Lincoln Gakiya é chamado de "Frango Japonês" em bilhetes com ordem para matá-lo, trocados por detentos dentro das cadeias paulistas. Por várias vezes, drones sobrevoaram o condomínio em que mora, operados por criminosos com a intenção de descobrir pontos vulneráveis em sua rotina. Não é só uma ameaça, existe de fato o "salve" (ordem) da cúpula do PCC para que o atentado aconteça. Por isso, Gakiya passa 24 horas do dia escoltado por policiais, altera itinerários, evita restaurantes e até trabalha em uma sala blindada. Há quase 15 anos ele está jurado de morte.
Promotor do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) em Presidente Prudente (SP), na região onde estão as penitenciárias de segurança máxima do interior paulista, Gakiya dá motivos à organização criminosa para ser odiado por ela. No dia 13 de fevereiro do ano passado, 22 nomes do primeiro e segundo escalões da cúpula do PCC foram removidos do sistema prisional de São Paulo para penitenciárias federais.
Na verdade, já convivo com escolta policial militar desde 2006, quando iniciei essas investigações. Ali já fui jurado de morte. Na época houve várias ameaças. Ando escoltado de 2006 pra cá
Além de barrar a voz de comando do grupo, que acontece mesmo estando trancafiados, a ideia era evitar um resgate iminente do chefe da facção, Marco Willians Herbas Camacho, o "Marcola". O plano fora descoberto após a delação de um detento, poucos meses antes. A fuga foi minada a tempo. A transferência virou até motivo de atrito com o então governador de São Paulo, Márcio França, que foi contra a remoção.
Nesta entrevista, Gakiya descreve como leva sua vida de sentenciado pelo PCC e as várias ousadias da maior organização criminosa da América do Sul, sempre em escala grandiosa. A "máfia PCC", como chama, movimenta perto de meio bilhão de reais por ano somente nos negócios que opera em São Paulo. E já tem escritórios do crime em vários países para facilitar as transações ilícitas de drogas e armas.
"Nós temos que aumentar essas penas, teremos que ter presídios específicos para integrantes de organização criminosa", defende. Segundo ele, fazer parte de facção dá "prestígio", "status" e "segurança" aos membros tanto nas ruas quanto nas cadeias. E aponta que a lei penal precisa ser mais revista, com penas maiores para traficantes. "O tráfico hoje é vantajoso".
O POVO - Queria começar essa entrevista contando que cheguei a procurá-lo cerca de seis meses atrás, no fim de 2019. O senhor me pediu naquele momento para não dar entrevista porque estaria evitando. Por conta de ameaças que estava sofrendo na época. Era final de 2019. O senhor estava...
Lincoln Gakiya - 2018?
O POVO - 2019 já. O senhor estava evitando entrevistas por conta de ameaças. O senhor dizia que era melhor não falar naquele momento porque havia sido descoberto um plano, um recado do detento Cigano, em Presidente Venceslau, com ordem para executá-lo. O senhor me explicou naquele momento que não falaria. O que mudou daquela época para agora?
Gakiya - Na verdade, creio que quando você me ligou eu devia estar em momento de apuração daquele fato. Possivelmente foi isso. As ameaças continuam. Continuo com segurança redobrada aqui. Às vezes há um pedido da própria Procuradoria-Geral para que eu não dê entrevista, mas tenho até me manifestado pelas vias de imprensa. Mas as ameaças continuam, não cessaram em momento nenhum. Desde a remoção da liderança do PCC para o sistema penitenciário federal, em dezembro de 2018, eu comecei a receber ameaças e essas ameaças não pararam até hoje.
O POVO - O senhor já tem isso como parte da sua rotina? Como é viver com essa sombra do risco?
Gakiya - Na verdade, já convivo com escolta policial militar desde 2006, quando iniciei essas investigações. Ali já fui jurado de morte. Na época houve várias ameaças. Ando escoltado de 2006 pra cá. O que aconteceu com o pedido que eu fiz de remoção do Marcola (Marco Willians Herbas Camacho, nº 1 do PCC) e demais lideranças para o sistema penitenciário federal é que essas ameaças aumentaram, não só em número, mas realmente na questão de perigo mesmo. Porque aí não era mais só um ou outro preso, era toda a cúpula da facção que havia determinado a minha morte.
