Para quem está a passeio na região, tudo parece perfeito, de encher os olhos. Mas, a poucos metros da foz do Aracatiaçu, no litoral oeste do Ceará, a beleza camufla conflitos por terra e agressões ao meio ambiente. Tanto pelo lado de Itarema como por Amontada — divididos naquele ponto do mapa quase igualmente pelo leito sinuoso do rio. A tensão está em níveis elevados, com a ocorrência de litígios fundiários e evidências de crimes ambientais. Com denúncia de ameaças a lideranças e gestores públicos, silêncios nas comunidades que testemunharam os ilícitos e até receios com a facção criminosa que ronda o caso e miraria expansão a região.
As situações estão sendo investigadas pela Polícia Civil, Polícia Federal e Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal, além de apurações de outros órgãos na esfera administrativa, ligados à fiscalização. Alguns dos procedimentos são sigilosos. Num desses embates mais acirrados, um grande trecho de mangue, área de preservação permanente, foi rasgado por tratores, serras e pela mão humana. Fica exatamente na linha que divide os dois municípios.
A mata nativa foi arrancada, numa extensão de mais de um quilômetro e meio, para abertura de uma estrada clandestina. Onde era apenas uma vereda estreita, caminho antigo de animais, pescadores e agricultores locais, construíram uma pista. Num trecho dela, são 50 metros de largura. Sem nenhuma licença ambiental, nenhuma autoridade municipal, estadual ou federal tendo endossado a “obra”.
Uma das principais causas da tensão é que as empreitadas estão dentro da área de dois assentamentos rurais federais, Pachicu e Patos Bela Vista. São terras da União, desapropriadas desde 1995, quase três décadas atrás. Nas duas comunidades, havia — ainda há —, medo entre quem poderia ou pode denunciar. Porque uma situação destacada foi a de que haveria criminosos faccionados recrutados para o serviço braçal. As lideranças locais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) monitoram todo o caso. Há preocupação com a possível exposição de assentados.
Os trabalhos da estrada começaram em meados de 2022, pararam, recomeçaram com mais intensidade em setembro e se prolongaram até dezembro sem que ninguém barrasse. Avaliando a possibilidade de sobreposição dos terrenos com os assentamentos, técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) fizeram vistoria na região em julho de 2022. Constataram “intervenção na vegetação para ampliação de uma antiga estrada vicinal”, conforme nota enviada ao O POVO.
Uma outra estrada, feita numa faixa de praia — o que deveria, por si só, restringir esse tipo de projeto —, teve o caminho encoberto com piçarra e ornada por coqueiros. Essa fica na comunidade Morro de Patos e vai até a preamar (trecho onde a maré alta alcança). Seria para beneficiar uma propriedade particular e também não recebeu permissão de órgão ambiental. É até anterior à pista do mangue e mede cerca de metade dela.
A essa estrada, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) fez visita ainda em março do ano passado. A Pasta monitora usos em faixas de praia e terrenos de marinha. Ambas as pistas estão em zonas de preservação permanente, com dano flagrante. Um relatório feito pela Secretaria do Meio Ambiente de Itarema detalha a extensão do dano nas duas áreas.
O POVO investigou o caso por três meses. Esteve na região — inclusive alertado de riscos, “tenham muito cuidado, está perigoso por lá” —, juntou nomes e ouviu e gravou relatos e documentos. Quase todos falaram sob anonimato. Há medo nas comunidades próximas de falar abertamente sobre o assunto. A estrada do mangue seria para acesso a um futuro empreendimento de hospedagem (hotel/pousada), além de um possível novo porto de barcos e balsas para passeios e travessias no rio.
Na pista da praia, as dunas vêm sendo fracionadas em lotes para venda. As duas “obras” estariam mirando o potencial turístico da região. O litoral de Itarema mede 32 quilômetros, tem pontos bastante conhecidos, mas trechos ainda estão intocados. A praia de Moitas, pelo lado de Amontada, é uma das mais visitadas e visadas do Ceará. Mas, fora as belezas citadas, ainda há mais crimes e suspeições permeando a história.
Uma das pontas investigadas considera se houve/há interesse e ação direta de membros da facção criminosa para que o “projeto” acontecesse. Uma das situações relatadas, por fontes locais, descreve que os criminosos teriam monitorado o trabalho dos “operários” ou até guiado máquinas pesadas.
A menção a essa presença de faccionados na obra da estrada do mangue é feita em pelo menos três frentes oficiais: no relatório da Secretaria local de meio ambiente; no procedimento do Ministério Público Estadual e pela Polícia Civil. O inquérito policial 468-40/2023 foi aberto no início de fevereiro, na Delegacia de Itarema, após a denúncia ter sido apresentada por lideranças dos assentamentos antes do final do ano passado.
