Quando Philip Roth (2018) perguntou ao escritor Milan Kundera como ele se sentia ao saber que muitas pessoas o odiavam no seu país natal, a Tchecoslováquia, o leitor percebe, embora não veja, que houve um silêncio entre a pergunta e a resposta. Kundera exilou-se em Paris desde 1975 ao deixar seu país e perder a cidadania, após uma série de críticas à ocupação comunista russa, em meados de 1960, interrompendo o período de redemocratização tcheca, que ficou conhecido como Primavera de Praga.
O escritor ganhou cidadania francesa, mas por quase 20 anos não pôde visitar a família, seus livros não tinham permissão para serem vendidos e lidos na Tchecoslováquia e ele se tornara persona-non-grata para os conterrâneos tchecos.
O encontro entre Roth e Kundera aconteceu entre o final dos anos de 1980 e início de 1990 em Londres e Connecticut. Roth estava viajando por vários países para conversar com autores sobre o trabalho da escrita e outros temas entre os quais a política que, de alguma forma, atravessava a vida de cada um dos interlocutores do autor estadunidense.
Com Primo Levi, Roth abordou os campos de concentração onde o escritor italiano foi preso durante a Segunda Guerra Mundial, e também sobre a decisão dele em seguiu trabalhando como químico enquanto escrevia livros essenciais como "É isto um homem?". Aharon Appelfeld falou com Roth sobre sua dramática fuga de um campo de concentração nazista quando era apenas uma criança de 8 anos. Kundera precisou responder sobre o ódio que despertava no seu país de nascimento.
A pausa imaginária que o leitor só presencia na imaginação segue-se à resposta de Kundera. Ele fala sobre o desconforto até o limite da dor envolvido na situação real de um sem-cidadania após o lançamento de “A Brincadeira”, no qual ridiculariza o regime comunista em vigor na Tchecoslováquia. O livro começa com um bilhete divertido trocado entre um jovem casal de namorados no início da universidade e desemboca no julgamento e prisão de Ludivick por 15 anos. Ao ficar livre, o personagem retorna a Moravia e aos ex-amigos e ao país em decadência.
Ludvick escreve uma carta com termos jocosos para a namorada Lucie, que está num acampamento escolar. Será o suficiente para ser expulso do partido e preso. O personagem retorna a Morávia de onde saíra 15 anos antes, desta vez para rever sua história, os ex-amigos e do próprio país. O livro de estreia de Milan Kundera foi também o responsável pela expulsão dele da Tchecoslováquia, a retirada da sua cidadania e o exílio em Paris, onde passou a viver até sua morte.
O romance gira em torno de um triângulo amoroso, que é também o mote para narrar a mudança profunda que acontece na Tchecolováquia após a ocupação comunista no país. Tomaz e Tereza fogem para Suíça, enquanto Sabine, amante de Tomaz, segue para Genebra e se envolve com um professor universitário. Durante todo o romance o peso do novo regime contrasta com a busca pela leveza da liberdade.
Um dos últimos romances publicados pelo escritor tcheco-francês ronda questões existencialistas e a morte. Ambientado em Paris, quatro amigos de longa data, Alain, Ramon, Charles e Caliban, mudam o rumo da trama quando um deles inventa uma doença mortal só para saber como reagem as pessoas em sua volta.
Por 20 anos Philip Roth visitou amigos escritores para falar sobre romances e a vida. Milan Kundera é um dos entrevistados e um dos temas da conversa é justamente as dificuldades entre o escritor e seus conterrâneos. Kundera perdeu a cidadania tcheca durante a ocupação comunista na Tchecoslováquia e exilou-se em Paris. Retomou o contato com o país com o fim do regime e recebeu o Prêmio Nacional de Literatura da República Tcheca, em 2007.
Quando a entrevista com Roth aconteceu, Kundera estava em vias de voltar a Praga para receber a cidadania de volta, o que aconteceu, de fato, em 1991. A Tchecoslováquia também deu ao escritor tcheco de nascimento um prêmio literário por sua obra em 2007, embora ele permanecesse na França, onde morreu neste dia 12 de julho.
A busca pela liberdade por meio da fuga de um regime político intolerante permeia praticamente toda a obra de Milan Kundera. O livro "A insustentável leveza do ser", que o tornou conhecido mundialmente e ainda mais odiado na sua terra Natal talvez seja a síntese do sentimento de expatriado que o seguiu no exílio. Enquanto o leitor mergulha na trama erótico-amorosa que une Tomaz, Tereza e Sabine, Kundera revela o abismo que separa as liberdades políticas europeias dos regimes fechados e pesados que rondam o leste do continente.
O tema retorna Em "A vida está em outro lugar". No romance, Jeromil cresce numa Tchecoslováquia ocupada pelos comunistas enquanto o pai desaparece em alguma prisão do país, e a mãe se desespera quando percebe que o menino que criava versos rimados se torna um rapaz completamente absolvido pelas palavras de ordem do regime.
Milan Kundera viu o regime comunista se expandir pelo leste europeu ao mesmo tempo em que o recriava na literatura causando profundo incômodo, não apenas no país tcheco, mas também entre os intelectuais identificados com o regime comunista. Quando a União Soviética se esfacelou e o muro de Berlim caiu no final do anos de 1980, a literatura do escritor tcheco-francês parece ter permanecido ainda mais atual, por colocar o humano no centro das discussões sobre os limites de ser livre. Os personagens de Kundera lutam em uníssono por todas as formas de liberdade.
Ser livre está filosoficamente fincado nos livros do escritor que transforma os romances de sua autoria numa reflexão constante sobre os conflitos internos da existência humana diante das ditaduras sejam elas política ou convenções sociais. Tomaz, personagem de "A insustentável leveza do ser" é um homem que não quer compromissos amorosos, porém casa-se e foge do país para ver-se livre de um regime político truculento.
Ao ganhar a liberdade, Ludvick, de "A brincadeira" quer experienciar cada segundo do novo mundo que encontra após 15 anos preso, mesmo que para isso tenha de revisitar o passado. Jeromil esquece-se dos versos da infância e reencontra a poesia já adulto como única forma de sentir-se longe das amarras de um estado totalitário. Além de uma obra extensa de ficção, Kundera escreveu ensaios reunidos em: "A arte da literatura", "O encontro", "Os testamentos traídos", entre outros.
Leituras reunirão reportagens, entrevistas e resenhas sobre o universo dos livros, autores e mercado editorial