Tive sobrevoo de drone no meu condomínio praticamente todo dia, pairando em cima da minha residência. Sabemos que esses grandes roubos de empresas de valores são precedidos de sobrevoos de drones para reconhecimento de local
De lá pra cá o que aconteceu foi aumentar a minha segurança. Ando com segurança extremamente reforçada e 24 horas por dia, inclusive no meu período de descanso. Quando eu estou em casa, estou acompanhado de escolta do lado de fora da minha residência. Isso realmente causa um transtorno familiar muito grande porque, não só eu, mas minha família, quando tem que se deslocar, meus filhos, acabam sendo acompanhados de escolta, e a gente acaba tendo um pouco de vida social privada em razão dessa situação aí. Até para não expor, não só a mim, mas a própria família, a um perigo, um risco desnecessário.
O POVO - Tem coisas concretas disso? O que foi realmente ameaça que fez o senhor se cercar de segurança?
Gakiya - Em nenhum desses casos, desde 2018 pra cá, não considero como ameaça. Ameaça é aquela em que você como jornalista eventualmente possa ter sofrido. O sujeito pega o telefone ou manda uma carta dizendo que promete te fazer um mal futuro e injusto. No meu caso foram planos localizados.
O primeiro deles na saída de uma visita da Penitenciária 2 em (Presidente) Venceslau. Uma visita inclusive de um preso que era companheiro do Marcola. E ali já havia toda a descrição em carta criptografada. Não era nem criptografada, na verdade ela estava codificada e a gente conseguiu a decodificação dessa carta, em que ela passava ordens para a rua caso Marcola fosse realmente, ele e a liderança, removidos de Venceslau 2. Então eu deveria ser morto e já indicavam recursos etc. Já dizia, por exemplo, que eu andava de carro blindado, que eu tinha uma escolta do Comando de Policiamento de Choque de São Paulo. Inclusive eu tive que duplicar essa escolta e os cuidados. Essa foi uma das primeiras.
Depois apreendemos cartas. Fizemos busca em casas aqui na região de Presidente Prudente. Foram apreendidos drones. Tive sobrevoo de drone no meu condomínio praticamente todo dia, pairando em cima da minha residência. Sabemos que esses grandes roubos de empresas de valores são precedidos de sobrevoos de drones para reconhecimento de local, verificar questão da segurança, policiamento. Na verdade, são várias situações.
Outras cartas que foram apreendidas depois dessas de Presidente Venceslau, nós apreendemos outra em Presidente Bernardes falando de drones com explosivos. Esses presos foram inclusive mandados também para o sistema penitenciário federal. Foi feita uma apuração inteira. Posteriormente em outro presídio aqui da região. Quer dizer, o plano saiu de Venceslau, saiu de Presidente Bernardes, do presídio de Junqueirópolis, na região de Presidente Prudente.
Também foi pega lá uma carta cobrando o meu assassinato e também do coordenador dos presídios. Eles não estavam entendendo por que não teria sido feita ainda. Eles entendiam que eu andava com escolta fortemente armada, mas era para fazer, que indivíduos estariam vindo do Paraguai e da Bolívia, que o dinheiro já estaria na conta.
Enfim, era situação desse tipo. Na verdade, não considero isso uma ameaça. Isso já era um plano de execução em andamento e, graças a Deus, o serviço nosso de inteligência funciona bem, tem funcionado. Acho também que a Inteligência divina tem funcionado, estamos sempre um passo à frente desse pessoal.
O POVO - Vou puxar mais esse momento de questão particular, para ajudar a perfilar o senhor. Como é viver assim? O senhor até já falou em entrevista que às vezes chora sozinho diante dessa situação, acaba estendendo o risco para os familiares. Como é isso para o senhor, o Lincoln pessoalmente?
Gakiya - Veja, é uma situação muito difícil porque já estou no Ministério Público há praticamente 30 anos. Os últimos 15 atuando especificamente no combate ao crime organizado e a essa facção. Então estou bastante acostumado. Não estava acostumado com esse envolvimento que chega até a família. Hoje, se eu sair para caminhar no meu condomínio com meus cachorros, é um condomínio fechado, a viatura da Polícia vai atrás. Eu, minha esposa e a viatura nos acompanha. Se eu quiser num restaurante, idem. Vão entrar policiais armados de fuzis, então a gente até evita porque a própria população acaba se afastando ou criticando.
