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A estrada ilegal que ninguém construiu em mangue de Itarema
Reportagem Seriada

A estrada ilegal que ninguém construiu em mangue de Itarema

Empresário contesta Incra sobre área sobreposta a assentamentos e nega ter custeado estradas. Pista que corta ilegalmente manguezal foi tema de reportagem do O POVO+
Episódio 2

A estrada ilegal que ninguém construiu em mangue de Itarema

Empresário contesta Incra sobre área sobreposta a assentamentos e nega ter custeado estradas. Pista que corta ilegalmente manguezal foi tema de reportagem do O POVO+
Episódio 2
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O empresário cearense José Juacy Cunha Pinto Filho, de 39 anos, residente em Fortaleza, é proprietário de dois terrenos no limite entre Itarema e Amontada, no Litoral Oeste do Ceará. Num deles foi aberta a "estrada do mangue", sem licenciamento ambiental. A partir de coordenadas geográficas expostas em documentos cartoriais, pelo menos uma das pistas consideradas clandestinas aparece sobreposta parcialmente aos assentamentos federais Pachicu e Patos. A outra estaria na faixa de praia, em região de dunas móveis.

A informação dele como dono das “glebas de terra” aparece em duas matrículas de imóveis, números 297 e 146, registradas no cartório de Itarema. Juacy contesta que haja alguma interseção de suas áreas com os assentamentos. Inclusive, questiona que a União seja a dona daquelas terras. Para isso, abriu um processo administrativo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Sustenta que sua situação fundiária é correta e que terrenos vizinhos aos seus, com cenário semelhante, estão regularizados.

Estrada irregular construída na zona de mangue em Itarema(Foto: REPRODUÇÃO SECRETARIA MEIO AMBIENTE ITAREMA)
Foto: REPRODUÇÃO SECRETARIA MEIO AMBIENTE ITAREMA Estrada irregular construída na zona de mangue em Itarema

O empresário também nega ter sido o responsável ou de ter dado alguma ordem ou custeado serviços para que alguém abrisse a mata nativa ou mexesse nas dunas móveis para a obra das duas estradas.

"Tô sendo culpado de uma coisa que eu não fiz, não mandei fazer cerca, não mandei quebrar nada. Não fiz nem mandei fazer nada. Só mexo lá no dia que tiver autorização. E vou ter a autorização", garantiu ao O POVO. Reconhece, porém, que alguém mandou abrir as estradas — “contra fatos não há argumentos” —, mas reforça não ter sido ele essa pessoa.

Juacy Pinto confirma que, em meados de 2020, contratou técnicos para que fizessem levantamentos topográficos na região. Chegaram a usar drone. Sua ideia é "para fazer uma pousada, um hotelzinho, com um beach club, com um barco que leva de uma ponta para outra (travessia de Itarema para Amontada)". O local informado coincide com trecho do mangue próximo à foz do rio Aracatiaçu, que teve ponto desmatado no ano passado. O pedido de licenciamento para o empreendimento de hospedagem, segundo ele, ainda não foi apresentado à Prefeitura de Itarema.

Os projetos de assentamentos (PAs) Pachicu e Patos foram criados em 1995. Neles moram cerca de 60 famílias. Juacy, porém, adquiriu os dois terrenos depois disso. Conforme a matrícula imobiliária número 297, ele comprou 126,95 hectares na região em 2010. Pagou R$ 50 mil. É nesta área que aparece a "estrada do mangue", coincidentemente num trecho com os dois assentamentos.

Trecho da estrada irregular feita na faixa de praia em Itarema: barro foi usado para demarcar caminho em área de duna.(Foto: REPRODUÇÃO SECRETARIA MEIO AMBIENTE ITAREMA)
Foto: REPRODUÇÃO SECRETARIA MEIO AMBIENTE ITAREMA Trecho da estrada irregular feita na faixa de praia em Itarema: barro foi usado para demarcar caminho em área de duna.

