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Sibylle Lacan, filha do psicanalista Jacques Lacan, escreve sobre como viveu à espera do pai
Reportagem Seriada

Sibylle Lacan, filha do psicanalista Jacques Lacan, escreve sobre como viveu à espera do pai

Publicado na França em 1994, Um Pai, da tradutora Sibylle Lacan revela sua relação tormentosa com o pai, Jacques Lacan, um dos mais importantes psicanalistas franceses. A obra foi publicada este mês de outubro pela editora Aller
Episódio 14

Sibylle Lacan, filha do psicanalista Jacques Lacan, escreve sobre como viveu à espera do pai

Publicado na França em 1994, Um Pai, da tradutora Sibylle Lacan revela sua relação tormentosa com o pai, Jacques Lacan, um dos mais importantes psicanalistas franceses. A obra foi publicada este mês de outubro pela editora Aller
Episódio 14
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“Quando nasci, meu pai já não estava. (..) Um encontro no campo entre marido e esposa, quando tudo já tinha terminado, está na origem do meu nascimento”. Antes, porém, dessas frases que dão início a “Um pai”, de Sibylle Lacan, a autora deixa um aviso aos leitores: “Este livro não é romance ou uma (auto)biografia romanceada. Ele não contém um pingo sequer de ficção”. A terceira filha do primeiro casamento de Jacques Lacan entrega seu propósito: “fazer surgir de minha memória tudo o que aconteceu de importante, de forte – trágico ou cômico –, entre mim e meu pai”.

Capa da edição francesa do livro "Um Pai"(Foto: ZVAB)
Foto: ZVAB Capa da edição francesa do livro "Um Pai"

Ao longo do livro, porém, os leitores dão conta do acerto de contas entre uma filha e um pai idealizado e ausente que lhe causa extremo sofrimento em muitas das ocasiões retratadas. Enquanto Lacan se torna um dos maiores psicanalistas depois de Freud, arrebanhando atrás de si, a elite francesa, críticas, dinheiro, fama e uma obra que é uma espécie de divisor de águas na psicanálise, Sibylle acompanhava o pai em visitas espaçadas, jantares em restaurantes chiques e o distanciamento dolorido de quem sabe que não tem lugar na dinâmica paterna.

As relações parentais formam verdadeiros pilares da literatura ocidental. Na Grécia, Orestes é um símbolo do tormento por ter matado a própria mãe, Cliteminestra e o padrastro Egisto, em vingança pela morte do pai, o rei Agamenom. Em Shakspeare, “Hamlet” sintetiza o desassossego do homem que não consegue cumprir a missão que o pai morto lhe incumbe: vingá-lo por ter sido assassinado pelo irmão, que desposara sua mulher e lhe usurpara o trono. Em vez de matar com as próprias mãos, Hamlet, um rapaz culto, dado à filosofia e ao teatro, urde um plano a partir da dramaturgia, que o enlouquece e que o faz perder tudo, inclusive, o senso.

Hermann Kafka e Julie, pais do escritor Franz Kafka(Foto: Wikipedia/Domínio Público )
Foto: Wikipedia/Domínio Público Hermann Kafka e Julie, pais do escritor Franz Kafka

Na contemporaneidade, “Carta ao Pai”, de Franz Kafka, deixou uma marca na literatura do século XX. O autor de “O processo” e “Matamorfose” escreveu uma carta de cem páginas manuscritas ao pai, narrando todo o desconforto com a relação paterna que, ao final das contas, havia lhe feito um homem “medroso”, “quieto” e “fraco”, segundo a própria análise que fazia de si. O desabafo final se deu quando Kafka, aos 36 anos, anuncia seu noivado, o que aparentemente causara desgosto ao pai. Na carta, publicada após a morte do autor, Kafka acusa o pai de ser “distante”, “um tirano” de quem nunca recebera qualquer afeto.

Mais recentemente, o norueguês Karl Ove Knausgard despejou uma obra de seis volumes que nascera do desejo de destrinchar sua relação com o pai e a partir do entrave difícil entre os dois, expor as vísceras do embate entre realidade e ficção e os dilemas da escrita em si e de si. A obra chamada “Minha luta” foi construída em quase 20 anos. E ao chegar no Brasil, com toda a questão decolonial que se pôs em debate também na literatura, Knausgard virou símbolo de um homem branco “reclamando de nada”.

Na foto: Karl Ove Knausgard, escritor (Foto: Foto: Divulgação)
Foto: Foto: Divulgação Na foto: Karl Ove Knausgard, escritor

No entanto, a obra do norueguês revisita o eterno retorno de busca ao pai que parece inalcançável, tecendo lacunas na psique, que parecem só conseguir ser preenchidas com palavras. Num trecho do primeiro livro “Minha Vida – A morte do pai”, ele atesta: “. Eu não queria escrever sobre o relacionamento de um pai e de um filho, eu queria escrever sobre o meu pai e eu. Eu não queria escrever sobre uma casa onde um homem viveu com sua mãe idosa, como se fosse uma variação de "Fantasmas", de Ibsen, mas sobre aquela casa em particular e a realidade concreta que existiu ali”.