Hoje praticamente a gente não sai de casa justamente por conta dessas restrições. Além de aumentar a exposição e o risco, há também um desconforto por parte das pessoas que estão em torno da gente
Infelizmente uma pequena parte da população num primeiro momento aplaude a atitude, promotor que sozinho assinou, investigou e mandou esses presos para o sistema penitenciário federal, o que nunca tinha acontecido na história do estado de São Paulo, o que acho que foi a posição mais acertada a ser tomada, mas isso praticamente acabou com minha vida pessoal e familiar.
Hoje praticamente a gente não sai de casa justamente por conta dessas restrições. Além de aumentar a exposição e o risco, há também um desconforto por parte das pessoas que estão em torno da gente. As pessoas ficam amedrontadas, começam a reclamar. Já várias vezes que minha esposa levantou do restaurante e fomos embora, acaba que a gente praticamente não sai de casa mais. Só de casa para o trabalho, do trabalho pra casa, levar as crianças na escola, buscar etc.
O POVO - (Após diversas falhas de vídeo e áudio, o repórter alerta ao promotor) A sua conexão tá muito baixa. O seu vídeo tá travando. Tô lhe ouvindo, mas seu vídeo tá travando. Praticamente só tive sua primeira fala com o vídeo.
Gakiya - Acho que é a Internet. Não tô em casa, tô no Ministério Público. Pra você ter uma ideia, aqui a minha sala, as janelas e as portas são blindadas. Isso atrapalha um pouco o sinal da Internet. Mas eu vou tentar prosseguir.
O POVO - Imagino. É muito louco isso.
Gakiya - Tá cortando um pouco, viu?
O POVO - O ponto mais recente dessa tensão é que essa ordem veio quando o senhor conseguiu a transferência dos líderes da facção para penitenciárias federais. Por que se demorou tanto para conseguir isso? O senhor já brigava com esse pedido há algum tempo. Alguns anos o senhor tentava essa transferência. Por que demorou tanto?
Gakiya - O estado de São Paulo nunca quis mandar essa liderança para o sistema penitenciário federal. O problema inicialmente era político. Tivemos aqui praticamente 15, 20 anos de governo estadual do PSDB e o Governo Federal na época, quando a gente pretendeu mandar esses presos pra lá, era governo do PT. Agora, já no final, governo do PMDB, do (Michel) Temer. Mas o governo aqui de São Paulo nunca concordou.
A bem da verdade, quem pede a remoção normalmente é o próprio Estado, não é o Ministério Público. O próprio estado é que deveria pedir. O que acontece? Quando você tem preso de altíssima periculosidade no seu Estado e você precisa isolá-lo fora do Estado, demonstrando que todos os isolamentos que nós fizemos no estado de São Paulo…Marcola, por exemplo, cumpriu pena quatro vezes no Ceip (Centro de Internação Provisória), que é o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Eu mesmo mandei ele quatro vezes para o RDD. Então eu precisava mandar para fora do Estado para haver uma quebra de cadeia de comando e um isolamento territorial mesmo.
Mandá-los pra longe do Estado para que eles ficassem longe dos seus comandados. Mas o estado de São Paulo nunca concordou em fazê-lo. Em certo momento houve até uma questão, na minha opinião, poderia haver uma espécie de receio de que ocorresse como em 2006, que tivéssemos ataques e isso poderia atrapalhar a carreira política dessas pessoas que estavam no poder. Como houve essa omissão, no final de 2018, antes das eleições de 2018, nós descobrimos um plano de resgate do Marcola e demais lideranças da Penitenciária 2 (de Presidente Venceslau). O plano era extremamente grave... (A conexão volta a falhar neste momento)
O PCC hoje é mais que uma facção, uma organização criminosa em estágio pré-mafioso. Tenho dito que o PCC já tá quase atingindo o status de uma organização criminosa mafiosa
O POVO - O senhor falou que havia em 2018 uma situação política…
Gakiya - Antes das eleições de 2018, tínhamos a seguinte situação. O então governador do Estado, Geraldo Alckmin, saiu, se desincompatibilizou para disputar a presidência da República. Estávamos com o vice-governador, que era o Márcio França, que era contra também a remoção. O que aconteceu? Em outubro, final de setembro de 2018, portanto antes das eleições, descobrimos aqui um plano de resgate do Marcola e das demais lideranças.