Já a matrícula 146 indica um outro terreno com 152 hectares. Foi adquirido em 2020. O registro descreve custo de R$ 160 mil e está em nome da mulher de Juacy, Jamille da Cruz Martins. O problema, argumenta o empresário, é que a matrícula 297 não descreve a desapropriação pelo Incra. “Se tivesse desapropriado, estaria uma averbação na escritura”. Segundo ele, o antigo proprietário nem teria recebido o valor da indenização. O POVO não conseguiu localizá-lo.

"Em algumas várias idas e vindas do Incra, o órgão diz que esse meu terreno já foi desapropriado e nós formalizamos toda a documentação que não, que ele faz fronteira em algum momento com o terreno. E estamos mostrando por A mais B que o terreno pertence a mim", declara Juacy. “Lá, o terreno não é cercado. Até porque ainda existe esse litígio de saber qual é meu limite e o limite do Incra”, acrescenta.

Segundo ele, se o processo administrativo não resolver, pretende judicializar o caso. E renega a pecha de irregularidade nos documentos. “Não sou aventureiro, não sou grileiro de terra, não sou nada disso. Do jeito que está exposto nos papeis, é 99% pra mim e 1% para o Incra”.

 


“Matrículas centenárias” e “sobreposição de 10 hectares”

Juacy Pinto chegou a conversar com O POVO em dois momentos, por telefone e depois presencialmente. Quis mostrar documentos que comprovariam o histórico dos terrenos e desfariam dúvidas sobre a propriedade como irregular. O papel mais antigo apresentado pelo empresário data de 1951, ainda com registro no cartório de Acaraú, município vizinho e maior. É por essas "matrículas centenárias", como chama, que contesta que as áreas pertençam à União.

Um dos documentos repassados ao O POVO até aponta que há sobreposição do terreno "da estrada do mangue" (matrícula 297) com o PA Pachicu. "Constatamos que referido imóvel se avizinha ao PA Pachicu, porém apresentando uma sobreposição ao mesmo numa área de aproximadamente 10,7828 ha (hectares)", apontaram os técnicos do Serviço de Cartografia do Incra, no despacho dado ao processo administrativo nº 54000.050566/2021-44, sobre "pedido de averiguação de imóvel". É datado de 11 de março de 2022.

Trecho próximo ao terreno desmatado ilegalmente em Itarema, onde empresário pretende construir hotel: local tem área pequena com cerca de arame farpado(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Trecho próximo ao terreno desmatado ilegalmente em Itarema, onde empresário pretende construir hotel: local tem área pequena com cerca de arame farpado

Entre pelo menos três matrículas anteriores que apresentou, a de nº 1.363 é a que Juacy considera “a mais importante”. Seria a que o antecedeu na posse do terreno (hoje nº 297), a mesma que passou pela desapropriação para o assentamento Pachicu.

“Estou querendo mostrar é que não existe nada (de sobreposição)”, diz o empresário, frente à análise feita pelo Incra. Numa das reuniões com um técnico do órgão, Juacy conta que chegou até a propor, em tom informal, abrir mão do pedaço de intercessão. “Para acabar com o problema deles, eu disse que até dava os dez (hectares) de graça para eles (Incra). Mas ele disse que não poderia. Não tem procedimento para isso”, descreveu.

 


Polícia quer definir quem teve participação na obra das estradas

Pelo menos mais três pessoas estão sendo ouvidas pela Polícia Civil ainda como testemunhas sobre a execução das estradas irregulares abertas na área de mangue e numa faixa de praia e dunas entre Itarema e Amontada. Há indícios de que os três teriam participado da obra, direta ou indiretamente. Os nomes de Gonçalo Neto, Deco Costa e Eraque Roque.

Residentes em Itarema, são citados no inquérito policial 468-40/2023, aberto em fevereiro deste ano pela Delegacia de Polícia do município. Por telefone, O POVO ouviu os três, que negaram as acusações.

Eraque e Deco já foram depor, entre a primeira e segunda semanas de março. Gonçalo já havia faltado à terceira chamada feita pelo delegado Fábio Pereira, que conduz o inquérito. O empresário Juacy Pinto deverá ser o próximo convocado.

