Foi só o filme “Persuasão” ser lançado na plataforma Netflix para a polêmica tomar conta da comunidade de leitores, principalmente leitoras, da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817). A crítica de TV, cinema e streaming do jornal estadunidense "New York Times", Sarah Lyall, escreveu um longo artigo investigando as causas de muito leitores quase “desmaiarem” diante da nova adaptação do sexto romance de Austen e outros “abandonarem de vez o sofá” com desgosto das “liberdades” que empanturram a obra fílmica.
A crítica de cinema Dana Stevens, da revista "Slate", não teve piedade da diretora britânica Carrie Cracknell ao afirmar que o filme “Persuasão” não seria apenas “a pior adaptação de Austen, mas um dos piores filmes da memória recente”.
No Brasil, o filme parece não ter agradado nem aos gregos (críticos) nem aos troianos (espectadores- leitores de Jane Austen). A psicanalista, escritora e crítica literária Fabiane Secches afirmou, em texto publicado na "Folha de S. Paulo", sobre o filme: “é uma obra fraca, com decisões ruins, que se distancia muito da qualidade do material original”.
Mas por que tanto rebuliço em torno da adaptação de uma obra publicada em 1818, após a morte da autora? Em primeiro lugar, os leitores da Jane Austen formam uma comunidade apaixonada pela autora. “Ela é muito querida. Sua obra é comparada a uma joia”, afirmou Adriana Sales, criadora do site Jane Austen Sociedade do Brasil, que de leitora tornou-se pesquisadora e tradutora da obra de Austen.
Professora de língua inglesa e suas literaturas no Cefet-MG, Adriana ameniza a saraivada de críticas ao filme afirmando que a adaptação é muito bem vinda, principalmente por ser uma obra com alta carga romântica e que traz à tona questões de gênero.
No entanto, embora não tenha debandado do sofá, viu algumas fragilidades na tradução do livro para o filme. A começar pela dramaticidade da personagem Anne Elliot que, no livro, é uma moça recatada envolta num sofrimento íntimo por ter recusado o amor de sua vida 8 anos antes. “Esse sofrimento não é retratado, não se consegue acompanhar a dor de Anne Elliot”, analisa a professora, principalmente quando o capitão Frederick Wentworth retorna ao lugarejo onde Elliot ainda peleja com o arrependimento por tê-lo dispensado.
Além disso, a polêmica da quarta parede parece infinita e se tornou um dos maiores pontos de discórdia entre as espectadoras da adaptação. O recurso no qual a personagem fala diretamente com o espectador via câmera, segundo Adriana Sales, é bem vindo e foi positivo, mas, em alguns momentos, soa muito “forçado”.
A especialista em Jane Austen afirma ainda que o ator Cosmo Jarvis escolhido como par romântico da mocinha é bonito e sóbrio, mas “não entrou no personagem”, que é muito mais intenso. Segundo ela, algumas licenças são até necessárias para uma adaptação a fim de modernizar o texto básico.
No entanto, colocar Dakota Johnson correndo enquanto um off com a voz dela lia o bilhete deixado pelo capitão Wentworth, “não foi a melhor alternativa” para a atualização da obra, avalia a especialista. "A carta é um ápice e a corrida fez perder o encanto do texto", sugere Adriana, que elogia a troca do outono e do inverno do livro pela primavera e o verão do filme, o que permite, inclusive, mais cenas valorizando a bela fotografia do filme.
Adriana é um exemplo de leitora apaixonada. Conheceu a autora durante a graduação em Letras, em 1998, mas só um pouco mais tarde, morando em Nova York, é que adquiriu toda a coleção de Austen. A paixão transformou-se pesquisa e, mais tarde, em tradução. Em 2008, decidiu criar um Jane Austen Sociedade do Brasil, a exemplo de outros países como Estados Unidos e Reino Unido que mantêm sociedades sustentadas pelos aficionados pela escritora. "Esses grupos são muito organizados e se reúnem com frequência em eventos sobre a autora. Participei, em 2016, em Londres, de um desses encontros com 850 pessoas pagantes".
No País, o Jane Austen Sociedade do Brasil disponibiliza pesquisas recentes sobre a escritora e oferece cursos ministrados pela própria Adriana sobre Jane Austen. A autora movimenta de forma silenciosa uma legião de leitores, tanto que a obra em destaque Persuasão chegou ao clube de leitura do Tik Tok em agosto. O Book Club Tik Tok Book Club tem em média 60 bilhões de visualizações.
De acordo com Adriana Sales, o público leitor de Austen no Brasil é formado por 95% de mulheres. O que atrai tantas mulheres à literatura novecentista da escritora inglesa? "Apesar dos livros ter sido escritos em pleno século 19, os temas persistem até hoje. As heroínas de Jane estão em primeiro plano e o texto atravessa séculos e transcorre do micro, que é o interior da Inglaterra, ao macro que são temas universais femininos", explica Adriana. Segundo ela, Jane pode ser considerada "protofeminista" por denunciar a situação da mulher daquela época nos seus romances", sem contar a forma como ela trouxe inovações para o romance.
Ayla Nobre concorda que há uma identificação entre as heroínas de Austen e as leitoras do século 21. "Comecei a ler Jane Austen aos 15 anos e li, simultaneamente, Jane Austen e Charlote Brontë e eram dois mundos muito diferentes. Enquanto Charlote trazia o sobrenatural e o gótico em Jane Ayre, Jane Austen escreve sobre as relações mais sensíveis".
As distâncias entre o tempo - século 19 - e o cenário - interior da Inglaterra - nunca foram problema intransponíveis para Ayla. "Nenhum estranhamento. Quando comecei a ler, passei a pesquisar sobre a autora e o lugar onde acontece a trama e claro que é uma literatura muito diferente de Charles Dickens, embora Dickens escreva a partir da Inglaterra e também no século 19".
Quando a escritora Kami Girão começou a ler Jane Austen, chamou sua atenção o fato de que o livro era vendido como "romance" que parecia bem mais mais simples do que ela encontrou na trama: "Percebi que os personagens eram complexos e havia uma ironia fina no texto". A ironia e a elegância do texto de Austen, por sinal, influenciaram a autora do romance "Fisheye" e do livro contos "Anamélia".
As duas estão se esquivando da polêmica da quarta-parede e outras licenças do filme Persuasão. Enquanto Ayla está relendo a obra para ver o filme, Kami acompanha de longe a celeuma crítica. "Pelo que tenho lido, eles erraram a mão e talvez não fosse essa a pegada do filme". Ela cita, por exemplo, Patricinha de Bevery Hills, como um acerto fílmico baseado da obra de Austen. "Foi a melhor adaptação de Emma", afirma Kami.
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