Foi feito um relatório de investigação, foi instaurado inquérito e chegamos à conclusão, junto com o secretário da Segurança e o secretário da Administração Penitenciária da época, mais os comandantes da Polícia Militar, de que o melhor a fazer seria pedir a remoção dessa liderança para fora do Estado. Porque o risco de resgate seria iminente. Nós tínhamos aqui mais de 200 policiais da Rota, da Tropa de Choque… (Nova falha na conexão)
O POVO - O senhor falou que havia 200 policiais da Rota...
Gakiya - ... aqui na região de Presidente Prudente, Presidente Venceslau, no entorno do presídio (Penitenciária 2). Naquela ocasião, Cláudio, ficou acertado que haveria um pedido de remoção desses presos - eram 22 presos - para o sistema penitenciário federal. Esse pedido seria feito pelo próprio secretário da Segurança Pública da época e pelo secretário da Administração Penitenciária. Portanto, pelo próprio Estado de São Paulo. E eles me pediram para aguardar até que se passasse o primeiro turno das eleições. Porque poderia prejudicar o então candidato governador... enfim.
O POVO - Houve esse pedido diretamente?
Gakyia - Não chegou a ser feito o pedido. Era pra ser feito. Passou o primeiro turno das eleições, o Estado não fez o pedido. Passou o segundo turno das eleições, o Estado não fez o pedido. Então eu avisei aos dois secretários: "olha, se o Estado não fizer, o Ministério Público vai fazer o pedido". E eu fiz realmente. Só que eu acabei fazendo o pedido sozinho. A investigação já era minha aqui de Presidente Prudente. O Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, do MPSP) que descobriu esse plano e eu fiz o pedido de remoção. Assinei sozinho e tô com o ônus sozinho desse pedido.
O POVO - Personalizou toda a cobrança em cima da facção?
Gakiya - É. E para piorar o próprio governador Márcio França, que acabou perdendo as eleições para o Doria, ele se manifestou publicamente contra a remoção. Dizendo que não seria caso de remover, que o estado de São Paulo poderia segurar esses presos aqui, então os presos perceberam isso também. O próprio Estado era contra e só o promotor, numa decisão unilateral foi a favor. Enfim, a remoção ocorreu, mas o ônus acabou marcando minha vida, provavelmente para sempre.
O POVO - Vou pontuar um trecho que o senhor falou. Claramente então o senhor diz que mexer com o crime organizado tira voto? Mexer com o crime, para o político, é também uma ameaça de derrota nas urnas?
Gakiya - Veja, não foi bem o que eu quis dizer. Acho até o contrário. O próprio presidente Bolsonaro se elegeu com um discurso de endurecimento no combate ao crime organizado, a caça à corrupção. O que eu queria pontuar pra você é que o governo ficou com receio de ter uma retaliação em função dessa remoção. Então ele achou melhor empurrar esse problema para o próximo governo. E foi exatamente isso que aconteceu. Não é que tiraria voto. Claro, se houvesse os ataques que eles achavam e eu garantia que não teria - não só eu como minha equipe -, todo o setor de Inteligência da PM, nós tínhamos tudo mapeado.
Concomitante às 22 remoções, transferimos quase uma centena de presos dentro do estado de São Paulo aqui para Presidente Venceslau. Todos os presos que tinham função no PCC, que estavam fora aqui da penitenciária 2 de Presidente Venceslau, nós localizamos em outras cadeias do estado e trouxemos pra cá. Justamente para evitar qualquer tipo de retaliação que esses presos pudessem, por exemplo, determinar.
O PCC tem uma atuação transnacional, praticamente no mundo inteiro. Atua no ramo de negócios ilícitos. Usa corrupção de agentes públicos, usa de intimidação, usa de violência. Todos os requisitos para ser considerada uma máfia
Um quebra-quebra nos presídios ou mesmo um ataque nas ruas. E, paralelo a isso, também a Polícia Militar colocou praticamente todo o efetivo. Temos aqui 90 mil policiais no estado de São Paulo, colocou todo o efetivo nas ruas. Não tacaram pedra em nenhuma viatura da Polícia Militar, para você ter uma ideia, ou em qualquer policial.
Mas houve realmente, na minha opinião, um receio do governo Márcio França na época. Isso ficou bem claro porque no primeiro momento eles toparam fazer a remoção e depois, quando perdeu a eleição falou "ah, deixa o próximo governador resolver isso aí. Não vou mexer com isso, não". Então eu falei "se não vão mexer, eu mesmo vou mexer". Foi exatamente isso que aconteceu.
