Por séculos, escritores e pintores viraram mulheres pelo avesso. O poeta satírico Manuel Bocage rompeu com o bom comportamento religioso português e esquadrinhou cada espaço do corpo feminino como um “depravado” aos olhos do século XVIII. Édouard Manet gestou “Olympia” e sentiu na pele a rejeição dos conterrâneos diante da mulher nua e branca à caça do olhar do espectador no Salão de Paris de 1863. Um verdadeiro escândalo.
No ano seguinte, Manet concebeu “Déjeuner sur l´herbe”. Na obra, uma mulher nua contracena com frutas do piquenique ao lado de cavalheiros bem vestidos. Ela também encara o público como se os convidasse para o banquete. No século XX, os homens mantiveram-se no ranking da exploração do corpo e do desejo femininos desta vez, potencializados pelo cinema. David Lynch, Pedro Almodóvar, Michael Haneke, Nagisa Oshima são apenas alguns exemplos.
Cada vez mais, porém, e de forma sincrônica e rápida, como convém na contemporaneidade, as mulheres estão tomando as rédeas do próprio corpo, seja nas artes visuais, seja na literatura, como atestam três lançamentos de escritoras nascidas no Ceará. Em “A pupila”, de Virna Teixeira; “Anjos, buracos, pedras e moinhos”, de Betania Moura e “As delícias: prosa erótico-filosófica”, de Tércia Montenegro, a escrita firma-se enquanto esmiúça o corpo feminino, perseguindo seus mistérios e desejos.
Em “A pupila”, narrativa que abre a seleção de contos do livro de Virna Teixeira, a personagem, uma estudante do terceiro ano de medicina, se vê às voltas com o corpo aos pedaços, dissecando-os em milímetros até quase desaparecerem em lâminas. Enquanto tecidos de órgãos são pesados, medidos e descritos com riquezas de detalhes para que o médico patologista experiente pudesse analisá-los, o leitor se transforma numa espécie de observador privilegiado das entranhas alheias.
“Fatiei muitos úteros, ovários, tumores, seios, tireoides, próstatas, estômagos, lesões de pele”, narra a personagem com uma leveza tal que o máximo efeito de estranhamento possível é justamente nada se estranhar. No geral ao mesmo tempo que o curso de medicina se adianta junto com a perícia em fazer carpaccio de vísceras humanas, a personagem vai se transformando até tornar-se uma desconhecida. De tão calada que chegava a ser transparente na sala, a “pupila” fez progresso entre professores excêntricos até mudar quase completamente. “Fui embora, abandonei a especialidade, descolori os cabelos, passei a usar roupas de brechó, fragmentei-me em estranhas ocupações e plantões em hospitais psiquiátricos. Tornei-me escritora de ficção científica”.
Ao longo dos contos que compõem o livro, o leitor, principalmente, se diverte diante de figuras criadas à imagem e semelhança de qualquer um que se sinta, às vezes, deslocado do ambiente tal qual um útero fora do corpo. Em “Amazona”, surge uma narradora que, de tanto tentar entender a sexualidade dos ingleses, investe em sadomasoquismo para testar a si própria. ”Vontade eu tinha de sobra”, avisa, num prenúncio de que o desejo seguiria seu curso, começando de forma tímida, percorrendo trilhas na internet, até investir em seus próprios apetrechos – chicote incluso –, roupas ousadas de borracha e encarar o primeiro clube sadomasô, largar a profissão de design e se intoxicar de novos prazeres. Mas, tudo isso tem seu preço.
Sexo está no centro de algumas questões das narrativas. Ou de todas elas, e isso vai depender muito de como você lerá o texto de Virna. Talvez um dos contos mais divertidos da coletânea seja “Manda Nudes”. No caso a personagem está tentando livrar-se da dependência do sexo e seu prazer viciante.
Porém, as reuniões em grupo nem a análise lacaniana impediram a recaída e uma visita a um novo clube sadomasô na rua Augusta. Encontra com Max e a troca de nudes se estabelece. O desejo pulsante mediado com conversas de WhatsApp “evolui” até se ver vestida no “couro básico com tachas”, e ir à luta domar o “brat”. O texto de Virna tem o mérito de pôr a mulher no controle ou descontrole calculado do seu desejo, ambientado em qualquer parte do mundo, não importa se no Conjunto Palmeiras, Londres, Nova York.
Tércia Montenegro, por sua vez, reinventa no seu “As Delícias: prosa erótico-filosófica” a Teresa filósofa setecentista. "Thérèse Philosophe", de autoria incerta, tornou-se um clássico da literatura erótica francesa, com as memórias de Teresa até o defloramento. Mas não um qualquer. Este deveria ser com consentimento e prazer, algo revolucionário para uma mulher. E teria de ser pelo “melhor homem em suas condições.” Entre as duas Teresas, o “prazer” e o “melhor homem” andam juntos.
Teresa é a personagem narradora de “As Delícias...”. Mulher de 40 anos que decide, após o término de um relacionamento, abrir um restaurante na praia. Tudo é novo nesse ambiente em que o mar não providencia apenas o peixe, mas também o pescador Eliézer com quem Teresa parece encontrar o melhor do sexo provido pelo macho, e também o mais profundo prazer que seu próprio corpo lhe oferece.
Tal como escolher os temperos dos pratos, observar o ponto exato do cozimento, atentar para os aromas e cores até que esteja perfeito aos olhos e paladar, o sexo para Teresa segue o mesmo ritual. Até porque, um dos prazeres adicionais é olhar-se contraindo e expandindo durante o ato, gosta de ver sua pele, rosto, olhos, sexo puro em movimento.