Assentamento Moitas, na região de mangue do rio Aracatiaçu, no centro de uma disputa por uso de terras e construções irregulares(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Assentamento Moitas, na região de mangue do rio Aracatiaçu, no centro de uma disputa por uso de terras e construções irregulares

A linha de investigação trabalhada pela Polícia quer definir quem teve alguma participação na obra das pistas clandestinas. Os três moram na sede municipal ou mantêm vínculos, familiares ou patrimoniais, com a localidade Morro de Patos. A região é bem próxima da "estrada da praia" e do mangue onde houve a supressão vegetal denunciada.

Os nomes de Deco e Gonçalo são mencionados no relatório técnico feito pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Turismo e Cultura (Sematurc) que indicou as ações de degradação.

"De acordo com relatos da própria comunidade, a pessoa por trás desses crimes ambientais é conhecida como Gonçalo Neto, está atualmente hospedado na comunidade de Patos e continuando a fazer interferências na área de assentamento ao redor", apontou o documento sobre os fatos à época, entre novembro e dezembro de 2022.

Na área de praia de Itarema, Deco seria "dono de terrenos no local", descreve o relatório. "O senhor Deco esteve, junto com o citado Gonçalo Neto, em junho deste ano (2022), procurando a Sematurc para informações sobre abertura de processo de licenciamento para obras na região de Patos, mas até o momento deste relatório não chegaram a apresentar quaisquer tipos de documento ou de pedido oficial de abertura de processos de licenciamento ambiental", finalizou o documento.

Eraque Roque tem uma empresa de consultoria ambiental em Itarema, a Tremembé Consultoria Ambiental, que atuava como representante de Juacy Pinto. O empresário disse que o contratou para regularizar a situação dos terrenos das matrículas 297 e 146 — onde foram feitas as estradas irregulares. Foi o consultor que recebeu, perto do fim do ano passado, a notificação do Incra sobre a situação irregular constatada de sobreposição dos terrenos com os assentamentos Pachicu e Patos.

Ao O POVO, Juacy disse que considerou Eraque "pouco resolutivo" sobre o trâmite de seu processo administrativo junto ao Incra. E que já havia contratado outro escritório para tentar acelerar as legalizações e confirmações de sua posse na área. O litígio com o órgão federal segue em andamento.

 

Delegado busca operários, operadores, articuladores e financiadores

"O dano é muito grande, porque é uma extensão enorme das estradas. Tem supressão vegetal, corte de mata nativa, os absurdos são bem flagrantes. Na área de duna, grande faixa com piçarra, demarcações, obtivemos imagens de drone", descreveu o delegado Fábio Pereira, de Itarema, ainda em 1º de fevereiro deste ano, ao ser contatado a primeira vez pelo O POVO para falar sobre o caso.

O inquérito 468-40/2023 foi aberto duas semanas depois, para apurar a denúncia de crime ambiental na região de mangue e dunas móveis de Itarema. O delegado afirma que ainda não tem como apontar neste momento nomes de acusados, mesmo que indícios e cenários encontrados já tenham relevância. “Mas tudo ainda é hipótese”, pondera.

Vista aérea da cidade de Itarema: vegetação, rio e mar (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vista aérea da cidade de Itarema: vegetação, rio e mar

A denúncia chegou ao Ministério Público Estadual no final de novembro do ano passado, por lideranças dos moradores dos assentamentos. Na penúltima semana de março, a Perícia Forense (Pefoce) esteve na região. Fez um levantamento sobre o que foi degradado na região. Usou coordenadas geográficas e registrou, por exemplo, marcas de pneus de trator e zona desmatada. O relatório de danos feito pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente também já está anexado aos autos da investigação.

A partir dos detalhes já colhidos preliminarmente, o delegado desenhou um organograma que, segundo ele, ajuda a entender como teria sido a execução das pistas clandestinas. Ele usa o formato de uma pirâmide. A divisão de tarefas teria sido de pelo menos quatro grupos, conforme Fábio Pereira: os operários na base, operadores e articuladores no meio e, no topo, quem financiou o(s) projeto(s).