O POVO - Entendi. Quero puxar para um tema nessa mesma linha, que é a dimensão do PCC. Vou usar um termo, não sei se tá correto, mas é muito próximo disso. O PCC domina o sistema penitenciário, domina setores da sociedade paulista, no País todo, está fora do Brasil, está no continente, está em outros continentes. Qual é o tamanho do PCC hoje? Está em quantos países e qual é a dimensão dessa facção? Se ela ainda é uma facção ou já é uma coisa além de uma facção?
Gakiya - O PCC hoje é mais que uma facção. Ele é uma "orcrim" (abreviatura usada em peças processuais), uma organização criminosa em estágio pré-mafioso. Tenho dito que o PCC já tá quase atingindo o status de uma organização criminosa mafiosa. Ele ainda tem alguma deficiência no quesito lavagem de dinheiro, isso em termos de lavagem de dinheiro da organização, não dos sócios, da liderança. E quando ele atingir, está próximo disso acontecer, provavelmente já esteja acontecendo fora do Brasil, o PCC vai mudar de patamar e poderá ser considerado uma organização criminosa de caráter mafioso.
Por que isso? Na verdade, ela é organizada de maneira empresarial. Tem uma atuação transnacional, praticamente no mundo inteiro. Atua no ramo de negócios ilícitos. Ela usa corrupção de agentes públicos, usa de intimidação, usa de violência. Todos os requisitos para ser considerada uma máfia, o PCC tem, só falta o da lavagem de capitais.
Não tenho a intenção de dizer que vamos acabar com o PCC, derrubar o PCC. O que estamos tentando fazer, e acho que na medida do possível temos conseguido nesses anos todos, é enfraquecer o PCC e acabar com essa geração de líderes
O tráfico internacional que o PCC tem hoje como praticamente seu carro-forte, então isso está a um passo de se concretizar. Esse dinheiro não costuma vir para o Brasil, ele vai para outros países vizinhos como Paraguai e Bolívia, por exemplo. Uma parte é para a compra de insumos, que é a própria cocaína, principalmente, e a outra parte pode ser lavada nesses países, aí num segundo momento retornar ao Brasil já de maneira lícita. Mas isso ainda está em fase de investigação.
O PCC hoje tem em torno de 30 mil integrantes aqui no Brasil. Obviamente a maior parte desses integrantes está no estado de São Paulo. Mas a gente pode dizer que dominam em torno de 85% do sistema prisional paulista. Eles estão em 85% das cadeias do estado de São Paulo. E a oposição, as facções rivais, estão em 25%, que são cadeias consideradas de seguro. E estão espalhados no Brasil todo, em todos os estados da federação. Na maioria dos países da América do Sul, com certeza.
Nos Estados Unidos a gente já tem notícia de integrantes. Na Europa, nos principais países: Itália, Portugal, França, Inglaterra, Holanda... Enfim, todos os países, principalmente aqueles portuários o PCC já está estabelecido. Claro que ele ainda não tem um know how para distribuir essa droga que ele exporta para a Europa. Então ele faz isso consorciado com outras organizações mafiosas internacionais. Mas nós tivemos a prisão do Fuminho (Gilberto Aparecido dos Santos) alguns meses atrás, foi amplamente noticiada, na África. Moçambique, na verdade, ele estava. E já estava estabelecendo ali uma rota muito importante de comércio para a Europa via África.
O POVO - Esses personagens que ficam nesses países todos que o senhor citou atuam como escritórios? Eles são recebedores da droga enviada, da arma enviada, e eles são repassadores para as máfias locais? Como funciona isso?
Gakiya - Eles são como se fosse um apoio logístico para o PCC nesses países. Normalmente são integrantes que às vezes são egressos do sistema (penitenciário), que já estavam nesses países. Alguns estão presos nesses países, mas acabam servindo de ponto de contato com esses outros compatriotas. Realmente é uma internacionalização do PCC para países fora do eixo da América do Sul. Aqui ele já está bem sedimentado.
O POVO - Qual é a virtude e qual é a fragilidade do PC que vocês podem chegar ao calcanhar de aquiles deles e derrubar essa grande fortaleza criminosa?
Gakiya - Não tenho a intenção de dizer que vamos acabar com o PCC, derrubar o PCC. O que estamos tentando fazer, e acho que na medida do possível temos conseguido nesses anos todos, é enfraquecer o PCC e acabar com essa geração de líderes. E se a gente conseguir isso, obviamente eles vão recuar e ter que construir novos caminhos, a gente sempre um passo à frente.