A francesa Annie Ernaux, prêmio Nobel de Literatura em 2022, tornou-se expoente de uma escrita que revira fatos e sentimentos adormecidos para traduzir a si mesma, uma sociedade e um tempo histórico específico de uma mulher de origem periférica vivendo em Paris. Num de seus livros, “O Local”, Ernaux expõe a vergonha que passou a sentir do pai, um homem de família pobre, que sobrevivia à custa de um restaurante decadente e um emprego como operário numa companhia de petróleo, e que sequer dominava o francês culto.

Descobriu tudo isso quando passou a frequentar outras rodas na escola e na sociedade francesa. Distanciou-se do pai. A distância e o silêncio que desarmaram a ponte que havia entre a filha e o pai foram não motivadas apenas pelas questões sociais e econômicas, mas, principalmente, como estas moldaram o mundo que, ao mesmo tempo em que expulsava Ernaux, aprisionava o pai.

Annie Ernaux lançou "O lugar" em 1983(Foto: Catherine Hélie/Divulgação)
Foto: Catherine Hélie/Divulgação Annie Ernaux lançou "O lugar" em 1983

Em Sibylle, escrever sobre o pai é dar conta de si mesma num emaranhado familiar que ela própria demorou para entender na infância. Era filha de Malou Blondin e Jacques Lacan. Quando ela nasceu, os pais já tinham outros dois filhos, Caroline e Thibaut. Sibylle chegou ao mundo sem pai presente, pois Lacan vivia com Sylvia Bataille, (ex-esposa de Georges Bataille), com quem tivera uma filha, Judith, mais nova um ano depois de Sibylle.

Sibylle só conheceu o pai após o fim da Segunda Guerra, o que era visto como “normal” para a menina: “Nós sabíamos que tínhamos um pai, mas, aparentemente, os pais não eram presentes. A minha mãe era tudo para nós: o amor, a segurança e a autoridade”. O “anormal”, ela soube durante umas férias de verão, em Noirmoutier: “Alguns amiguinhos nos revelaram que nossos pais eram divorciados e que, por causa disso, minha mãe iria para o inferno”. 

 

 

Pais, filhos e os desencontros 

O inferno, no entanto, chegara antes. Sibylle mostra como, aos poucos, seu lugar na família foi se tornando mais claro e mais tormentoso. Não se sentia bonita como os irmãos que dominavam nesse quesito. Por ser a mais nova, era trolada por eles. Mas, a ausência do pai é o motivo da narrativa que sai aos pedaços, num esforço de memória, construída pelo silêncio. “Nossa conversa era entrecortada de silêncio calmos... Ele jamais me contava da sua vida privada e eu nunca lhe fazia perguntas sobre o tema, isso sequer me passava pela cabeça”.

Conhecer a irmã Judith é descrito como algo que a “tirou do prumo”. No casamento da irmã mais velha, Caroline, ela encontrou pela primeira vez a filha de Lacan com Sylvia. “Ela era toda amável e perfeita, e eu, toda estabanada e torta. Ela era a personificação da sociabilidade, da naturalidade; já eu, eu era a camponesa do Danúbio”. A irmã estudava filosofia. Sibylle, Línguas. Judith tinha pretendentes aos pés. Quando estavam todos juntos, era sem dúvida “a rainha”. Mas o pior ainda estava por vir. No consultório do “doutor Lacan, no número 5 da rue de Lille”, havia uma única foto de alguém da família da famoso psicanalista e este era o de Judith que assinava Miller.

A autora de “Um pai” tornou-se tradutora do espanhol, do inglês e do russo. Por anos, arrastou uma fadiga incessante, um desencanto com o mundo acompanhado de sonolência, uma vontade de não fazer nada. Após insistir com o pai que se sentia doente, Lacan a despachou para duas psicanalistas amigas, uma delas, sua amante. Numa das vezes em que ficou de lhe atender em casa, Sibylle o viu sair de um prostíbulo chique nos arredores da rue de Lille, onde ela morava. Ao perguntar ao pai o que ela tinha ouviu que “no século XIX teriam dito que você era neurastênica”.

Placa em homenagem a Lacan, na rue de Lille, onde psicanalista tinha um consultório(Foto: Wikipedia/ De Monceau from San Antonio)
Foto: Wikipedia/ De Monceau from San Antonio Placa em homenagem a Lacan, na rue de Lille, onde psicanalista tinha um consultório

“Odiei meu pai durante muito anos. Como poderia ser de outra forma? (...) Esse ressentimento, essa fúria, só apareceram relativamente tarde na minha análise. Demorei até para me revoltar”, continua a autora como que desnudando os sentimentos que não pareceriam ser vistos pelo psicanalista francês mais importante do século XX. Para Sibylle , ele “era um pai intermitente, a conta-gotas”. A autora encontrou-se com o pai dois anos antes de sua morte. Estava em Viena e não conseguiu um voo para Paris quando soube que ele estava muito mal. Anos depois, fora visitar o túmulo de Lacan em Guitrancourt, onde ele está enterrado para lhe dizer: “Querido papai, eu te amo. Você é meu pai, você sabe”. 

 

 

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