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"Estamos aqui somente para sobreviver": a história dos Warao em Fortaleza
Reportagem Seriada

"Estamos aqui somente para sobreviver": a história dos Warao em Fortaleza

Ouvimos a história de Wilmer Parede e seus familiares que saíram da Venezuela em busca de refúgio. Na capital cearense, enfrentam aluguéis leoninos, falta de saneamento básico e desamparo institucional
Episódio 1

"Estamos aqui somente para sobreviver": a história dos Warao em Fortaleza

Ouvimos a história de Wilmer Parede e seus familiares que saíram da Venezuela em busca de refúgio. Na capital cearense, enfrentam aluguéis leoninos, falta de saneamento básico e desamparo institucional
Episódio 1
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Wilmer Parede é o único da família com carteira de trabalho assinada. Sai de segunda a sábado pela manhã, nunca antes de orientar alguma das mulheres a comprar um frango a ser repartido entre todos ou de instruir aos homens as tarefas a serem cumpridas.

Ao sair pelo portão raramente trancado das duas casas alugadas no Centro, ele deixa os mais de cem familiares, indígenas venezuelanos refugiados em Fortaleza da etnia Warao, para os afazeres do dia. Nesse período, as crianças brincam pela casa e nas calçadas ou acompanham os adultos na tarefa cotidiana de pedir esmolas.

Mais de 53 mil venezuelanos migraram ao Brasil em busca de refúgio, dos quais mais de 10 mil pessoas são Warao.(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Mais de 53 mil venezuelanos migraram ao Brasil em busca de refúgio, dos quais mais de 10 mil pessoas são Warao.

A comunidade que se formou na capital cearense é parte dos mais de 53 mil venezuelanos que, desde 2013, migram para o Brasil em busca de refúgio. O fluxo migratório se acentuou entre 2019 e 2020, fazendo da Venezuela o país de origem da maioria dos refugiados vivendo em território brasileiro. Entre eles, mais de 10 mil pessoas são Warao.

No Centro de Fortaleza, vivem cerca de 20 famílias da etnia indígena venezuelana. Diariamente, os homens, as mulheres e as crianças Warao precisam ir às ruas alencarinas para arrecadar ao menos 20 reais diários para o aluguel. O valor é cobrado para cada família, somando 600 reais por casal e totalizando 12 mil reais mensais para o dono do espaço. Quem entra no local, não entende o valor.

As casas geminadas começam por um longo corredor com piso de lajotas — muitas vezes lascadas ou saindo do lugar. À direita, os quartos guardam redes, com mochilas e comidas empilhadas no chão. Em um dos imóveis, o corredor leva a uma área um pouco mais ampla, com dois a três banheiros de portas quebradas e mais redes penduradas em pilares.

Cada família deve pagar R$ 20 diários de aluguel(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Cada família deve pagar R$ 20 diários de aluguel

Os banheiros jorram água sem parar e quem entra para usá-los precisa equilibrar pedaços de madeira em substituição às portas. Depois, um pequeno corredor dá para mais dois quartos e, enfim, o quintal.

Ao fundo, uma árvore frondosa pinta de verde a área externa cimentada, onde penduram-se as roupas que foram lavadas em bacias no chão. É também no chão onde as mulheres cozinham, improvisando um fogão com uma pequena grelha pousada em um monte de carvão e madeira queimados.

Para os Warao, o sentimento é de “abandono”: “Não sei quando (a ajuda) vai chegar, que dia virá, estamos esperando… Nem sequer mandam mensagem para nós. Mesmo que não venham, poderiam mandar mensagem”, desabafa Wilmer. “Se não vêm aqui, se não mandam mensagem, como vamos fazer? É como se fosse sem governo, como se dormíssemos ao relento.”

 


Em resposta ao desamparo, Estado e Município afirmam que as famílias estão ou reconhecidas como refugiadas, ou com processo de pedido de refúgio em andamento, além de estarem cadastradas em CadÚnico, Bolsa Família, Aluguel Social e outros programas de assistência social. Doações de organizações não governamentais, como a Associação Emaús Terra e Luz, e de pessoas físicas também chegam ocasionalmente.

