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A Capital e o capital: especulação causa desvio de função social da moradia digna
Reportagem Seriada

A Capital e o capital: especulação causa desvio de função social da moradia digna

Cada dia mais gente, cada dia mais raro, cada dia mais caro: a dificuldade de acesso à moradia pela população de Fortaleza é um dos principais problemas ligados ao desenvolvimento urbano da cidade — e a especulação imobiliária põe um obstáculo ao real exercício desse direito
Episódio 3

A Capital e o capital: especulação causa desvio de função social da moradia digna

Cada dia mais gente, cada dia mais raro, cada dia mais caro: a dificuldade de acesso à moradia pela população de Fortaleza é um dos principais problemas ligados ao desenvolvimento urbano da cidade — e a especulação imobiliária põe um obstáculo ao real exercício desse direito
Episódio 3
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Os tapumes que cercam os canteiros de obras a cada esquina da área nobre de Fortaleza não negam: a cidade se expande — ou pelo menos um pedaço dela.

Enquanto se redesenha a cada novo tijolo colocado, a paisagem urbana divide-se entre o que foi construído pela natureza e o que passou a ser incorporado a esse cenário: um lado se agiganta, o outro se amiúda.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-06-2023: Movimentação e obras no Calçadão da Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-06-2023: Movimentação e obras no Calçadão da Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)

Protegidos por cercas ou ladeados por muros, terrenos aguardam o melhor momento, a melhor negociação, as condições ideais para se juntar ao conjunto de empreendimentos que crescem para além da faixa litorânea e moldam o novo perfil, horizontal e verticalmente, do mercado imobiliário na Capital.

O avanço da expansão imobiliária ganha forma em grandes obras da construção civil, setor que contabiliza mais de 70 mil empregos "Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) de junho de 2023, o Ceará possui 71.889 pessoas empregadas no setor de construção." no Ceará e se solidifica como um dos segmentos mais pujantes da economia cearense.

CONSTRUÇÃO CIVIL é um dos segmentos que avançam (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima CONSTRUÇÃO CIVIL é um dos segmentos que avançam

Na Capital, cidade do design e que destaca-se pela produção arquitetônica, esse fator se alicerça em um tripé que movimenta toda uma cadeia econômica: desde projetos e aquisição de materiais até as primeiras chaves entregues.

Na sombra dessa monumentalidade, porém, moram fragilidades. A concentração de investimentos em regiões valorizadas revela a visão de Fortaleza como um ativo imobiliário e afeta decisões públicas sobre onde alocar recursos — um ciclo que se retroalimenta, já que estimula novas construções; mas que também produz desigualdades, já que separa os moradores pela condição financeira e impede o cumprimento da função social dessas propriedades.

Essa valorização de certos espaços em detrimento de outros, segundo especialistas, encontra terreno fértil na abertura proporcionada por gestões do Poder Público que, através de investimentos e parcerias, escolhem privilegiar e dotar esses locais com a infraestrutura necessária para a habitação e circulação de pessoas com maior poder aquisitivo.

Fortaleza, Ce Br 02.01.23 Construção de prédio de alto padrão no Bairro Meireles (Fco Fontenele/O POVO)(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Fortaleza, Ce Br 02.01.23 Construção de prédio de alto padrão no Bairro Meireles (Fco Fontenele/O POVO)

Dessa forma, o preço da terra urbana fica condicionado a fatores como localização, disponibilidade de transporte, equipamentos públicos de prestação de serviços à disposição, qualidade ambiental do entorno e oportunidades de trabalho, por exemplo.

Ao passo em que investe e assume os riscos dessas operações, o setor público escanteia demandas das camadas de baixo poder aquisitivo, que perdem o direito à cidade. Se misturam aos entulhos da destruição do patrimônio histórico, a degradação ambiental e as ruínas de desapropriações que expulsam quem tenta se manter no lugar de origem.

O espaço urbano passa a ser produzido e planejado segundo a lógica da classe dominante e conterrâneos dão lugar à entrada de capital, grande parte de estrangeiros, que veem a terra como mais uma fonte de lucro.

Criança, em meio aos destroços, procura por restos de construção. Situação da comunidade Alto da Paz após despejo, no bairro Vicente Pinzón(Foto: Deivyson Teixeira/O POVO)
Foto: Deivyson Teixeira/O POVO Criança, em meio aos destroços, procura por restos de construção. Situação da comunidade Alto da Paz após despejo, no bairro Vicente Pinzón

Um dos motivos para que haja esse alinhamento é o processo de ocupação da Capital — guiado, na maioria das vezes, pelo interesse do capital. É o que sinaliza a arquiteta Carolina Guimarães, membro do Coletivo Quintau, projeto que atua em eixos como direito à cidade, educação popular, arte e assessoria técnica em Fortaleza.

