Em levantamento cartográfico, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontou uma sobreposição “de aproximadamente 10,7828 hectares” (ha) do terreno de matrícula imobiliária nº 297 com o projeto de assentamento federal (PA) Pachicu, em Itarema, a 210,6 km de Fortaleza. O POVO teve acesso a uma cópia desse documento, de abril de 2022. É um despacho anexado a um processo administrativo no qual um empresário em litígio com o órgão afirma ser o dono da mesma área. Mas essa verificação feita pelo Incra pode estar errada.
A partir das coordenadas geográficas indicadas na matrícula 297, lavrada em cartório, e nas medidas dos lotes de reforma agrária da região disponibilizados pelo Incra, é possível afirmar que tanto a área sobreposta medida pelo Incra é muito maior como o próprio terreno do empresário também teria medidas muito acima do que está descrito na inscrição do imóvel. Um outro assentamento, o PA Patos, e outra matrícula, a de nº 146, igualmente vinculada ao empresário, também estão associados a esse caso.
O terreno da matrícula 297 tem 126,95 hectares (ha), mas, ao cruzar os dados de latitude e longitude para verificar as delimitações, as informações destoantes se evidenciam. O documento se contradiz: a área particular teria, na verdade, 277,7 hectares. São 150,7 hectares a mais do que está detalhado na inscrição imobiliária, reconhecida no Cartório de Ofício de Notas e Registros de Itarema.
E quanto à sobreposição com os assentamentos, seriam 100,4 hectares (e não 10,7828 ha) coincidindo com o PA Pachicu (que tem área de 619,6 ha) e 87,64 hectares com o PA Patos (área de 1.598,6 ha). Essa interseção com os lotes de assentamentos chegaria, nesse levantamento feito pelo O POVO, a 68% das medidas do imóvel.
No trecho do terreno 297, o empresário informa que pretende construir um empreendimento de hospedagem (hotel ou pousada). O imóvel, ao lado do terreno 146, é um dos que passam por investigações de órgãos federais e estaduais, nas esferas administrativa e policial, em denúncias de possível “grilagem” e de crimes ambientais (desmatamento constatado em área de mangue).
O termo “grilagem”, que descreve uma ocupação irregular de terras públicas com interesse de transferência para patrimônio privado, foi usado pelo Incra em respostas por email. “Não sou grileiro de terra”, defende-se o empresário Juacy Pinto. Nos dois assentamentos, localizados entre os municípios de Itarema e Amontada, no litoral oeste cearense, atualmente moram 60 famílias.
A sobreposição dos 10,7828 hectares foi descrita num “pedido de averiguação de imóvel”, relatório produzido pelo Serviço de Cartografia do Incra. O documento foi juntado aos autos do processo administrativo nº 54000.050566/2021-44. É nele que o empresário José Juacy Cunha Pinto Filho, residente em Fortaleza, questiona o órgão federal e se apresenta como dono de faixas de terra onde, desde 1995, foram criados os PAs Pachicu e Patos. “Estou querendo mostrar é que não existe nada (de sobreposição)”, afirmou Juacy.
No mesmo critério de checagem adotado pelo O POVO, a indicação é que o terreno de matrícula 146, que mede 152,1 hectares, também está em sobreposição aos assentamentos, mas em dimensões menores. A partir de coordenadas oficiais, seriam 47,2 hectares sobrepostos ao PA Pachicu e 0,32 hectare com o Patos. Correspondem a 31% do tamanho do imóvel. O terreno 146 é vizinho ao 297 e também pertence ao empresário Juacy Pinto - registrado em nome de sua mulher, Jamille da Cruz Martins.
A análise geoespacial feita pelo O POVO encontrou outra informação que não aparecia na história: os dois imóveis particulares analisados (matrículas nº 146 e 297) também possuem um trecho de interseção entre eles. Ou seja, uma mesma área foi registrada em inscrições imobiliárias distintas. Essa sobreposição entre os dois terrenos chegaria a 113,2 hectares.
Além da sobreposição, também foi denunciada a obra de duas estradas, uma no mangue e uma na faixa de praia e dunas, com degradação ao meio ambiente em trechos da região. O caso está sendo apurado em investigações do Ministério Público Federal, da Promotoria de Justiça de Itarema, em inquérito da Polícia Civil e da Polícia Federal. Também é avaliado em processos no Incra, na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e no Ibama. O dano ambiental é descrito em relatório técnico da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Itarema.
Nas duas ações promovidas pelo Incra para desapropriar as áreas particulares onde hoje existem os assentamentos Patos e Pachicu, instalados entre Itarema e Amontada, a União desembolsou à época cerca de R$ 74 mil.
Os proprietários foram indenizados entre abril e maio de 1995. Antes do fim daquele ano, as duas portarias do Incra, confirmando a criação dos dois projetos de assentamentos (PAs), foram publicadas no Diário Oficial da União.
Em 31 de maio de 1995, o imóvel da Fazenda Pachicu foi avaliado por R$ 58.208,53. A propriedade tinha área de 1.030 hectares. Já o imóvel da Fazenda Patos, em 12 de abril de 1995, recebeu avaliação de R$ 16.120,37, por área de 887,9 hectares.
As dimensões atuais dos dois assentamentos não são idênticas às das terras adquiridas. O PA Pachicu mede 619,64 hectares e tem 28 famílias assentadas (capacidade para 34). O PA Patos tem 1.598,64 hectares, mas, apesar da área maior, tem 29 famílias assentadas (capacidade para 30).