Até o momento, nenhuma das estratégias traz impactos significativos e positivos ao cenário, muito menos atende aos anseios da população. O que eles querem na verdade é simples: uma casa.


O sonho de uma casa para todos

Wilmer lembra do tempo de garoto. Morava nas montanhas do Delta Amacuro, estado venezuelano amazônico localizado no Delta do rio Orinoco, fronteiriço à Guiana e a Trindade e Tobago. Ele procura na mente as palavras para definir o verão (época mais seca) e o inverno, e desanda a descrever o que chamava de lar: havia uma grande maloca, onde todos os Warao moravam e dormiam juntos.

Havia espaço para as crianças brincarem incansavelmente — ele gostava do trompo, o pião —, enquanto os mais velhos responsabilizavam-se por delegar tarefas à comunidade. Muitas vezes Wilmer acompanhou o pai para caçar com armadilhas. Na época seca, a montanha ficava tão limpa que podia-se caminhar “sem pressa”, sem sujar nada das roupas, até que alguém encontrasse um poço para pescar.

Sobre o povo Warao

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Em julho, agosto e outubro, a dieta estava recheada de caranguejos capturados nas áreas de manguezais do rio Orinoco. Os pratos tinham a sempre presente yuruma, um sagu de buriti (em espanhol, o buriti chama-se moriche). O arroz, macarrão e similares não eram consumidos, e só foram introduzidos quando a alimentação venezuelana passou a depender dos produtos importados dos Estados Unidos, por Trindade e Tobago. A comida era compartilhada entre todos.

Essa lógica de casa coletiva é carregada pelos Warao durante os anos de migração Brasil adentro. “E isso vivo aqui: quando consigo dinheiro, compro comida para todos; o dia que chegam as cestas básicas, dividimos e cozinhamos para toda a casa”, conta Wilmer. “Como passo o dia trabalhando, deixo dinheiro com a mulher de manhã para comprar frango e cozinhar para todos e quando chego, no fim do dia, me conta como foi o dia, se todos comeram, como foi com as crianças…”

De certa forma, ele virou uma liderança no contexto da casa no Centro, já que o cacique Orlando precisou mudar junto a outras famílias para a Maraponga. O espaço das casas geminadas no Centro virou minúsculo para as centenas de pessoas que lá moravam, causando a separação física entre eles. Mesmo assim, o cacique visita sempre que possível e as comunicações via WhatsApp são constantes.

Em julho, as famílias receberam uma doação de 20 cestas básicas da Associação Emaús Terra e Luz (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Em julho, as famílias receberam uma doação de 20 cestas básicas da Associação Emaús Terra e Luz

O ideal é estarem juntos. Mais que um aluguel social de R$ 420 — insuficiente para pagar o valor mensal cobrado por família —, eles querem uma casa grande, que possa abrigar todos os Warao residentes em Fortaleza. Uma estrutura que permita às mulheres ficarem em casa, cozinhando, cuidando das crianças e produzindo artesanato, evitando assim que elas precisem ir às ruas com as crianças para pedir esmolas.

Uma casa ampla com espaço para as crianças brincarem e estudarem, para que os adultos possam sentar e conversar. Uma certeza de abrigo para que os homens também tenham tranquilidade de ir trabalhar e voltar com dinheiro para sustentar a vida, sem preocupações com valores diários de aluguel, de luz e de água, muito menos com as péssimas condições de saneamento básico. Basicamente, um espaço que garanta o exercício da vida digna em coletivo.

“Conversamos com muita gente do governo, mas, não sei, nos abandonaram. Faz muito tempo que não vêm aqui. Não sei o que está acontecendo com o governo. Por isso, vamos pedir nas ruas”, segue Wilmer.