Mas engana-se quem acredita que "As Delícias..." é feito apenas de sexo explícito no bandejão do restaurante, embora este esteja presente. O melhor da obra é justamente solapar o olhar masculino das entrâncias do feminino. Nesta experiência de leitura, cabem a duas mulheres – com visões privilegiadas – explorar o desejo e o corpo femininos: Teresa e a própria autora. Além delas muitas outras mulheres e suas sexualidades escorrem pelo livro. Cada uma delas vive em mundo diversos, cujos dilemas e tensões esbarram na sexualidade e nas formas como a encaram.
Desta vez são as mulheres que percebem os homens e sem culpa os observam com os olhos que a Teresa setecentista via apenas no vulto do “melhor homem nas suas condições”. Teresa do século XXI reconhece que “homem de verdade sabe saborear o sexo, sabe fazer com calma. Os apressadinhos têm medo de que o pau fique mole”. Homem-tupperware, apressado, preguiçoso e medroso passam um a um pelo escrutínio de Teresa sem nenhum tipo de complacência.
Teresa encara o prazer de frente, sem se esquivar dele: “Orgasmo não é um salto inevitável depois que se você se aqueceu. Está mais para uma surpresa, embora você possa vê-lo se aproximando – como uma silhueta no fim de uma longa estrada. (...) A silhueta impossivelmente avançou e de repente lhe engoliu, você viaja nessa cápsula, raptada por um foguete que vai explodir na estratosfera, você pipocando na forma de estrelinhas fugazes, virando fumaça e fogo de artifício”.
No texto “As costureiras das mães”, presente no livro "Frantumaglia", de Elena Ferrante, ela afirma que os “livros são organismos complexos, as linhas que nos perturbam profundamente são o momento mais intenso de um terremoto interno que texto provocou em nós”. E cita Elsa Morante, uma escritora italiana que a fez enxergar como uma mãe aparecia na literatura: “velha e santa”, uma mulher cujo corpo “é um mistério sem importância”.
Teresa, de “As Delícias”, subverte essa ordem materna de corpo sem expressão. Teresa é mãe de um adolescente de 15 anos e filha de uma mulher de 65 anos em quem ainda vê suavidade, beleza e desejo. Chegam a ser cúmplices neste último.
O melhor do romance-ensaio-filosófico de Tércia Montenegro é que ela constrói uma personagem que avança sobre os temores que rondam a expressão das mulheres sobre si mesmas e se essa expressão for a sexual, muitas vezes até as palavras ficam escassas. O que não acontece com Teresa. Farta de ideias, a linguagem salta no livro com naturalidade, bom humor, talhada para tornar o sexo sensorial, feito com o todo o corpo: tato, paladar, olfato, visão.
É neste espaço da escrita-fala que invade o corpo feminino sob o olhar atento de uma mulher que a estreante Betania Moura decidiu trafegar. Sua experiência em trabalhar com mulheres vem de longa data dirigindo grupos de estudos sobre arquétipos femininos baseados nos mitos da literatura grega. É autora de A roda das deusas – Deusa arquétipo do feminino. No entanto, confessa, que quando organizou seus textos para publicação, a crônica “Aquela que não tem nome” havia ficado no meio do livro.
A crônica mudou de lugar na coletânea e passou a recepcionar os leitores que ficam sabendo que, durante uma roda de conversa sobre as reflexões em torno do feminino, “Aquela que não tem nome” se pôs na conversa. Por que, praticamente, todas as partes do corpo têm seus nomes ditos e “ela” esconde-se em “apelidos, nomeações incompreensíveis, cheias de escárnios”? Se a maioria das crônicas que compõem “Anjos, buracos, pedras e moinhos” surgiram durante a pandemia, esta especificamente já havia sido escrita em outros tempos pré-pandêmicos.
“Confesso que fiquei receosa com o impacto que esse texto pudesse causar”, confessa Betânia. Entre os receios estava o político. “Estamos vivendo um tempo retrógrado”, pontua a escritora de estreia da literatura com um livro de crônicas e o primeiro diálogo posto é com a “inominável”. O temor da linguagem se presentifica no texto: “Fogueiras, apedrejamento, calçadas, ruas, esquinas, becos povoados pelo medo. Somos nós, eu, você, menina, mulher, de outros tempos, do agora”.
Nas entrelinhas da crônica, uma história da palavra proibida. “É preciso escutar os sussurros dos ancestrais para acalentar o peito, aliviar a dor descabida com unguentos para a alma”, sugere a escritora no texto. Aos poucos, porém, a “Vulva” aparece: “Ave, axé, eia, saravá, eparreyoya, aloha”.
Ao longo da coletânea de crônicas que compõem a obra de Betania Moura, outras mulheres surgem como a Rosa, três filhos, copeira a vida inteira e uma aposentadora à espreita. O maior de sua vida era receber rosas. A memória da infância, a velhice à beira da vida. “Estou me apropriando dela – a velhice – sem negá-la”, afirma Betania, “mas também sem romantizar que a velhice é tão boa assim. Ela traz limites para o corpo”, afirma. Na mandala de textos, o leitor pode observar múltiplas experiências transformadas em linguagem seja a captada do tempo de agora, seja nas profundezas de uma memória que traz à tona flagrantes retratos da vida.
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