Logo O POVO+
Amazônia tem 8 mil anos de presença humana, afirma arqueólogo Eduardo Neves
Reportagem Seriada

Amazônia tem 8 mil anos de presença humana, afirma arqueólogo Eduardo Neves

Novas pesquisas arqueológicas confirmam presença humana na Amazônia no passado, diferente do que diziam estudos do século 19, quando arqueólogos estrangeiros defendiam que a floresta amazônica era intocada.
Episódio 6

Amazônia tem 8 mil anos de presença humana, afirma arqueólogo Eduardo Neves

Novas pesquisas arqueológicas confirmam presença humana na Amazônia no passado, diferente do que diziam estudos do século 19, quando arqueólogos estrangeiros defendiam que a floresta amazônica era intocada.
Episódio 6
Tipo Notícia Por

 


Desconstruir as ideias que pairam sobre a Amazônia fincadas, principalmente, a partir do século 19 é uma tarefa que o arqueólogo e professor da USP Eduardo Góes Neves tomou para si. Essas ideias resistem em dois pilares: num deles a premissa de que a Amazônia Central nunca foi muito povoada, no outro, a ideia de uma floresta intocada à espera de estratégias externas que, na opinião do arqueólogo, “dão errado sempre”. De acordo com o Neves, essas premissas têm contribuído para o processo de destruição da Amazônia, que teve início há bastante tempo, mas que se intensificou nos últimos anos.

Eduardo Neves, arqueólogo (Foto: Luiz Pinto)
Foto: Luiz Pinto Eduardo Neves, arqueólogo

No entanto, derrubar essas muralhas de conhecimento que, segundo Eduardo, de alguma forma também contribuíram para as pesquisas arqueológicas é um achado de monta. Eduardo Neves arregaçou as mangas e reuniu evidências arqueológicas que mostram que a presença humana na Amazônia Central tem cerca de 8 mil anos e é tão antiga quanto a de diversos povos originários de outros países da América do Sul. E não se trata apenas de presença humana, segundo o pesquisador. A Amazônia contou na sua pré-história com uma povoação humana densa, com organizações sociais sofisticadas, e tudo isso resultou em "transformações nos ambientes amazônicos".

O resultado das pesquisas desenvolvidas por ele e um grupo de arqueólogos brasileiros na Amazônia Central desde meados de 1990 foi reunido 10 anos atrás na primeira versão do livro "Sob os tempos do equinócio. Oito mil anos de história na Amazônia Central", publicado neste mês de agosto pela editora Ubu. Neves conta que a pandemia e os discursos negacionista e anticiência que tomaram conta do Brasil desde 2018, com a eleição do presidente Bolsonaro, foram responsáveis para que ele tirasse o livro do gaveta.

"Minha expectativa é que este livro ajude aos brasileiros e brasileiras entenderem um pouco mais sobre as riquezas do passado da Amazônia, e ver que a história do Brasil não começou em 1500, começou muito antes disso", afirma o arqueólogo Eduardo Neves em entrevista ao O POVO. 

Eduardo Neves não esconde seu maior temor sobre o futuro da Amazônia: "Que a gente chegue naquele que se chama de ponto da virada, o 'pitting point, aquele momento onde as propriedades funcionais da floresta vão deixar de existir e ela vai se tornar outra coisa, talvez um cerradão e um cerrado", reflete o arqueólogo. Confirma a seguir a entrevista:

O POVO - Logo no início do seu livro, você chama a atenção para a necessidade de se levar em conta a valorização das pesquisas que estimam que a ocupação indígena na Amazônia em pelo menos 8 mil anos? Por quê?