Os antigos proprietários constam como G.Gradvohl Empreendimentos (Pachicu) e Eduardo Rodrigues de Albuquerque (Patos). O juiz Geraldo Apoliano Dias, então titular da 5ª Vara Federal no Ceará naquele ano, foi quem assinou os dois mandados de imissão de posse em 1995. A imissão significa o ato desapropriatório O instrumento jurídico é a decisão que confirma a transferência de terras desapropriadas para a União. O magistrado faleceu em 2018.
A região entre Itarema e Amontada é ocupada por 17 PAs, sendo que 5 deles surgiram em 1995 - incluindo Patos e Pachicu. Os mais antigos são de 1987 (Sabiaguaba e Lagoa do Mineiro) e o mais recente é de 2007 (Córrego Novo). A maior área é a do PA Lagoa do Mineiro, que é também o que mais tem famílias assentadas.
A Polícia Federal mantém uma investigação em curso sobre o caso, que apura tanto o suposto crime ambiental como a indicação de sobreposição em área de assentamentos entre Amontada e Itarema. A ideia é saber sobre os responsáveis e se há possibilidade de grilagem ou erro em matrículas imobiliárias na região.
O inquérito é conduzido reservadamente pela Delegacia de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (Delemaph) e nenhuma linha foi aberta sobre o que está sendo apurado. “Por força de lei, deve ser mantido o sigilo e no momento não é possível repassar dados”, informou a assessoria de comunicação da Superintendência da PF no Ceará.
No Ministério Público Federal, situação semelhante. O POVO confirmou que há um procedimento investigatório no MPF, da mesma suspeição de matrículas imobiliárias irregulares e crime ambiental naquela faixa do litoral oeste. A investigação foi aberta em outubro de 2022 e igualmente com o carimbo de reservado.
O procurador da República responsável pelo caso é Anastácio Tahim, que, segundo a assessoria do órgão, preferiu não falar com O POVO. O único detalhe obtido é que houve troca de ofícios com Incra e Polícia Federal, com informações sobre as inscrições dos imóveis, dos assentamentos e noções do dano ambiental com a obra das estradas do mangue e da faixa de praia.
Da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), uma equipe de fiscalização chegou a acompanhar in loco a estrada da praia, em 7 de junho do ano passado. A estrada de piçarra já estava posta na faixa de praia e região de dunas. Naquele momento foram removidos cerca de dez coqueiros, duas casas e barracas abandonadas e os responsáveis foram avisados sobre a irregularidade.
Porém, em novembro, a fileira de coqueiros já havia sido reimplantada, mais barro vermelho despejado - descrição dada por moradores da região e fiscais ambientais que estiveram na área em dois momentos. Do Ibama, O POVO não obteve retorno a pelo menos quatro contatos feitos por emails e por telefone ao órgão em Brasília - como foi orientado na sede local.
Uma equipe de técnicos do Incra esteve na região dos assentamentos Patos e Pachicu, entre Amontada e Itarema, em junho do ano passado. Eles foram para avaliar a denúncia de "um caso de invasão e realização de obra irregular" na área. A referência era à obra da estrada do mangue, realizada sem qualquer licenciamento municipal, estadual ou federal.
Aquele era um dos momentos mais tensos na região, com o temor descrito ao O POVO por moradores assentados, de que a área fosse diminuída pelo avanço de supostos grileiros. Essa primeira visita teria sido para um "levantamento preliminar da obra irregular".
"Estrada estava sendo aberta por meio de retroescavadeiras, com desmatamento alcançando inclusive área de mangue, o que pode configurar crime ambiental", confirmou o órgão federal, em nota ao O POVO. No levantamento da área impactada, os fiscais apontaram o terreno coincidente com partes dos dois assentamentos.
Uma nova visita foi feita em novembro de 2022, quando “a comunidade relatou que a obra prosseguia, mas sem o uso de máquinas”. Na última semana de dezembro, um relatório sobre os fatos foi enviado ao Ministério Público Federal (MPF), que abriu procedimento investigatório criminal. Apesar da possibilidade de responsabilização por crime ambiental, o processo ainda é conduzido somente em nível administrativo.
À época da visita do Incra à estrada do mangue em Itarema, "o responsável pela atividade foi identificado e notificado a cessar imediatamente" a obra. A determinação anunciada foi para "não exercer qualquer atividade dentro dos assentamentos enquanto não forem esclarecidas todas as dúvidas sobre registros e sobreposições das áreas relativas ao fato".
O empresário Juacy Pinto, que dispõe da matrícula imobiliária 297 e se apresenta como dono do terreno, recebeu a notificação "com representação junto ao Incra através da instituição Tremembé Consultoria Ambiental" - que pertence ao consultor Francisco Eraque Roque.
Na defesa apresentada ao Incra, entregue em julho, após a primeira visita dos fiscais, "o responsável pela invasão afirma ser dono da área invadida. Ele (Juacy) apresentou registro de um imóvel rural adquirido em 2010" - informa o Incra. A região segue sendo monitorada pelo órgão principalmente através de contatos com as comunidades.
"A superintendência está analisando a documentação apresentada e esclarece que os dois PAs foram criados em 1995, provenientes de imóveis rurais obtidos pelo Incra através de processos de desapropriação concluídos em dezembro de 1994 (Patos) e março de 1995 (Pachicu)", reforçou o órgão federal. "Havendo a constatação de sobreposição existente, a Superintendência adotará as medidas cabíveis (notificar o cartório e o proprietário)", esclareceu o Incra, em nota.
Os dados utilizados nesta reportagem foram analisados pelo O POVO Mais (www.mais.opovo.com.br), com base em documentos do Incra, da Autarquia Municipal do Meio Ambiente de Amontada (Amama) e do Cartório de Ofício de Notas e Registros de Itarema.
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