Até um homicídio a tiros de um homem de 29 anos, no dia 27 de novembro, na localidade de Tauá da Praia, em Amontada, chegou a ser associado ao caso das estradas. A vítima era o filho de uma liderança dos assentados. Os fatos não tinham nenhum elo com a obra das estradas, mas mostram como estava a tensão naquela área dos assentamentos. A especulação foi descartada posteriormente.
“Infiltraram a malandragem lá. Colocaram o pessoal dentro pra amedrontar a gente, sabe? Posso falar, mas que minha voz não saia, nem meu nome”, contou um morador da mesma região. Os responsáveis pelas investigações receberam vídeos e fotos dos tratores e caminhões em atividade. E de marcações no chão, com xis feitos de cal. Moradores contrários à devastação do mangue silenciam por serem conhecidos de alguns dos tais “operários” e intermediadores da obra. Gestores locais afirmaram ter recebido ameaças veladas e até diretas quando tentaram interferir nas ações.
Os Ministérios Públicos Estadual e Federal estão com suas diligências ainda em andamento. Órgãos ambientais e de fiscalização rural estão a par dos acontecimentos, com notificações e inspeções presenciais realizadas na região.
Ibama, Incra e SPU acompanham o caso em procedimentos internos. Uma visita de agentes ambientais na área, no início de dezembro, teria alertado os desmatadores e a obra parou desde então. Para a comunidade, não há certeza se a ilegalidade não será retomada. No começo de 2023, segundo um dos moradores, já houve movimentação de tratores no mesmo trecho desmatado.
Um relatório técnico ambiental elaborado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Turismo e Cultural (Sematurc) de Itarema expõe, em detalhes, a dimensão do dano ambiental cometido nas duas estradas abertas " em áreas de biomas sensíveis e desmate irregular de vegetação" próximas ao rio Aracatiaçu, no litoral oeste cearense. Ficam nas comunidades Patos e Pachicu, que são 2 dos 17 assentamentos federais existentes nos territórios de Itarema e Amontada.
As imagens inseridas no relatório mostram cenário semelhante ao que foi observado pelo O POVO em janeiro deste ano. Os técnicos da Sematurc visitaram a região pouco antes, em 25 de novembro e 19 de dezembro. A presença de integrantes de facção criminosa atuando diretamente na obra também atravessa as páginas do relatório. A menção explica porque policiais militares do Raio e do Batalhão de Polícia Ambiental (BPMA) acompanharam a primeira das visitas técnicas.
"No conteúdo de denúncias e conversas com a comunidade in loco, detectou-se possível interferência de agentes ligados a facções de crime organizado envolvidas em tal ação — o que aumentou a necessidade de agir em conjunto com as forças policiais para possível avaliação dos impactos da ação", diz o trecho.
O documento atesta que as pistas foram construídas em áreas de preservação permanente e tocadas "sem as devidas licenças" — uma cruza o mangue, a outra está numa região de duna bem próxima à faixa de praia.
"Estariam ocasionando modificações graves na morfologia e cobertura vegetal nativa do sistema, além de se inserir em uma conduta lesiva à atividade da comunidade tradicional que vive no entorno da área e poluição do leito da zona de mangue", é assim especificado.
A estrada maior “atravessa uma zona fechada de mangue virgem, assim como uma área extensa de apicum e salgado (tipos de biomas com alta salinidade), ambos protegidos pela legislação federal. Haveria pelo menos cinco berçários naturais de peixes e crustáceos somente nas proximidades da região afetada, onde animais adultos depositam ovos. Camurupins, meros, carapitangas, bagres, camurins, tainhas, siris, caranguejos e aratus são algumas das espécies.
As demarcações no chão, feitas com cal, foram apagadas pelas chuvas de janeiro e por moradores, mas galhos de mangue desmatados, dos que não foram queimados pelos agressores, ainda estavam à mostra — "danos visíveis à flora e geomorfologia local". A via aberta na praia de Patos foi demarcada com barro vermelho, "material do tipo saibro", chegando a uma distância de aproximadamente 250 metros da praia. As coordenadas geográficas apontam que essa é uma região cercada de dunas móveis.
