Instância máxima do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) volta a estar no centro do debate público, especialmente neste segundo semestre de 2023, devido a mudanças na composição de suas vagas.
Prerrogativa exclusiva do presidente da República, a indicação de um ministro para a Corte deve seguir alguns preceitos, como a exigência de notório saber jurídico e reputação ilibada. No entanto, não versa sobre a obrigatoriedade de seguir critérios como cor e gênero, por exemplo.
A fim de garantir uma maior diversidade de representação, movimentos da sociedade civil têm se articulado para demandar indicações que garantam a contemplação de um maior número de segmentos na corte constitucional do País. Movimentos negros organizaram, inclusive, uma plataforma na qual é possível enviar um e-mail a endereços vinculados à Presidência demandando a indicação de uma mulher negra para o STF. Algo inédito na história.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), presidente que mais indicou ministros para o STF desde a redemocratização (nove), deverá escolher mais um membro para a Corte após a aposentadoria de Rosa Weber. Neste ano, ele já indicou seu então ex-advogado Cristiano Zanin, um homem branco, o que gerou críticas de opositores e até ruídos entre aliados da esquerda.
Desta vez, movimentos sociais pedem a indicação de uma mulher negra para a vaga de Weber, alegando que é necessário garantir poder de decisão a representantes de grupos historicamente minoritários nesses espaços de poder.
Dos 170 ministros que o STF teve desde sua criação no período republicano (1891), apenas três mulheres ocuparam assentos na Corte. Entre os homens, somente três pretos chegaram ao Supremo.
A primeira mulher a chegar ao STF, Ellen Gracie, se tornou ministra mais de um século depois da proclamação da República, no ano 2000. Posteriormente, foi indicada Cármen Lúcia, em 2006, que segue na posição até hoje. Por último, Rosa Weber, em 2011, que deixou o tribunal no final de setembro de 2023 e abriu a vaga para nova indicação de Lula.
Entre os homens negros, Pedro Lessa foi o primeiro a chegar ao STF após ser nomeado pelo então presidente Afonso Pena em 1907. Hermenegildo Barros que chegou à Corte máxima brasileira em 1919 e lá permaneceu até 1937. Ele foi, também, o primeiro presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 1932.
O terceiro homem negro a ocupar uma cadeira no STF só foi nomeado mais de 60 anos depois, em 2003, quando Joaquim Barbosa foi alçado a ministro. Ele foi o primeiro negro a presidir o Tribunal, entre 2012 e 2014.
Raquel Andrade, advogada e membro da Associação Nacional da Advocacia Negra, destaca a importância da confluência identitária de gênero e raça na Suprema Corte a partir da análise do retrato da população. “56% dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos. Ao passo em que apenas 12% dos magistrados brasileiros se autodeclaram da mesma forma. Há uma repercussão do machismo e racismo estrutural nesses espaços”, diz.
Andrade defende a indicação de uma mulher negra como forma de promover o reforço democrático do STF. “O Brasil precisa estar representado com profundidade e qualidade nesses ambientes. Além de tornar o tribunal heterogêneo, no sentido institucional, isso amplia as perspectivas da aplicação do Direito em si mesmo. O que causará um impacto estrutural do machismo/racismo que está presente em todos os segmentos”, argumenta.
Ela pontua que é necessário promover a reparação para fomentar a inclusão. “É isso que representa a chegada de uma mulher negra na Suprema Corte. Há uma confiança de todos que atuam na promoção da igualdade para que o presidente indique uma mulher negra. Acho que a conjuntura é favorável. O próprio retrato dos ministérios indica essa relevância. A gente não só tem esperança, como promove ações para fomentar o debate”.
Embora haja pressão para a indicação de uma mulher para a vaga, o presidente Lula tem dado sinalizações de que possivelmente não levará em conta critérios de “gênero e cor” para apontar o próximo indicado ao Supremo.
Três homens figuram entre os mais cotados para substituir Rosa Weber: o ministro da Justiça Flávio Dino; o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas; e o advogado-geral da União, Jorge Messias.