Eduardo Neves - O que eu falo pra Amazônia vale para o Brasil inteiro. Eu acho que a gente precisa entender essa história profunda em todos os lugares. Aqui no Sudeste, no Ceará. No caso da Amazônia, eu trabalho na Amazônia, vou trazer para o âmbito amazônico. A Amazônia está sendo destruída. Esse processo não começou agora, mas se acentuou muito nos últimos tempos. E essa destruição está baseada em algumas premissas que têm a ver, no fundo, com questões arqueológicas. A primeira premissa é que a Amazônia nunca foi muito povoada e a arqueologia mostra que isso está totalmente errado, que ela é uma região que foi densamente povoada no passado. A segunda é que a Amazônia é uma floresta intocada, digamos assim, passível de ser desenvolvida por essas estratégias que dão sempre muito erradas, na minha opinião, mas se a gente olhar de novo para a arqueologia, a gente vê que a presença indígena milenar transformou os ambientes amazônicos. Então, as florestas da Amazônia são patrimônio natural, obviamente, mas também um patrimônio cultural. Por isso, nós chamamos esse patrimônio de biocultural. Tem uma conexão muito forte entre essas imagens que foram construídas no Brasil sobre a Amazônia e que são falsas, mas elas embasam o que está acontecendo hoje no Brasil, essa destruição e o papel da arqueologia é fazer uma crítica disso e dizer que essas imagens estão incorretas.

Escavação em sítio arqueológico  em Hatahara, na  Amazônia(Foto: Val Moraes)
Foto: Val Moraes Escavação em sítio arqueológico em Hatahara, na Amazônia

OP - Você tem entre seus objetivos da sua pesquisa própria ciência arqueológica brasileira. Nesses últimos anos, com perda de orçamento para a educação, como a pesquisa arqueológica mais precisamente foi atingida?

Eduardo Neves - Foi muito atingida. Estou numa situação um pouco mais privilegiada porque trabalho na Universidade de S. Paulo e a gente tem fundações estaduais de pesquisa, como a Fapesp que dão um apoio muito grande, mas tenho excelentes arqueólogas e arqueólogos amigas e amigos espalhados pelo Brasil e alguns deles estão passando por uma situação muito difícil: falta de verbas, laboratórios fechando. Isso não é uma coisa nova, mas piorou muito nos últimos anos. A gente teve o incêndio do Museu Nacional (em 2018), que foi uma tragédia para a ciência e para a arqueologia também. Esse momento está sendo muito difícil para a ciência em geral no Brasil. A gente vive uma época de negacionismo científico, a ciência está sendo muito atacada e, obviamente, a arqueologia entra nessa questão. A gente tem agora conversas sobre cidades fantásticas, cidades feitas por Ovnis, Ets na Amazônia, e isso tudo está ligada a essa perspectiva negacionsita.

OP - O que são essas cidades fantásticas?

Eduardo Neves - A Ratanabá, uma loucura. São 500 mil pessoas engajadas numa coisa que não tem pé nem cabeça. É o mesmo tipo de perspectiva do negacionismo. Tem uma coisa na arqueologia que é a imaginação sobre o passado. A arqueologia é um campo muito fácil de ser apropriado por esse tipo de perspectiva que não é científica. E num momento com esse em que o próprio governo federal, que deveria esclarecer as coisas para que os cidadãos tomem a melhor decisão, é um grande disseminador de mentiras, isso é mais difícil ainda para a ciência em geral e para arqueologia em particular.

Feições da terra preta na Amazônia Central                            (Foto: Eduardo Neves)
Foto: Eduardo Neves Feições da terra preta na Amazônia Central

OP - Você revisita a produção científica nacional e estrangeira para a construção do seu livro. Quais os achados mais importantes dessa revisão de pesquisas sobre a Amazônia Central?

Eduardo Neves - Se a gente pensar na Amazônia especificamente, apesar da gente ter uma tradição importante de pesquisas feitas por brasileiros e brasileiras na Amazônia desde o século XIX, o Museu Nacional, que foi destruído no incêndio em 2018, teve um papel fundamental na consolidação da ciência no Brasil e uma área que foi importante desde o começo foi a arqueologia, com foco nas pesquisas da Amazônia, ou seja, a gente tem uma participação nacional importante. Mas nós também temos uma participação muito importante de arqueólogos e arqueólogas estrangeiros que trabalharam na Amazônia, basicamente dos Estados Unidos e da Alemanha, durante muito tempo. Esses autores e autoras colocaram várias hipóteses sobre como deveria ter sido a vida no passado ali, hipóteses que nem sempre eram concordantes entre si, eram hipóteses conflituosas. E, na verdade, isso foi muito positivo na minha opinião, porque tirou uma série de problemas de pesquisa num campo de conhecimento que demandava a realização de pesquisas de campo para testar essas hipóteses e ver até que ponto elas explicavam de fato o que aconteceu no passado. A minha geração de arqueólogos, nós que começamos a trabalhar na década de 1990, é uma geração que se beneficiou muito disso. Porque a gente tinha o repertório de problemas de hipóteses que haviam sido aproveitadas anteriormente e que nós poderíamos testar. Então, faço esse balanço para explicar por que eu fui trabalhar ali e quais eram as questões que eu queria resolver a partir dessas pesquisas.