Pelo relato das famílias, a última (e única) visita governamental deste ano aconteceu em abril. “Se o governo nos ajudar, viveremos um pouquinho melhor. As mulheres não vão precisar sair nas ruas com as crianças, vão poder ficar em casa e trabalhar com miçangas, colares, artesanato. Mas como temos que pagar aluguel e comprar alimento, saímos para as ruas todos os dias”, afirma, como se precisasse se justificar.

Quatro anos após a chegada dos primeiros refugiados venezuelanos em Fortaleza, ações pontuais foram tomadas pelos governos desde 2021. Foi somente em março de 2023 que órgãos públicos sentaram à mesa para coordenar e traçar ações conjuntas de identificação e inclusão dos Warao nas políticas de assistência social. A criação do grupo de trabalho foi coordenada pela Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE), que entende: algo precisa ser feito.

 

 

Afinal, não há para quem voltar na Venezuela

A crise no país vizinho remonta a 2013, ano da morte do então presidente Hugo Chávez. O governante impulsionou diversas melhorias no país, especialmente no que tange o direito à moradia. Não eram estranhos os mutirões para construção de casas, e mesmo a comunidade de Wilmer Parede recebeu casas “bem estruturadas”. De acordo com Pedro Carrano, analista internacional especializado na Venezuela, foram nove milhões de moradias populares construídas entre 2011 e 2019.

No entanto, diversos fatores desestruturaram a Venezuela a partir no começo da década de 2010: “A crise econômica mundial que eclodiu em 2008 passa a impactar nossos países a partir de 2012, 2013; a morte de Chávez, que era uma liderança com diversas questões bastante centralizadas nele; a queda do preço do petróleo… Tudo isso produz uma crise e o governo de Nicolás Maduro já assume em uma conjuntura muito mais difícil”, comenta Pedro.

O último empurrão para a crise foi o decreto da Venezuela como país inimigo por parte dos Estados Unidos da América, durante o governo de Barack Obama em 2015. “Ela é colocada na lista de países que inclusive são considerados terroristas pelos EUA. Mais tarde, em 2017, o governo Trump impõe um embargo econômico e financeiro muito grave contra o país. O próprio Trump admitiu recentemente que o objetivo era derrubar Maduro para ter acesso mais fácil às reservas de petróleo”, completa o analista.

 

 

Com a crise econômica, os Warao aproveitaram o tempo do caranguejo para vender os crustáceos na fronteira com Trindade e Tobago, de maneira que pudessem comprar as comidas que chegavam dos EUA. Com o bloqueio econômico, a comida simplesmente deixou de chegar.

“Na Venezuela, para sairmos para outros países, nos faltou primeiro os remédios (sic); depois, gasolina; acabou também a comida – arroz, espaguete, farinha de trigo… Por isso viemos para o Brasil, porque nos faltava tudo. Também nos faltou roupas, sapatos… (sic)”, descreve Wilmer.

A sanção à Venezuela cortou o suprimento de alimentos que os Warao compravam(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A sanção à Venezuela cortou o suprimento de alimentos que os Warao compravam

Foi assim que ele e os familiares decidiram deixar suas casas para enfrentar anos de migração: “Abandonamos porque só casa não alimenta. Essa comunidade hoje está toda vazia. Restam umas três famílias, que nos mandam notícias e fotos”.

De ônibus, o grupo viajou até Santa Helena, município venezuelano na fronteira com o Brasil. Foi em outubro de 2017 que entraram no território brasileiro, por Pacaraíma (RR) e, então, Boa Vista (RR). Chegaram em Fortaleza em 2020, após anos de viagem pelo Brasil à procura de sobrevivência. Veja a rota de Wilmer e muitas outras famílias Warao:


 

Sempre conectados, os Warao indicam quais cidades têm mais ou menos oportunidades. É assim que os familiares decidem os destinos, trabalhando para arrecadar dinheiro suficiente para o transporte, majoritariamente em ônibus.

Dos muitos municípios em que Wilmer viveu, Fortaleza segue sendo a melhor opção. Apesar da pouca assistência governamental e a inexistência de um plano municipal de acolhimento ao migrante, a Capital é viável porque ainda se dá dinheiro nas ruas.