Para Monalisa Torres, professora vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Políticas Eleições e Mídia (Lepem-UFC), é natural a cobrança desses segmentos minoritários, sobretudo num contexto em que o governo Lula utilizou-se do “discurso da inclusão” no período eleitoral.
“Se faz essa pressão para que haja representatividade, dado o papel do Judiciário como poder contramajoritário. Aliado a isso, a gente viu uma campanha do PT extremamente mobilizada a partir de uma narrativa que fazia frente ao conservadorismo, com uma imagem pluralista e inclusiva. Criou-se uma expectativa dos campos progressistas de que as diferentes questões de escolha do governo levassem em conta a representatividade”.
A professora reforça a importância de um esforço para tornar esses espaços colegiados cada vez mais plurais e rebate o argumento da “meritocracia”, que aponta a qualificação como único critério para indicações. “O STF tem dentre as atribuições, pensando no sistema de freios e contrapesos, o controle da constitucionalidade. Portanto, uma instância para ponderar e orientar (tomadas de decisão) a partir da Constituição”, diz.
Sobre a questão meritocrática, Monalisa diz ser um “argumento frágil”, porque reforça a “lógica da exclusão” propagada ao longo do tempo. “Não significa dizer que se escolhe uma pessoa simplesmente pela cor, gênero ou orientação sexual. O que quero dizer é que é possível se fazer essa escolha, garantindo essa representatividade demandada, com pessoas qualificadas para a posição. Uma coisa não inviabiliza a outra”, conclui.
>> Ponto de vista
Por Júlia Duarte
Desde que começaram as movimentações para as substituições de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF), diversos setores levantaram, mais uma vez, a bandeira de que era preciso mais juristas negras e negros neste espaço do Judiciário brasileiro. Era a chance de mudar o jogo ou, pelo menos, contribuir para a mudança.
Em 132 anos de história, a mais alta Corte do Judiciário passou por seis constituições, mas só teve três ministros negros e três ministras mulheres. Nunca uma mulher negra sentou em uma cadeira do STF, nem alguém abertamente LGBTQIA+. Os números não batem com uma população brasileira formada por 52% de mulheres e 56,1% de negros.
As participações são tão poucas que vale citar: Pedro Lessa e Hermenegildo de Barros, nomeados ainda no início do século XX, Joaquim Barbosa, ocupante da Corte entre 2003 e 2014, Ellen Gracie, de 2000 a 2011, Cármen Lúcia, de 2006 até hoje, e Rosa Weber, que se tornou ministra em 2011 deixou o cargo neste mês de outubro.
Weber, mesmo com sua postura reclusa e de evitar comentários, ressaltou publicamente que o déficit de representatividade feminina significa um “déficit para a própria democracia”.
Mas quando se fala de uma escolha para postos como estes, como foi também para os ministérios do Executivo, o principal argumento é o de que “o critério é a competência”. É uma boa ponderação, mas não se sustenta.
Enquanto montava sua equipe, a ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), disse querer uma equipe diversa na pasta, mas que enfrentava dificuldade para contratar mulheres pretas. Um dia depois recebeu "um monte de currículo". Inclusive com indicações feitas por colegas de Esplanada.
Os candidatos qualificados existem aos montes, sejam de advogados, juízes e procuradores. O ponto é o esforço de colocar no centro das decisões quem mais sofre com a vulnerabilidade de um país desigual como o Brasil.
Tornar espaços mais plurais para que os rumos da Justiça incorporem a compreensão das adversidades sociais. Não é fácil e é um esforço coletivo. É preciso sair da zona de conforto e dar ouvidos aos clamores que um avanço precisa ser feito, não só com as indicações, mas com a percepção que a defesa de direitos básicos não é uma “pauta progressista”.
Discutir meios de garantir direitos de mulheres, negros, indígenas e crianças é seguir a Constituição. E além de pensar, é preciso partir para a implementação. Aumentar a participação de mulheres nos tribunais, com critérios de promoção que levem em conta a paridade de gênero. Incentivar a diversidade nos espaços, para tentar amenizar as consequências do racismo estrutural que a escravização e a abolição sem inclusão deixaram.
Júlia Duarte é repórter de Política do O POVO
Série de reportagens discute a representatividade feminina nas instâncias do Judiciário no Brasil