OP - Qual o impacto para as pesquisas recentes e futuras da confirmação da presença humana na Amazônia para além do que tradicionalmente era estimado?

Eduardo Neves - A primeira versão desse manuscrito, eu escrevi há 10 anos. Duas coisas me fizeram tirar esse livro da gaveta. Uma delas foi a pandemia e a outra foi o governo Bolsonaro, com essa coisa da contrainformação e das mentiras, do negacionismo. Eu percebi que como um professor universitário de uma universidade pública, com uma situação privilegiada – com estabilidade no trabalho, enquanto muita gente perdeu emprego durante a pandemia – , o mínimo que eu poderia fazer era tentar trazer de volta pro público as informações que eu acho que são fundamentais que a arqueologia tem construído. Então, minha expectativa é que este livro ajude aos brasileiros e brasileiras entenderem um pouco mais sobre as riquezas do passado da Amazônia, e ver que a história do Brasil não começou em 1500, começou muito antes disso. E que essa história não só da Amazônia, mas do resto do Brasil é fantástica, tem de ser melhor conhecida para que a gente possa pensar no nosso lugar no mundo.

 Vasos e fragmentos de guarita                       (Foto: Eduardo Neves)
Foto: Eduardo Neves Vasos e fragmentos de guarita

OP - Qual o atual estado dos sítios arqueológicos da Amazônia Central? E quais as ameaças que rondam esses sítios?

Eduardo Neves - Nessa região onde eu trabalhei, alguns dos sítios que estão descritos (no livro) não existem mais. Foram destruídos nos últimos 10 anos. A cidade de Manaus cresce muito rapidamente, hoje tem 2 milhões de habitantes e muitos sítios no entorno de Manaus foram impactados diretamente pelo crescimento da cidade, alguns se tornaram loteamentos, outros áreas de cultivo mecanizado. Outra questão muito preocupante é o aumento da violência na Amazônia. A gente viu agora a morte do Bruno e do Dom. Eu não falo desse lugar nesse livro, mas tem uma comunidade onde nós trabalhamos que se chama Ponta da Castanha, que fica às margens do lago Tetfé, a mais ou menos 500 quilômetros a oeste de Manaus, que é um lugar maravilhoso e essa comunidade foi atacada por piratas há mais ou menos um mês. A gente está tendo pirataria na Amazônia, e quando a gente pensa em pirataria, pensa no Caribe no século 17. Existem várias ameaças diretas ao patrimônio arqueológico como o desmatamento, o crescimento urbano que destroem os sítios arqueológicos e o próprio aumento da violência, que dificulta a presença de cientistas no campo por causa das situações de riscos.

Guarita, peça arqueológica da região amazônica (Foto: Maurício de Paiva)
Foto: Maurício de Paiva Guarita, peça arqueológica da região amazônica

OP - Como pesquisador, o que você mais teme pelo futuro da Amazônia?

Eduardo Neves - Que a gente chegue naquele que se chama de ponto da virada, o “pitting point”, aquele momento onde as propriedades funcionais da floresta vão deixar de existir e ela vai se tornar outra coisa, talvez um cerradão e um cerrado. Hoje em dia nós já sabemos, por dados científicos publicados, que no leste da Amazônia, a região que inclui o Pará e o norte de Tocantins, mais emite do que absorve gás do efeito estufa por causa do desmatamento. A Amazônia sempre foi um sumidouro de gases do efeito estufa, responsável pelo esfriamento dessa área do planeta, mas em alguns lugares da Amazônia, essa situação se inverteu, ela está produzindo mais do que absorvendo gás do efeito estufa. Isso é uma coisa que me preocupa muito, que a gente chegue a um ponto de virada que a nossa geração seja responsável direta ou indiretamente por essa perda que é uma perda trágica para todo mundo, pro Brasil e para o mundo. E também para os povos da floresta, não apenas os indígenas que estão sendo muito atacados, tendo suas terras invadidas pelo garimpo ilegal, pela extração ilegal de madeira, pelo narcotráfico. Essas coisas todas são fatores de preocupação para mim e deveriam ser para qualquer cidadão brasileiro.