“Aqui, de verdade, viemos e ficamos porque, quando alguém vai para a rua, conseguimos alguns trocados para pagar o aluguel e para comprar alimentos”, conta. “Em outras cidades, como Natal e Teresina, não conseguimos (doações) como aqui. Estamos aqui não para ser milionários; viemos somente para sobreviver.”

 

 

As condições de vida atuais ainda são melhores do que as perspectivas na Venezuela. “Até este momento não sabemos como está a situação, como tem sido viver lá. Vejo notícias de que está piorando e mais pessoas estão saindo para outros países”, comenta.

Sequer há espaço para a saudade. Questionado sobre a possibilidade de um dia retornar à casa, Wilmer responde que até pode ir para passear por dois ou três dias, se um dia tiver dinheiro. Porém, regressar definitivamente deixou de ser uma opção. “Quase já não tem Warao vivendo lá. Toda a comunidade Warao do Baixo Delta já está aqui no Brasil”, reforça.

As 80 casinhas foram engolidas pelo mato, sozinhas, sem nunca mais ver os milhares de Warao do delta venezuelano. Ao fim do zigue-zague de mais de 10 mil quilômetros, o futuro está sempre à frente — na próxima oportunidade de emprego, no local mais acolhedor, na perspectiva de uma vida melhor para si e seus menores.

 

Já o governo, caminhou muito pouco

“Apesar de a gente ter esse fluxo grande há algum tempo e já ter acionado o município de Fortaleza, a gente caminhou muito pouco na garantia de direitos dessa população”, avalia Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPCE. A defensora pública admite a dificuldade em contabilizar o total de pessoas a serem atendidas.

Segundo a Secretaria de Proteção Social (SPS), cerca de 26 famílias Warao se encontram em condição insalubre na Capital, dividindo cortiços e moradias precárias em regiões dos bairros Parangaba, Centro e Maraponga. Conforme Wilmer, somente no Centro vivem 20 famílias — cada uma com pai, mãe e, em média, seis crianças.

“Essa situação habitacional é algo bem preocupante, tanto na perspectiva da saúde como na perspectiva da segurança alimentar. Então, nós oficiamos a Secretaria de Direitos Humanos do Município, principalmente para fazer o cadastro dessas pessoas e para a inserção das crianças na escola”, pontua Mariana. No último dia 9 de agosto, a DPCE e a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizaram uma Ação Civil Pública para que o município de Fortaleza e o Estado do Ceará providenciem políticas públicas direcionadas aos Warao. 

Entendendo o refúgio

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As instituições pedem que seja garantida a prestação integral do serviço de acolhimento institucional, incluindo moradia, educação, alimentação, bem como o atendimento integral à saúde, considerando a grave situação humanitária de abandono em que os refugiados estão inseridos. Em nota, a Prefeitura afirma que presta assistência às famílias desde 2021 “com ações para diagnóstico socioeconômico, inclusão em programas sociais de transferência de renda e de moradia, além de apoio com serviços socioassistenciais, atendimento de Saúde e inclusão na rede municipal de Educação”.

Jamina Teles, coordenadora do Programa Estadual de Atenção ao Migrante e Refugiado do Ceará, crava 20 de janeiro de 2021 como a data da primeira visita ao grupo Warao. “Era um grupo de cinco famílias que moravam na Parangaba. Era tempo de pandemia e atuamos logo na questão da vacinação (contra a Covid-19)”, lembra.

Fortaleza ainda não tem um plano municipal de assistência ao refugiado(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Fortaleza ainda não tem um plano municipal de assistência ao refugiado

A coordenadora aponta que atua em articulação direta com uma indigenista especializada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a qual auxilia na compreensão com relação à cultura e aos costumes warao. Ela enfatiza ainda que são feitas articulações com os municípios, a fim de garantir que os direitos sejam resguardados.

A Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará, criada em fevereiro de 2023, é atualmente a responsável por coordenar e implementar ações de atendimento aos migrantes e aos refugiados e está em estruturação.