Os operários foram recrutados para o serviço braçal ou no uso de maquinário. Com tratores, caminhões, serras e foices, cumpriram o papel de desmatar o mangue e/ou a mata nativa local ou aplicaram barro e piçarra na faixa da praia ilegalmente. Já os operadores e articuladores, de funções bem semelhantes, seriam os dois grupos que conhecem o histórico das terras da região, sabem sobre documentações existentes ou atuaram na logística e coordenação de funções para que os trabalhos acontecessem.

Os financiadores no topo da pirâmide, bancaram o custo dos serviços, supostamente monitorando as ações à distância.

"O desenho dessa pirâmide ajuda a entender a situação de como pode ter acontecido, mas é algo preliminar. Alguns nomes já disponho, tudo bate com personagens, documentos e situações, mas ainda tenho muito trabalho pela frente", confirma Pereira. Moradores dos assentamentos e gente que comprovadamente participou da obra das estradas também serão intimados no andamento do inquérito.

O delegado confirmou que a suposta presença de facções criminosas "acompanhando" as obras das estradas — ou pelo menos em relação ao desmatamento no mangue — gerou receio entre os que moram na região, de contarem mais detalhes que ajudem na investigação. Segundo ele, a participação ativa de faccionados na mão de obra recrutada ainda é um ponto em aberto.

"O que posso afirmar é que essa facção atua em Patos e controla muito bem as entradas da localidade. Tem diversos olheiros. Têm grupos que informam o movimento de todo mundo", pontuou Fábio Pereira. Nos primeiros depoimentos já colhidos pela Polícia, todos negaram ligação com facções.

 

 

Veja o que os investigados disseram ao O POVO


 Gonçalo Neto nega prestar serviço e sequer conhecer dono de terrenos

Gonçalo Neto falou com O POVO o mais sucintamente possível. Segundo o delegado Fábio Pereira, de Itarema, já havia faltado a três chamamentos para depor. Disse que não contratou maquinário e que não presta serviço nem conhece o empresário dono dos terrenos onde foram feitas as estradas. Nem Eraque Roque, mesmo tendo chamado o consultor de “bandido”.

Trecho próximo ao terreno desmatado ilegalmente em Itarema, onde empresário pretende construir hotel: local tem área pequena com cerca de arame farpado(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Trecho próximo ao terreno desmatado ilegalmente em Itarema, onde empresário pretende construir hotel: local tem área pequena com cerca de arame farpado

OP - A informação da Secretaria de Meio Ambiente, da Polícia Civil e do Ministério Público é de que essa estrada foi feita sem licenciamento ambiental e que você seria o responsável pela execução da obra. Você confirma?

Gonçalo Neto - Não senhor. Tem algo errado aí.

OP - Seu nome é citado em relatório, em documentos públicos a esse respeito. E foi dito que você estaria trabalhando para o senhor Juacy. Essa informação também é dita pelo senhor Eraque Roque, da Tremembé Consultoria Ambiental. Ele também aponta você como a pessoa responsável pela abertura da estrada.

Gonçalo - De forma alguma. Não tenho máquina, não tenho caçamba. Não sou pedreiro, não sou engenheiro nem sou topógrafo. De jeito nenhum.

OP - Nem contratou ninguém para fazer isso?

Gonçalo - Não, não. De forma alguma.

OP - Mas você conhece o Juacy?

Gonçalo - Não.

OP - Nem está trabalhando pra ele?

Gonçalo - Não, senhor.

OP - Mas você conhece essa estrada?

Gonçalo - Não.

OP - Essa informação não procede?

Gonçalo - De forma alguma.

OP - Essa informação está constando em um relatório da Secretaria de Meio Ambiente.

Gonçalo - Com papel e caneta, todo mundo faz o que quer.

OP - Você quer falar mais alguma coisa a respeito disso?

Gonçalo - Amigo, não, não.

(Gonçalo liga de volta poucos minutos depois)

OP - Pois não, Gonçalo.

Gonçalo - É que a ligação é gravada e eu queria saber o seu nome.

OP - Eu me identifiquei logo no começo da nossa conversa. Meu nome é Cláudio Ribeiro, sou repórter do O POVO.

Gonçalo - Tá. Tudo bem. É que não quero meu nome envolvido em nada disso. Porque não estou fazendo nada de errado.

