e piscinas dentro da fazenda.

Com a expansão da empresa, um antigo açude foi incorporado (o antigo Açude do Amaral, hoje chamado de Açude Perereca) e também passou a garantir um pouquinho mais de aporte hídrico para a Meri Pobo.

"Nossas comunidades ribeirinhas perderam tudo, inclusive a esperança de produzir como antigamente, nos seus pomares e pequenos sítios na ribeira do rio Jaguaribe." Diego Gadelha, pesquisador do IFCE

Os grandes players, as grandes empresas produtoras dessa região têm mais área plantada fora dos perímetros do que dentro. Ao estarem fora, passaram a garantir água a partir dos aquíferos.

Isso trouxe implicâncias, porque como não havia mais chuva, os aquíferos não eram recarregados. Com a grande extração de água para manter a produção, esses aquíferos foram sendo rebaixados.

Grande parte dos agricultores que usavam água desses açudes e produziam em seus sítios ou pequenas propriedades perderam tudo. Porque os poços eram caros e eles não tinham condições técnicas. Perfurar poços cada vez mais profundos exige bombas caras, energia e tecnologia para manutenção.

Então nós temos aí um segundo mecanismo de injustiça que foi o processo de esgotamento dos aquíferos, que acabou tirando da jogada centenas de famílias camponesas que garantiam seu sustento a partir dessa água nos períodos de seca.

OP+ — A justiça hídrica é uma das bandeiras de luta de várias das comunidades rurais da Chapada do Apodi. Em Limoeiro do Norte, conversei com alguns representantes que apontaram que muitos moradores obtêm água dos mesmos canais que irrigam as fazendas que se apropriaram dessas terras. De alguma maneira essa questão está relacionada com o problema da pulverização de agrotóxicos nesse agropolo do Ceará (e seus efeitos)?

Diego Gadelha — Pois bem. Você me pergunta: mas qual a relação entre canais, abastecimento de água e agrotóxicos?

As empresas de abastecimento hídrico dos municípios que ficam nessa região, o SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) de Limoeiro, de Quixeré, por exemplo, instalam suas estações de captação de água dentro dos perímetros irrigados em um acordo: a água vai para o SAAE, o SAAE distribui essa água para as comunidades.

Qual o problema? Essa água corre por canais que passam por dentro de propriedades. Essas propriedades usam agrotóxicos. Então, não precisa ser muito inteligente para saber que esses agrotóxicos, de uma maneira ou de outra, seja pela lavagem do solo, seja pela pulverização aérea, vão acabar chegando aos canais de irrigação. De lá, seguem para as estações e chegam às residências, já que o tratamento feito é muito simples.

Não há, pelo que me consta, no Brasil ou no Ceará, nenhum tipo de tratamento, nem no mais moderno que a Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará) oferece, que remova a agrotoxicidade. Essas comunidades, durante muito tempo, beberam água diretamente dos canais de irrigação.

O PI do Baixo Acaraú é abastecido pelas águas do rio Acaraú(Foto: Comunicação/Dnocs)
Foto: Comunicação/Dnocs O PI do Baixo Acaraú é abastecido pelas águas do rio Acaraú

Essa questão era uma das bandeiras de luta do Zé Maria do Tomé, um líder comunitário da região que foi assassinado. Ele, durante muito tempo, denunciou esse processo de contaminação e essa injusta oferta hídrica. Somente depois de sua morte é que o problema foi parcialmente resolvido.

A prefeitura captou recursos da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e hoje a estação de captação de água fica no início do perímetro irrigado, ou seja, antes dos canais percorrerem os lotes.

A pulverização aérea amplifica esse processo de risco de contaminação da água pela deriva. O agrotóxico não atinge só o alvo, ou seja, as frutas que estão sendo pulverizadas. Nesse caso, sobretudo as bananas.

Tudo isso traz uma outra questão também: se você imaginar, se alguém quiser ter uma produção agroecológica dentro dos perímetros irrigados, tem o desafio de garantir que a água que vai utilizar não esteja contaminada por agrotóxico.

OP+ — Nesse sentido, como tem se desenvolvido o trabalho do Observatório da Questão Hídrica do IFCE? Quais são os focos de vocês e principais atividades?

Diego Gadelha — Vendo tudo isso e sentindo a necessidade de comunicar esse processo para a sociedade, sobretudo para a fração da sociedade que tem o direito à água negado, a gente constituiu o Observatório da Questão Hídrica do Ceará, com o objetivo inicial de sistematizar essas informações sobre o acesso à água.

Nosso primeiro foco foi organizar como se dá o acesso de água no Ceará a partir da política de outorgas, que são autorizações concedidas pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) para os usuários, como se fosse um direito de captar essa água.

A gente se depara com uma base de dados super bagunçada, muitos dados repetidos, erros. Nós passamos um pente fino e talvez nossos dados hoje são melhores que os dados que o próprio governo divulga.

Nós conseguimos construir um mapa, um panorama, um raio-x de quem acessa a água outorgada no Ceará. Quem são os grandes usuários, para que usam água, como usam e quem não tem acesso.

OP+ — Professor, você é responsável por criar o conceito de latifúndio hídrico. Poderia explicar o que essa definição significa e como ela se aplica no contexto cearense?