“Já está em pauta o desenvolvimento de uma política estadual de atenção ao migrante e ao refugiado, em articulação com o Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública e em consonância com a criação de uma política nacional. Essa política deve considerar as especificidades da pauta e as principais necessidades que devem ser atendidas para garantir a dignidade humana daqueles que chegam ao Estado", garante em nota. Enquanto os trâmites administrativos caminham no tempo burocrático, as demandas dos Warao estão na ponta da língua de Wilmer.

 

 Soluções efetivas demandam trocas e diálogo

“A vontade política é um determinante nessas ações. Ela é fundamental para ditar o que os governos locais têm feito, como os governos locais têm lidado com essa pauta”, aponta Marlise Rosa, antropóloga que trabalha junto aos Warao no Brasil há sete anos. “A consulta e o diálogo, na maioria dos casos, não ocorrem. E não ocorrem porque ainda opera de modo muito contundente no imaginário social a ideia do indígena enquanto intelectualmente incapaz.” Entre as questões mobilizadas, está o acesso à educação formal.

Wilmer comentou sobre "brigas" envolvendo as crianças Warao durante o período na escola, possivelmente casos de bullying(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Wilmer comentou sobre "brigas" envolvendo as crianças Warao durante o período na escola, possivelmente casos de bullying

Em 2022, “doze ou dez crianças foram matriculadas em uma escola por ali depois da avenida 13 de Maio”, conta Wilmer. “As crianças iam caminhando todos os dias, um primo levava e trazia, mas as crianças, como são crianças, às vezes vão correndo e passam na frente de ônibus, carro, moto… Muito perigoso.”

Como precaução, as famílias chegaram a combinar corridas com um taxista conhecido que cobrava, diariamente, R$ 15 na ida e R$ 15 na volta — um total mais caro que a diária do aluguel. “Depois de um mês, as crianças não foram mais, porque era muito longe. Falei muito com as pessoas para fazer uma mudança para escolas mais próximas e não entenderam (a necessidade)”, aponta o líder do grupo familiar.

Além das dificuldades linguísticas e culturais, os impasses cruzam as questões práticas cotidianas: como manter essa rotina de deslocamentos quando nem o básico de sobrevivência é uma certeza? O deslocamento foi inviável inclusive para os adultos, que tiveram aulas de português ofertadas em um Centro de Educação de Jovens e Adultos nas proximidades da avenida João Pessoa.

Em nota, a Prefeitura aponta que foram viabilizadas vagas na rede pública na Educação Infantil, no Ensino Fundamental até a Educação de Jovens e Adultos. “Atualmente, 128 estudantes venezuelanos, entre crianças, adolescentes e adultos, estão regularmente matriculados na rede municipal de ensino”, indica, sem precisar quantos são Warao.

Para as famílias, o ideal seria contar com educação dentro do próprio abrigo público. Se assim não for possível, ao menos vagas em locais mais próximos à moradia ou então apoio para o transporte, além da presença de educadores sociais — como é ofertado em outras capitais brasileiras "Em Boa Vista, a Acnur ofereceu, em 2022, apoio financeiro para as famílias levarem os filhos às escolas. Já em Teresina, crianças e adolescentes de 6 a 17 anos são alfabetizados em português, espanhol e Warao, com o apoio de educadores sociais." para seus parentes.

 

E com os parentes seguem as tradições

Nas lembranças de yurumas e caranguejos, Wilmer nunca deixa de mencionar o canobo. Ele é o espírito superior, muito importante e por vezes perigoso. Antes de qualquer celebração, os anciões que sabiam comunicar-se com o canobo deveriam avisá-lo das festas e pedir permissão. Quando concedida, a ele eram ofertados bocados de yuruma, folha de moriche e tabaco: “Para que canobo fume e se acalme”, explica.

Por outro lado, se a festa seguisse adiante sem aviso ou, pior, sem autorização, o canobo aplica castigos. "Ele é um espírito muito perigoso", reforça Wilmer, relatando caso recente. Em Natal (RN), conta, um grupo Warao teria celebrado sem perguntar ao espírito; três dias depois, todas as crianças adoeceram.