OP - Estou lhe procurando exatamente porque seu nome é citado em relatório da Secretaria do Meio Ambiente de Itarema e na investigação da Polícia Civil.

Gonçalo - Cláudio Ribeiro, não é?

OP - Isso.

Gonçalo - Pronto, vou salvar aqui seu nome.

OP - A informação do senhor Eraque Roque, que diz que você foi a pessoa que conduziu a execução da obra da estrada?

Gonçalo - Esse rapaz, eu não conheço, não sei quem é. Eu tenho um terreno lá na Ilha de Guajiru, não é nem nessa região que você está dizendo em Itarema. Tenho o terreninho lá e não tem nada a ver com isso aí. Esse rapaz, já liguei para um amigo meu, para saber quem é ele. Esse meu amigo diz que ele é um tremendo bandido, que responde a vários processos. Mas enfim…

OP - Ele fala que você é “a pessoa que trabalha para o Juacy”. Que “quem estava lá para abrir a estrada e contratou a máquina foi o Gonçalo”.

Gonçalo - Não, não.

OP - Ele disse que você presta serviço para o Juacy. Isso não procede?

Gonçalo - Não. Procede não, viu, meu querido. Eu nem conheço esse rapaz.

OP - Mas você trabalha para alguém, trabalhou nessa estrada?

Gonçalo - Não, não. De forma alguma.

OP - Nem trabalhou para ninguém nem pagou ninguém?

Gonçalo - Não, de forma alguma. De forma alguma. Cláudio Ribeiro, né?

OP - Isso, do jornal O POVO.

Gonçalo - Ok.

 

 

Deco Costa, dono da memória, afirma que fez corretagem de terrenos na região da praia 

Deco Costa (Raimundo Nonato Costa Oliveira) afirma que a o que chamam de “estrada do mangue” era uma “estrada centenária”, que uma empresa comprou um terreno na região e quis reabrir o trecho tomado pelo mato. Ele teria até ido com algumas pessoas “bater o mato”. Mas que seria um ponto que “não cruza mangue”. Deco diz que fez corretagem de terrenos na região da praia, onde foi feita a outra estrada sem licenciamento.

Vista aérea do assentamento Moitas no distrito de Amontada: beleza natural atrai especulação e tentativa de uso irregular de terras na região (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vista aérea do assentamento Moitas no distrito de Amontada: beleza natural atrai especulação e tentativa de uso irregular de terras na região

Sobre as estradas: "Olha, de uma, essa da faixa de praia lá em Patos, essa aí eu tenho. A outra, de região de mangue, não tenho conhecimento. Na verdade, eu tenho um terreno lá em frente a ela. Aí vendi uma parte para uma pessoa, que comprou a parte da frente e mandou construir essa estrada.

Venda de terrenos: "De uns dois a três anos pra cá, como eu conheço toda a região e sou de lá, eu agilizei para a compra de alguns terrenos. O cara chegava 'Deco, quero comprar esse terreno aqui'. Eu ia lá, falava com o dono da casa, 'o rapaz quer comprar isso aqui', aí o rapaz negociava a casa. Teve um senhor lá que vendeu a casa e uns terrenos para um gringo, aí ficou um terreno, ele foi e me vendeu também. Isso já tá com uns três anos que comprei do rapaz, quando foi ano passado, acho que de outubro pra novembro, eu vendi a frente do terreno para um rapaz de Fortaleza, que mandou construir acho que uns 100 metros de estrada lá".

Licenciamento: "Na época, eu estive lá com o então secretário de meio ambiente daqui de Itarema. Fui lá nesse dito terreno da praia. Aí ele falou que dava para construir, pra fazer um projeto e construir. Dava pra fazer um calçadão. Ele mesmo foi lá e marcou os terrenos. Dava pra fazer calçadão, pra urbanizar, uma área como praça. Aí se comprometeu de fazer, o então secretário, junto com a gestão. E não fizeram. Isso foi antes da Semana Santa do ano passado.. Ele não fez o serviço. Aí quando foi no meio do ano, não lembro qual o mês.. já depois do meio do ano, eu vendi pra esse rapaz essa parte da frente. Aí o rapaz pegou e mandou fazer (a estrada). Mas eu acho que ele chegou a tirar alguma licença na Prefeitura. Não sei te informar direito. Tem um rapaz, de uma empresa que eu prestava serviço, que era quem cuidava dessa área de licença ambiental".