OP- Num dos capítulos do seu livro, você fala do princípio da incompletude ou do degeneracionismo e de como esse princípio teve impacto na construção do conhecimento produzido sobre a Amazônia. Quais os principais danos que esse princípio causou?

Eduardo Neves - Para mim, a ideia do princípio da incompletude é uma noção que tem a ver um pouco com a noção do lugar que nós temos no mundo, que é um país tropical latino-americano. A gente é um país que foi construído a partir de duas grandes tragédias: uma delas é a escravidão africana e a outra foi o genocídio dos povos indígenas depois da chegada dos europeus aqui. E apesar disso tudo, e eu acredito de verdade mesmo, criamos uma civilização fantástica, uma ideia de país que eu acho muito interessante, (embora esteja) muito atacada agora. Por que eu dizendo isso? É porque esse princípio da incompletude tem a ver com o quê? Sou paulistano e vejo muito aqui em São Paulo uma visão muito pessimista sobre o Brasil, (muita gente) achando que o Brasil é um País que não tem jeito, que é uma bagunça, um país caótico, essas coisas todas que têm como parâmetros para fazer a avaliação desse aparente sucesso, coisas que vêm de fora, do hemisfério Norte, da Europa. As ideias de progresso, de civilização que alimentam essa discussão foram forjadas no século 19 por um monte de homem branco, no apogeu no neocolonialismo, numa época horrorosa para as populações nativas dos trópicos, do Brasil, da América Latina, da África e da Ásia também. Então, eu acho que o que a arqueologia pode fazer pela gente é mostrar que essa ideia está errada, que, na verdade, o que a gente encontra aqui no passado da Amazônia são maneiras sofisticadas de viver, de lidar e transformar a natureza, mas que são diferentes das expectativas dos parâmetros que a ciência consagrou a partir do século 19. Então eu espero que esse tipo de trabalho (desenvolvido para o livro) vá além do debate imediato na arqueologia, mas ele contribua para uma crítica importante da própria situação colonial como é o nosso caso aqui no Brasil.

Capa do livro do arqueólogo Eduardo Neves(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Capa do livro do arqueólogo Eduardo Neves

OP - Seu livro também relata que parte dos achados arqueológicos da Amazônia estão nas mãos de museus das Américas e da Europa? O País nunca teve interesse em trazer de volta esses materiais?

Eduardo Neves - Existem dois grandes museus no Brasil que têm coleções arqueológicas da Amazônia, o museu Goeldi (Museu Paraense Emílio Goeldi) que fica em Belém, fundado em 1866, que é um museu fantástico que pertence ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que está muito sucateado agora. Tem um corpo docente de pesquisadores que é excelente, de altíssimo nível, mas que está sofrendo com falta de recursos, há anos não tem concurso aberto, mas um museu que tem coleções espetaculares e que estão muito bem guardadas. Outro museu importante é o Museu de Arqueologia e Etmologia (MAE), da USP, onde eu trabalho, que também é excelente e tem coleções maravilhosas e bem guardadas. Havia um terceiro museu importantíssimo, talvez o mais importante dos três, que era o Museu Nacional, com coleções fantásticas que pegou fogo em 2018. Em outros museus do Brasil como em Recife que tem uma coleção importante, em Santa Catarina, no Paraná, em Manaus, a gente tem coleções menores, mas também importantes. Sobre essas coleções que estão fora do Brasil, nos últimos 30 anos não vi nenhum movimento de repatriar essas coleções. E na verdade, é muito difícil fazer isso agora porque como a gente vai justificar e dizer: “me devolve essas peças” e a pessoa vai dizer: “Vocês não conseguem nem guardar, olha o Museu Nacional foi destruído por um incêndio”. A gente tem de fazer uma lição de casa importante. Estamos fazendo, mas precisamos continuar para assegurar que esses acervos fiquem guardados com as melhores condições possíveis e que permaneçam para as novas gerações também.

 

 

Conheça mais 4 lançamentos de livros 

 

O que você achou desse conteúdo?