O canobo também pode se manifestar dentro do corpo dos indígenas. Por isso, todo mal estar, desconforto, náusea e dores corporais devem ser investigados por um curandeiro antes de se acionar os locais de saúde institucionalizados.

 Mito Warao

Em Maceió, indígenas Warao recebem barco da prefeitura para reconstruírem suas vidas através da pesca i
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Clique na imagem para ler um dos mitos fundadores Warao, conforme versão da jornalista e escritora Warao Yordana Medrano

“Às vezes, o mal estar é o canobo. E se for, tem que ir a um senhor para curar antes de ir para o hospital — isso depois de ter a autorização do canobo. Se vai antes para o hospital, também morre, porque esse espírito que está em nós não quer soro, nem nada disso”, descreve.

Isso não significa que os Warao nunca vão ao médico. Wilmer tem contato com alguns profissionais da saúde e mobiliza a família para receber vacinas recomendadas e para as mulheres grávidas realizarem o pré-natal. “Quando preciso, vamos para a UPA, para o hospital, porque aqui o hospital é para todos, não só para os brasileiros.” Entre o warao, o espanhol, o inglês e o português eles conseguem se comunicar com os saberes médicos institucionalizados, ainda que não haja um serviço específico para os imigrantes "No Brasil, Porto Alegre é pioneira em ter um programa de mediadores interculturais dentro da Secretaria da Saúde. Desde que iniciou na capital gaúcha, em outubro de 2021, até maio de 2023, foram realizadas 1.459 ações, com a inclusão de 222 imigrantes." e refugiados nas secretarias de saúde locais.

Entre indas e vindas, mais de cem indígenas warao vivem em Fortaleza.(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Entre indas e vindas, mais de cem indígenas warao vivem em Fortaleza.

Desde o começo na crise da Venezuela até a longa migração pelo Brasil, poucos dos familiares de Wilmer tiveram a oportunidade de aprender a ouvir o canobo, a cantar canções específicas para cada celebração ou a curar. “Meu pai sabia de tudo isso, nós não aprendemos. Às vezes, há um que sabe cantar as canções”, comenta.

Apesar disso, a cultura dos Warao segue resistindo. “As culturas estão sempre num processo de reelaboração, de transformação. O fato de uma dada cultura não se manter igual a como ela era anteriormente não significa que houve um rompimento”, ressalta a antropóloga Marlise Rosa. “Obviamente, o processo de deslocamento faz com que haja transformações sociais e culturais. Isso é inevitável. Mas essas transformações poderiam também ocorrer se eles permanecessem na Venezuela.”

Entre tantos desafios cotidianos, saudades desbotadas e futuros incertos, os milhares de Warao no Brasil seguem lutando por vida digna. Portão adentro no Centro de Fortaleza, a família de Wilmer vive a cada dia. Portão afora, trabalha incansavelmente.

Contam os centavos enquanto sonham com uma casa para que possam unir-se novamente aos familiares espalhados pela Parangaba e pela Maraponga. Com Wilmer, a palavra final: “Aqui ficarei (em Fortaleza) enquanto tiver um trabalho. Se estou bem, sempre estarei aqui”.

 

 

Metodologia

Para este material foram consultados dados relacionados à população refugiada no Brasil a partir dos dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), extraídos tanto do Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ) e do Painel interativo das decisões de mérito da Conare.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.

 

 

Por trás da pauta

As repórteres Catalina Leite e Marcela Tosi comentam sobre os bastidores, a experiência e as impressões de produzir a reportagem especial "Indígenas Warao em Fortaleza":

  • Textos Catalina Leite e Marcela Tosi
  • Edição Regina Ribeiro e Fátima Sudário
  • Coleta e visualização de dados Catalina Leite e Marcela Tosi
  • Identidade visual Jansen Lucas
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Indígenas Warao em Fortaleza

Série de reportagens investiga a situação dos indígenas Warao, venezuelanos refugiados, em Fortaleza