Responsável pela obra da estrada: "Não, não. Eu fiz o trabalho de corretagem, de corretor".

"Bater o mato": "Lá era uma estrada centenária. Da época do Brasil Colônia, dos coronéis aqui da região de Patos. Na época que foi construída a fábrica de cachaça aqui em Patos, vinha todo o material por essa estrada. É muito antiga. E com o passar dos anos, o mato foi fechando. Ela ficou desativada e só andava carroça, cavalo, coisa assim. No começo do ano passado, uma empresa comprou um terreno lá e queria reabrir essa estrada. Aí sei que foram lá, levaram as máquinas para reabrir. Para fazer como a gente chama aqui no Interior, 'bater as laterais da estrada'. Nessa época aí, que era pra bater, que tinha alguns cajueiros, muricizeiro, mata nativa mesmo, abriram lá. Quando foi depois, parece que o rapaz não tinha tirado a licença ambiental, aí a comunidade lá entrou, os assentamentos, e pararam o serviço. E pronto, tá parado lá. Nesse trecho que nós estamos falando não cruza mangue. Eu fui com o pessoal na época, ainda em janeiro (de 2022), só pra bater os galhos de cajueiro, que era para passar algum carro, que o pessoal queria ver os terrenos ainda. Não tinha nada de construção de estrada ainda. Só pra bater os matos nas laterais, os galhos que eram maiores. Nessa outra época já não era mais comigo".

Mão de obra: "Pronto, é desse grupo aí. Fui mostrar onde seriam os limites do terreno. Porque sou afilhado do Bolívar de Paula Pessoa, que é filho dos coronéis antigos. Eles eram os donos dos Patos. Do rio Aracatiaçu ao rio Umirim, era tudo da família do seu Bolívar, do Otávio, do Zé Frederico, do coronel Zé Gomes. E como eu sabia histórias dos terrenos tudinho, o cara me procurou e disse 'você sabe onde é esse terreno?'. Rapaz, eu sei. 'Você não quer ir lá comigo me mostrar?'. E fui mostrar mais o rapaz. Na semana seguinte ele me ligou e disse 'Deco, você tem como arranjar uns trabalhadores pra lá, pra cortar os galhos de cajueiro? Porque a estrada fechou, não tá conseguindo passar carro. Só tá passando moto ou cavalo. E a gente queria entrar com carro lá'. Aí eu disse rapaz, dá certo. O pessoal daqui foi lá, bateram com a foice. ele pediu pra eu ver quem poderia fazer. Aí mostrei as pessoas pra ele. Estava aqui, indiquei, aí ele empeleitou com três trabalhadores. As pessoas foram lá e cortaram os galhos dos cajueiros".

Distorção: "Não existe isso, não. É fantasia (sobre número de 15 operários na obra). Só pra você ter uma ideia, na época, isso foi em janeiro. Quando foi lá para abril, quando o pessoal andou com uma máquina, só era uma lá trabalhando, eu conheço a história dos terrenos tudinho. Aí derrubaram uns dois fios de arame. Meu amigo, no outro dia o pessoal me ligando, que estava tendo uma invasão, que estavam invadindo os terrenos. Rapaz, é muito história distorcida".

 

 

 Eraque Roque: "fui contra a estrada ser aberta"

 

Eraque Roque foi contratado pelo empresário Juacy Pinto, através da Tremembé Consultoria Ambiental, para tentar agilizar as licenças ambientais e desfazer a acusação de sobreposição de terrenos com os assentamentos federais. “"Quem estava lá para abrir a estrada e contratou a máquina foi o Gonçalo. Ele presta serviço para o Juacy.”, afirmou.