“Existe, no Brasil inteiro, uma questão em relação à distribuição de terras, que não foi justa. A Lei de Terras, em 1850, prejudicou muito a divisão de forma igualitária, não é à toa que a gente tem tantos movimentos de reforma agrária no campo e na cidade”, analisa.

Na cidade, salienta a arquiteta, a lógica capitalista e de concentração se reflete historicamente, já que era uma grande gleba e foi dividida entre quatro ou cinco famílias, as mesmas que são proprietárias de terra até hoje.

A arquiteta Carolina Guimarães faz parte do coletivo Quintau, uma organização que atua em eixos como direito à cidade, educação popular, arte e assessoria técnica em Fortaleza(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal A arquiteta Carolina Guimarães faz parte do coletivo Quintau, uma organização que atua em eixos como direito à cidade, educação popular, arte e assessoria técnica em Fortaleza

Ter terra é ter poder, porque é, necessariamente, ter uma porção do território. E não estou falando de pequenos proprietários que têm um lote para construir a casa de algum familiar, estou falando de grandes proprietários que, ao terem terra, também têm um poder grande de decisão sobre o território e de negociação com o Poder Público”, concebe.

Para a arquiteta, é importante quebrar o mito de que houve um crescimento desordenado responsável por originar problemas como a segregação entre ricos e pobres que hoje é percebida, inclusive, em tentativas de despejo ou remoção.

“Há um histórico de planos diretores, o primeiro de 1933, quase um século que tem se planejado para a cidade, e nesses planos existem políticas de segregação socioespacial. Quando houveram as secas e a migração intensa de pessoas para a Capital, o Poder Público fez os campos de concentração, para onde elas eram encaminhadas. Muitos deles originaram grandes assentamentos precários que hoje são comunidades como o Moura Brasil e o Pirambu”, comenta.

Segundo Carolina, nenhum planejamento é neutro, porque “carrega uma ideologia que decide e beneficia determinados agentes e isso gera impactos e consequências. Remover e reassentar pessoas de bairros que hoje são nobres para conjuntos distantes na periferia, a exemplo do Conjunto Palmeiras, é projetual”.

MORADORES do Conjunto Palmeiras saiam de suas casas ontem, sem apoio da Defesa Civil(Foto: Evilázio Bezerra)
Foto: Evilázio Bezerra MORADORES do Conjunto Palmeiras saiam de suas casas ontem, sem apoio da Defesa Civil

Para o estudante Ricardo Lima, integrante do Centro de Assessoria Jurídica Universitária da UFC (Caju), a especulação imobiliária é um dos grandes obstáculos para a concretização do direito à moradia, mas o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor de Fortaleza elencam alguns instrumentos da política urbana que podem servir de entrave a isso, já que induzem a utilização adequada da terra urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada.

“É o caso da tríade PEUC, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento em títulos, cuja aplicação é sucessiva. Entretanto, para a devida aplicação, deveriam ter sido regulamentados durante a vigência do PDPFor, o que não ocorreu. Isso evidencia a predominância dos interesses do capital imobiliário na gestão da cidade: quanto menos restrições existirem ao direito de propriedade e à mercantilização do espaço urbano, melhor”, assinala.

Já nos casos de remoção para fins de reurbanização, como nas tentativas que circundam a Vila Vicentina, esta apenas pode acontecer mediante consulta e acordo de pelo menos dois terços da população atingida, assegurado o direito ao reassentamento no mesmo bairro, sublinha Lima.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 22-09-2021   Moradores reviram escombros à procura de seus pertences. Reintegração de posse de ocupação realizada no bairro Vicente Pinzon. A Polícia Militar deu apoio policial à derrubada de casas em terreno de ocupação nesta manhã. Segundo habitantes da ocupação o policiamente chegou por volta de 6:30 da manhã com um grande número de homens e realizaram a retirada das pessoas das casas e em seguida as casas foram derrubadas com os pertences dos moradores que após a saída da polícia reviravam o entulho em busca do que restou dos seus pertences e parte do material de construção de suas casas. (Foto: Júlio Caesar / O Povo)(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA-CE, BRASIL, 22-09-2021 Moradores reviram escombros à procura de seus pertences. Reintegração de posse de ocupação realizada no bairro Vicente Pinzon. A Polícia Militar deu apoio policial à derrubada de casas em terreno de ocupação nesta manhã. Segundo habitantes da ocupação o policiamente chegou por volta de 6:30 da manhã com um grande número de homens e realizaram a retirada das pessoas das casas e em seguida as casas foram derrubadas com os pertences dos moradores que após a saída da polícia reviravam o entulho em busca do que restou dos seus pertences e parte do material de construção de suas casas. (Foto: Júlio Caesar / O Povo)