Diego Gadelha — A gente começou a entender que, assim como existem os sem terra, existem os sem água. Até aqueles que no passado tinham, perderam esse direito por uma política que acabou priorizando usos “mais rentáveis” segundo a métrica de desenvolvimento do Governo do Ceará. Daí que surge o termo “latifúndio hídrico”.

O Observatório tem esse objetivo de comunicar e visibilizar essa injustiça hídrica, de traduzir esses dados para as comunidades rurais, para as associações comunitárias, sindicatos, movimentos sociais da região do Vale do Jaguaribe.

A gente tem um banco de dados organizado. Entramos em contato com esses sujeitos oferecendo esses dados e uma análise deles para potencializar suas lutas e visibilizar esse processo de injustiça que se constrói, seja nos períodos de abundância, seja nos períodos de escassez hídrica.

AÇUDE Araras  sangrando em abril de 2024(Foto: Emanuell Coelho/ Especial para O Povo)
Foto: Emanuell Coelho/ Especial para O Povo AÇUDE Araras sangrando em abril de 2024

Esse é um conceito muito mais político do que “científico”, mas serve para visibilizar, já que o conceito de latifúndio é muito forte no imaginário social e já tem uma tradição científica em torno dele.

Não é só a terra que está concentrada no semiárido, mas também a água. Mesmo quando se constrói uma política hídrica de infraestrutura robusta, determinados sujeitos, setores econômicos e atividades produtivas são priorizados.

Há um processo de apropriação desigual da água para produção de mercadorias que vão circular nacional e internacionalmente.

"Não é só a terra que está concentrada no semiárido, mas também a água." Diego Gadelha, pesquisador do IFCE

É um espaço de produção que gera, então, a concorrência e uma disputa pela água. O entorno desses que têm o poder político, econômico e informacional precisa dividir as migalhas hídricas ou nem mais as migalhas.

Porque, em grande medida, algumas dessas regiões tiveram de fato a torneira cortada. Passaram a conviver com carro-pipa para garantir dignidade humana, animal e alguma cultura.

Quais lições nós tiramos? Eu diria que quase nenhuma. Não percebemos nenhuma mudança de visão do Governo do Estado, do governo federal a partir da última seca. A política de desenvolvimento econômico segue a mesma ou talvez se intensifique. Porque há, cada vez mais, uma retomada da produção de fruticultura irrigada na região e um conjunto de benesses como a liberação da pulverização por drone.

O crescimento dessa demanda hídrica em um cenário de seca produzirá cada vez mais escassez. Porque esses grandes empreendimentos seguirão tendo sua oferta hídrica garantida, mesmo que em algum momento reduzida.

Mesmo com a multiplicação de obras, mesmo com o refinamento de todos os processos de gestão e de legislação, o que se desenha é, na verdade, uma reprodução da injustiça histórica. Não há nenhum cenário de democratização ou de reversão desse modelo, nenhum cenário de incentivo a outros usos da água mais justos ou àqueles que perderam toda a produção.

OP+ — Considerando o histórico que você acompanha e as discussões do presente em torno desse assunto, como você analisa que será o futuro da questão hídrica para essas comunidades a cada dia mais cercadas pelo agronegócio?

Diego Gadelha — O cenário na Chapada do Apodi é de muita desesperança. Os agricultores não acreditam mais que conseguem e aqueles que ainda apostam nisso trazem na memória o prejuízo que tiveram, todo o sofrimento que foi ver seu poço secando e suas produções morrendo.

Muitos desses agricultores abandonaram suas terras, venderam ou passaram a produzir só uma pequena quantidade ali no sequeiro mesmo, ou seja, só quando chove. E passam a vender sua força de trabalho para as indústrias e as próprias empresas do agronegócio que sugaram essa água.

Existe um projeto de matar a agricultura camponesa, a agricultura familiar. Ao priorizar o uso de defensivos, um determinado caminho para as águas, determinados tipos de usuário, acaba matando a agroecologia que tenta se desenvolver nessa região.

A água tem um destino, a água tem uma prioridade, um caminho preferencial.
Ao contrário do que se imagina, esse fluxo não tem nada de natural. Na verdade, cada vez mais, se você quiser saber para onde vai a água, entenda onde está o poder político e econômico.

E, por ora, o poder político e econômico está nas mãos do agronegócio, com destaque para o agronegócio fruticultor, e para o capital industrial que se desenvolve no CIPP.

E entram em cena nessa disputa, cada vez mais, as indústrias de energia renovável, energia solar e eólica, pressionando também por água.

 

 

No próximo episódio

O perigo dos alimentos ultraprocessados não é novidade, mas ainda pode assustar. Na pesquisa “Tem veneno nesse pacote”, o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) constatou a presença de agrotóxicos em produtos populares e até direcionados às crianças, como bolo pronto e bebidas lácteas. No quinto episódio dessa série de reportagens sobre os impactos dos agrotóxicos, descubra se o que chega à sua mesa é nocivo para a sua saúde.

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Os impactos dos agrotóxicos

Série de reportagens mostra os efeitos da aprovação do uso de drones na pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará a partir de Limoeiro do Norte, agropolo fruticultor e terra de Zé Maria do Tomé. Na esteira desse tema, o especial aborda o legado do agricultor assassinado em 2010 e investiga as camadas de um problema silencioso e invisível que cresce em solo brasileiro