O relatório tem 22 páginas. É assinado por um biólogo, uma geógrafa e pelo titular da Sematurc à época, Thalles Walker — exonerado do cargo no início de março. O levantamento foi elaborado para "subsidiar autos de possível denúncia criminal formal e abertura de processo administrativo". As legislações ambientais federais e estaduais que referenciam o relatório (Código Florestal, Lei de Crimes Ambientais e Constituição Estadual) citam os ilícitos. O conteúdo já foi anexado ao inquérito aberto pela Delegacia de Polícia e ao procedimento investigatório conduzido pela Promotoria de Justiça de Itarema.
Violações ambientais analisadas na região:
Bem perto da foz do Aracatiaçu, basta encostar o barco alguns metros após o “Túnel do Amor”. É como é conhecido um braço do rio que se tornou um corredor encoberto pela mata nativa, bastante frequentado em passeios por quem faz turismo na região. Por esse caminho, são menos de 50 metros e já se chega à estrada irregular. Esse trecho está dentro da área de mangue, em Itarema.
Leva-se mais de 40 minutos para percorrê-la a pé, de uma ponta à outra. Esse tempo é só para o percurso de ida. A vista não alcançou os extremos. Nem a imagem captada por drone conseguiu enquadrar toda a extensão da pista criada. Ainda havia galhos e tocos arrancados na foice e na força. A fauna é principalmente de aves e crustáceos.
As provas do dano ambiental cometido ainda estavam flagrantes. Vários tocos foram cortados por serra elétrica. Quando O POVO esteve na região, em janeiro, ainda se via rastro de pás escavadeiras e de caçambas e troncos queimados. Quase toda a madeira extraída do desmatamento foi eliminada com fogo.
Restos de galhos secos acabaram sendo usados por moradores do assentamento numa outra serventia. Eles improvisaram uma cerca, que marcou o ponto em que os tratores e caçambas costumavam entrar no mangue. O ponto virou referência para os que vigiam uma possível volta dos desmatadores.
Os “operários” da pista clandestina teriam trabalhado na obra mais nos fins de semana e à noite, segundo informações da Promotoria de Justiça de Itarema. Mas, em relatos colhidos entre moradores sob anonimato, em vários dias da semana também se viu trator e caminhões e gente abrindo a estrada do mangue. Para os que fizeram o trabalho mais braçal, o pagamento por diária teria sido de R$ 60, conforme uma fonte.
Nos relatos de moradores da região, dez pessoas teriam atuado entre maio e dezembro de 2022, com um intervalo ocorrido entre agosto e setembro. As informações descritas ampliam que, nessa segunda fase, os operários teriam sido mais incisivos na destruição da mata. As ordens dadas seriam para acelerar a estrada o máximo possível.
Segundo a promotora de Justiça de Itarema, Joana Nogueira Bezerra, uma informação que está sendo averiguada é a de que parte do maquinário teria sido guiado ao longo desses dias de serviço por pessoas ligadas à facção GDE.
“O fato dessas máquinas estarem sendo operadas por pessoas de facções é que dificulta o trabalho de investigação da Promotoria de Justiça e da Polícia Ambiental e da Polícia Civil para identificar os autores do delito”, confirmou a promotora ao O POVO.
O homem que recrutava essa mão de obra, um pescador da localidade Morro de Patos, teria recebido cerca do dobro disso por dia trabalhado, em mais informações descritas ao O POVO pelos moradores da área. Ele teria sido uma espécie de coordenador das tarefas na área desmatada.
O que locava o trator também é morador de Itarema. É um dos que deverão ser intimados para prestar depoimento na delegacia de Itarema. A estrada está inserida dentro dos lotes desapropriados dos assentamentos federais Pachicu e Patos.
Para ter esse detalhamento dos valores do serviço, O POVO ouviu moradores tanto presencialmente como por telefone. Exigiam que não fossem identificados. Vários fotos e vídeos do momento das ações se espalharam e estão nas mãos de quem investiga o caso.
Os dados utilizados nesta reportagem foram analisados com base em documentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Autarquia do Meio Ambiente do Município de Amontada (Amama) e do Cartório Ofício de Notas e Registros de Itarema-CE. Para o cálculo das áreas dos terrenos, as coordenadas geográficas descritas nos documentos foram convertidas e projetadas com as bibliotecas geopandas e shapely, dentre outras. Com isso, foram verificadas as interseções com as geometrias dos assentamentos federais e das estradas irregulares observadas na região. Por fim, foi feita uma validação dos cálculos e análises com técnico da Superintendência de Regularização Fundiária.
Parte desses documentos serão disponibilizados, resguardando dados sensíveis, junto aos códigos feitos para a realização das análises. Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github.
Reportagem seriada investiga efeitos de construções em áreas de proteção entre as praias de Itarema e Amontada