“O que se observa no estado do Ceará e em Fortaleza é uma prevalência de remoções forçadas autoexecutadas pelo poder executivo. São despejos extrajudiciais, realizados de forma ilegal e arbitrária, sem procedimento administrativo ou processo judicial prévios”, argumenta.

“Além de não garantir à população atingida o direito ao contraditório e à ampla defesa, o Poder Público também não oferece qualquer alternativa habitacional concreta à demanda imediata por moradia das famílias removidas. A nível municipal, as disposições presentes na Lei Orgânica do Município (LOM) precisam deixar de ser apenas letra morta e serem, de fato, cumpridas”, finaliza.

O Direito, como demonstra Ricardo, é uma arena de disputa, e a mobilização popular pode e deve entrar nessa disputa com a defesa de normatividades já existentes ou a reivindicação de novas normatividades que contemplem efetivamente os direitos sociais.

Constituída, em sua maioria, por pessoas idosas, a comunidade da Vila Vicentina da Estância se tornou referência de mobilização em prol das Zeis(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Constituída, em sua maioria, por pessoas idosas, a comunidade da Vila Vicentina da Estância se tornou referência de mobilização em prol das Zeis

Um exemplo é a Frente de Luta por Moradia Digna (FLMD), uma articulação política popular que tem pautado a implementação das Zeis como política pública municipal, a revisão do Plano Diretor e a política de habitação de interesse social, além de acompanhar as comunidades atingidas pelas obra do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) desde a Copa do Mundo da Fifa em 2014.

O psicólogo social Rogério Costa, que faz parte do movimento, engrossa as fileiras dos que combatem a especulação imobiliária e reitera: “Em Fortaleza, os proprietários de terras e agentes do mercado imobiliário são bastante articulados com os gestores da cidade e planejam seus negócios em estreita relação com os investimentos públicos em determinadas áreas”.

Isso explica, segundo Costa, porque a Avenida Beira-Mar recebe investimentos sistemáticos e é “constantemente requalificada, embelezada, tratada com atenção orçamentária ímpar”.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-06-2023: Movimentação e obras no Calçadão da Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-06-2023: Movimentação e obras no Calçadão da Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)

“Explica também a verticalização acelerada observada no entorno da Aguanambi, da Bezerra de Menezes, da Sargento Hermínio, da Washington Soares e em quase toda a Aldeota e Meireles. Obviamente que todo esse processo pressiona os pobres, favelados e assentamentos informais a se retirarem dessas áreas, o aluguel e custo de vida se elevam e as ameaças legais e econômicas sobre eles se intensificam”, continua.

“Tanto a terra como os imóveis vazios, deixados ociosos enquanto aguardam a valorização, como a financeirização dos investimentos imobiliários são expressões da especulação imobiliária e da desigualdade que transformam a cidade em mercadoria e a moradia em item de luxo”, atesta.

A variação do preço da terra urbana de acordo com a localização separa os moradores entre os que podem morar nas áreas turísticas, urbanizadas e valorizadas, e a grande maioria, que é induzida a morar nas periferias, em comunidades precarizadas, sem infraestrutura adequada, com problemas para acessar oportunidades de renda e serviços públicos básicos como saúde, assistência social e transporte público.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 27-11-2013: Manifestantes com cartazes de protesto, reivindicam mudanças em processo seletivo de creches em Fortaleza. Manifestação contra as mudanças na educação infantil, na sede da Secretaria Municipal de Educação (SME), na avenida Desembargador Moreira, no bairro Dionísio Torres. (Foto: Evilázio Bezerra /O POVO)(Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA FORTALEZA, CE, BRASIL, 27-11-2013: Manifestantes com cartazes de protesto, reivindicam mudanças em processo seletivo de creches em Fortaleza. Manifestação contra as mudanças na educação infantil, na sede da Secretaria Municipal de Educação (SME), na avenida Desembargador Moreira, no bairro Dionísio Torres. (Foto: Evilázio Bezerra /O POVO)

A perspectiva de quem está no mercado, todavia, é diferente. O presidente do Conselho Regional dos Corretores de Imóveis do Estado do Ceará (Creci-CE), Tibério Benevides, diz não acreditar em especulação e afirma que o que existe, na verdade, é uma valorização imobiliária.