Passeio no rio Aracatiaçu, em Amontada: território em conflito devido a construções irregulares de estrada destruindo o mangue(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Passeio no rio Aracatiaçu, em Amontada: território em conflito devido a construções irregulares de estrada destruindo o mangue

Contrato com Juacy: "No ano passado o senhor Juacy contratou minha empresa para que a gente desse assessoria a ele na questão ambiental da área dele. Porque ele queria fazer uma pousada lá, um hotelzinho pra ele. Minha empresa presta serviço para isso. Licença ambiental, se tiver alguma questão de regularização fundiária".

Notificação do Incra: "A minha pessoa, Francisco Eraque Roque, e a minha empresa nunca foram notificadas. Quem foi notificado foi o meu cliente. Eu recebi a notificação porque tinha uma procuração nos autos do processo. A notificação dizia para ele parar o serviço que havia começado na abertura da estrada".

A estrada: "A estrada eu não mandei construir, não autorizei construir, não pedi para construir. Fui contra a estrada ser aberta. Aí eu cheguei um dia nos Patos, estava o senhor Gonçalo lá, com uma máquina. Perguntei para que era a máquina, ele disse que “a máquina é pra gente abrir a estrada”. Aí o Mazinho, que era o dono da máquina, eu cheguei pra ele e disse 'Mazinho, você não abra essa estrada'. Porque a estrada não tem autorização ambiental pra ser aberta. Se você abrir é responsabilidade de vocês, não é minha. Não sou doido, vocês vão prejudicar meu cliente e a vocês próprios. Porque Ibama ou Semace, um desses dois pode vir aqui e apreender a máquina e vocês responderem a processo por crime ambiental".

Quem abriu a estrada: "Quem estava lá para abrir a estrada e contratou a máquina foi o Gonçalo. Ele é um metido. É um cara que se mete em tudo sem saber o que está fazendo. Ele presta serviço para o Juacy. Mas eu não sei quem mandou abrir a estrada, não estou dizendo, quem mandou quem não mandou. Estou dizendo que cheguei lá, a máquina estava e eu disse ao Gonçalo que ele não abrisse a estrada, não entrasse com a máquina lá porque era uma área que estava sofrendo supressão vegetal".

Uso da estrada: "A estrada tem a finalidade de dar acesso a entrar na propriedade do próprio cliente, do próprio Juacy. Porque a história de que existe uma sobreposição do Juacy é mentira. A sobreposição é do Incra, não do Juacy".

No mangue: "Não, a estrada não é dentro do mangue. Quem lhe disse isso está totalmente mentindo. A estrada tem uma área de mata? Tem, mas não mangue. O mangue está do outro lado da praia".

Sobreposição com assentamentos: "A história de que existe uma sobreposição do Juacy é mentira. A sobreposição é do Incra, não do Juacy”.

Processo no Incra: "A gente está esperando que o Incra diga o que pretende fazer. Caso ele não se pronuncie, a gente ainda vai para a parte administrativa, encaminhar para o Incra nacional. Se não disser nada, aí a gente vai judicializar".

O terreno: "Não posso afirmar categoricamente, até o momento, de quem é o terreno. Se é do Juacy ou se é do Incra. Porque até agora o Incra não deu o ato desapropriatório à gente. Outra coisa: a matrícula do Juacy tem 50 e poucos anos. Não é uma matrícula legal? Então a matrícula do Incra também não vai ser legal. Porque são todas da mesma época, com a mesma situação".

 

 

Metodologia

 

Os dados utilizados nesta reportagem foram analisados com base em documentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Autarquia do Meio Ambiente do Município de Amontada (Amama) e do Cartório Ofício de Notas e Registros de Itarema-CE. Para o cálculo das áreas dos terrenos, as coordenadas geográficas descritas nos documentos foram convertidas e projetadas com as bibliotecas geopandas e shapely, dentre outras. Com isso, foram verificadas as interseções com as geometrias dos assentamentos federais e das estradas irregulares observadas na região. Por fim, foi feita uma validação dos cálculos e análises com técnico da Superintendência de Regularização Fundiária.
Parte desses documentos serão disponibilizados, resguardando dados sensíveis, junto aos códigos feitos para a realização das análises. Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github.


 

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