“Se você planeja um bairro, sendo bem planejado, tendo infraestrutura de serviços, comércio, logística, transporte e tudo mais, não tem como dar errado, a gente não considera isso especulação”, protesta.

“O nosso trabalho é procurar boas áreas para bons empreendimentos que se adequem a quem vai comprar naquela região. Para nós, um projeto que tenha localização, serviços e acesso fácil, que são avenidas de duas e três mãos, são os fatores que mais contribuem”, aponta.

Na edição do O POVO de 1996, o caderno de Economia traz uma lista de imóveis em Fortaleza e seus respectivos preços por metro quadrado(Foto: O POVO.Doc)
Foto: O POVO.Doc Na edição do O POVO de 1996, o caderno de Economia traz uma lista de imóveis em Fortaleza e seus respectivos preços por metro quadrado

Com terrenos caros no Meireles e na Aldeota, Benevides elenca outras áreas que têm apresentado franco crescimento, a exemplo dos bairros Luciano Cavalcante, Edson Queiroz e Patriolino Ribeiro, além do município do Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

Entre os principais desafios para o mercado, o presidente do Creci-CE cita: “Nós tínhamos, mas a Prefeitura melhorou muito, o serviço de aprovação, inclusive com outorgas. O entrave que ainda houve, um pouco, foi de material de construção, que aumentou muito na pandemia e ainda se mantém um pouco elevado, mas as construtoras têm procurado novas tecnologias a fim de diminuir os custos”.

“O nosso mercado imobiliário, apesar dos juros estarem um pouco elevados, tem se mantido, os financiamentos têm acontecido, e eu creio que os juros virão a baixar porque a inflação está sob controle. Então é esperar, e que as construtoras, os corretores e as imobiliárias se preparem para o crescimento continuar”, projeta.


“Fortaleza continua se fortalecendo e se tornando uma grande capital para investir em moradia. É considerada a sétima melhor cidade do Brasil e a segunda do Nordeste, atrás apenas de Salvador, para negócios no setor imobiliário”, acentua Wallace Soares, diretor comercial da construtora Mota Machado.

Existem áreas que já contam com amplo serviço como gastronomia, lojas de serviços e demais atividades de lazer mais próximas que a tornam mais atrativa, o que contribui para o seu maior desenvolvimento de forma natural.

Para além das regiões já estabelecidas, porém, é missão das grandes construtoras e marcas do setor, enxergarem as potencialidades, os locais ainda não tão explorados, mas que possuem grandes possibilidades, segundo o executivo.

FORTALEZA, 08-01-2021: Fotos de placas de vende-se e aluga-se e vista aerea de apartamentos de cidade representativas ao mercado imobiliario e ao IPTU. Aldeota, Fortaleza. (foto: Barbara Moira/ O POVO)(Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira FORTALEZA, 08-01-2021: Fotos de placas de vende-se e aluga-se e vista aerea de apartamentos de cidade representativas ao mercado imobiliario e ao IPTU. Aldeota, Fortaleza. (foto: Barbara Moira/ O POVO)

“A chegada de um imóvel arrasta consigo por consequência outros inúmeros serviços que valorizam o seu entorno, então, a nossa responsabilidade é buscar esses locais que estão prontos para serem desenvolvidos”, pontua.

Soares alude: “Temos alguns desafios naturais do mercado imobiliário, que se estendem até outros pontos que não estão sob nosso controle e que podem interferir na aquisição de um imóvel, como o fator econômico”.

“No entanto, o mercado de Fortaleza permanece aquecido e trabalhando forte no desenvolvimento da cidade, temos empresas consolidadas realizando grandes investimentos, lançando empreendimentos que unem inovação e sustentabilidade, trazendo os conceitos mais buscados pelos consumidores”, completa.


 

Teto sem gente, gente sem teto: vazios urbanos x déficit habitacional

Em novembro de 2016, durante uma audiência que discutia a regulamentação das Zeis em Fortaleza, o professor Renato Pequeno compartilhou o entendimento de que regulamentar seria tornar desnecessária a construção de conjuntos habitacionais nas zonas periféricas da cidade para suprir o déficit de moradia acumulado ao longo dos anos.

Isso porque, “se as Zeis de vazios tivessem sido utilizadas para construir conjuntos habitacionais para reassentamento de removidos e para atender ao déficit habitacional, não haveria necessidade de construção de conjuntos em periferias desassistidas”.

“Destaco que as Zeis de vazios encontram-se em terrenos bem localizados, significando a democratização do acesso às terras urbanizadas”, acrescenta o docente do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC, referência nos debates sobre habitação na Capital.

No fim do mês passado, o programa Minha Casa, Minha Vida fez a entrega de um conjunto habitacional do bairro José Walter, em Fortaleza(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES No fim do mês passado, o programa Minha Casa, Minha Vida fez a entrega de um conjunto habitacional do bairro José Walter, em Fortaleza

Ou seja: os vazios urbanos, quando demarcados como Zeis do tipo 3 (de vazio), podem constituir reserva fundiária para a execução da política habitacional. No caso de remoções, essas zonas também podem ser utilizadas para o reassentamento de famílias, o que aplacaria o processo de expulsão para as margens das comunidades removidas.

Enquanto isso, de acordo com estudos do Fortaleza 2040, que é a base das ações da política habitacional, até 2016 a demanda habitacional em Fortaleza era de cerca de 84 mil habitações. Levantamentos mais recentes do Plano Local de Habitação de Interesse Social (Plhis) já apontam que esse número é de, pelo menos, 130 mil.

O que corresponderia à concentração de mais de 50% do déficit habitacional de todo o Estado na Capital, já que, segundo divulgado pelo governador Elmano de Freitas (PT) em maio de 2023, o déficit estadual é de 234 mil unidades habitacionais.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-06-2023: Situação da Praça da Bandeira com alguns buracos e moradores de rua. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-06-2023: Situação da Praça da Bandeira com alguns buracos e moradores de rua. (Foto: Samuel Setubal)

Na Capital, essa demanda por habitação obriga grande parte da população a viver em, no mínimo, 856 assentamentos precários ou irregulares, que, no Brasil, são conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros.

Os dados estão desatualizados e se referem a um período em que a cidade possuía outra configuração, portanto o número pode chegar a bem mais.

Apesar disso, vale observar que, das terras ocupadas por esses assentamentos, 19 pertencem à União, 193 estão em terrenos do município, 81 em terrenos privados, 167 ocupam parte de terras com mais de um proprietário (município, Estado, União e/ou privado), enquanto o restante não possui informações sobre a propriedade, o que remete à necessidade da regularização fundiária na cidade.

 


"Pode parecer pouco, mas o mais importante é a quantidade de pessoas que está vivendo nesses 856 assentamentos. Sâo mais de um milhão vivendo em condições precárias de moradia certo, isso é basicamente quase metade da nossa população", alerta o advogado Guilherme Barbosa.

"Na mesma cidade a gente tem gigantescos smartphones urbanos e o próprio Poder Público mantendo vários imóveis sem utilização ou subutilizados, naturalmente a gente vai ter um barril de pólvora. Uma cidade completamente sujeita aos mais diversos conflitos fundiários, inclusive violentos", salienta.

O psicólogo Rogério Costa, que é assessor de direito à cidade do Centro de Defesa da Vida Hebert de Souza, explica que o déficit habitacional engloba diversas dimensões: há os sem teto; há os que comprometem a renda com aluguel caro; há famílias diferentes vivendo na mesma casa; há casas minúsculas que não comportam adequadamente todos os familiares.

 


“Por outro lado, há muitos edifícios vazios, subutilizados e ociosos. As políticas de habitação têm girado em torno da produção de moradias, com a retomada do programa Minha Casa, Minha Vida, melhorias habitacionais, que é uma política com uma demanda enorme; aluguel social, que deveria ser somente para situação emergencial e provisória, e regularização fundiária, que é altamente burocrático e demorado, colocando inúmeras famílias no rol da informalidade ou irregularidade”, discorre.

“Então, de fato, há uma lacuna na política habitacional, que poderia ser pensada para a utilização dos imóveis vazios. Essa utilização poderia se dar na forma de desapropriação, aluguel social ou concessão real de uso para fins de moradia no caso de prédios públicos”, sugere.

Costa coloca que urbanistas e movimentos sociais já apontam essa necessidade há algum tempo, “e mais uma vez os dados comprovam que uma política voltada para a utilização de imóveis vazios, considerando também as mudanças identificadas no perfil e diversas configurações das famílias brasileiras, terá grande relevância social”.

 

 

Metodologia

Para esta reportagem foram utilizadas as bases de dados das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) de Fortaleza (CE), disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) através da plataforma Fortaleza em Mapas, dados de populações e domicílios em Aglomerados Subnormais (AGSN) no Ceará em 2010 e 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e informações disponibilizadas pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

 

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