Lembrando que o Marcola tem liderado o PCC, ele e a cúpula que está aí, desde 2001 sem serem incomodados. Todo esse tempo preso e o PCC só crescendo. Então, o maior passo que nós demos realmente nos últimos anos foi a remoção da liderança. Porque não removemos só a Sintonia Final, que eram sete líderes junto com o Marcola. Removemos 22. Quer dizer, o primeiro e o segundo escalões e uma parte do terceiro escalão. E eles foram pegos de surpresa nessa remoção.
Porque, na verdade, como o presídio estava cercado, eles já imaginavam que poderiam ser removidos, então eles foram passando funções. E nessa passagem de funções nós detectamos também quais seriam aquelas pessoas designadas para assumir essas novas funções. E removemos junto. Então, houve, pelo menos momentaneamente, mas talvez de maneira bastante contundente, uma quebra de cadeia de comando. Essa liderança hoje está isolada já há mais de um ano.
Em fevereiro fez um ano, já foi prorrogada a estadia deles (nas penitenciárias federais). Não há uma previsão de retorno para o estado de São Paulo. Paralelo a isso conseguimos isolar aqui dentro de São Paulo também alguns líderes que estavam ainda no sistema. Então deu uma quebrada. E o próximo passo é localizar as lideranças que estão em liberdade e também prendê-las, isolá-las no sistema penitenciário federal.
Há uma possibilidade muito grande de disputa interna de liderança, tanto nas ruas como no sistema prisional, e isso historicamente sempre enfraquece as máfias e as organizações criminosas
Essa é a nossa intenção. E assim que essa liderança, que já está aí praticamente há mais de dez anos no poder, ininterrupto, sem ser perturbada, aqueles criminosos mais jovens também querem ascender ao poder. Então há uma possibilidade muito grande de disputa interna de liderança, tanto nas ruas como no sistema prisional, e isso historicamente sempre enfraquece as máfias e as organizações criminosas. A gente acaba também provocando uma cisão interna que ajuda as forças de segurança nesse combate.
O POVO - O senhor tem o mapa dos sete da cúpula da facção, mas chegou a 22 (no pedido de transferência). São o primeiro e segundo graus da cúpula, as lideranças sendo removidas para outros territórios, outro nível de comando, uma dificuldade maior. Qual foi o fio da investigação para derrubar essa teia principal?
Gakiya - Essa foi uma investigação bastante complexa. Ela na verdade nunca parou. Investigamos desde 2006, ininterruptamente. Talvez o diferencial do nosso grupo em São Paulo seja esse, não paramos nenhum dia de investigar. No caso aí, tivemos cartas apreendidas, tivemos presos de informantes, tivemos interceptação. Uma série de informações, provas, que nos levaram a concluir, que inseriu os imediatos depois da Sintonia Final, quem ficaria nessas funções. E principalmente relatórios de inteligência do próprio setor penitenciário. Quem tá lá dentro é que sabe, que percebe a movimentação.
O que fizemos foi preparar uma remoção que surpreendeu a própria cúpula do PCC. E eles só foram ter conhecimento dos presos que seriam removidos quando estavam no aeroporto. Porque eles foram transferidos separados. Quando desceu o avião da FAB e eles perceberam quem eram os presos que estavam ao seu lado, alguns até disseram "acabou com a facção, acabou com a família, quebrou as pernas da família".
Porque realmente houve um baque. Aí você tem que passar as ordens do sistema penitenciário federal para São Paulo, você acaba tendo que usar paredes. As conversas lá são gravadas, tanto as conversas de advogados quanto de familiar. Não tem visita íntima. Então é tudo mais difícil, estão praticamente isolados realmente. Tanto que o Marcola, já saiu até publicado, já tentou greve de fome, agora diz que está com depressão. Enfim, realmente a situação pra eles é bem complicada e a gente vai continuar trabalhando, investigando e talvez agora atacando lideranças de rua.
O POVO - Então tem algo a caminho aí.
Gakiya - A questão da lavagem também está bem encaminhada. Se for me perguntar da questão do dinheiro, já vou te dizendo que nós não vamos parar por aí também. Vamos atacar porque essa fonte financeira está na rua e fora do Brasil. A droga é enviada para a Europa, normalmente em contêineres, através dos portos, principalmente aqui pelo porto de Santos e mais alguns portos do Nordeste também. E lá essa droga é paga em dólar.
Já descobrimos que é paga via doleiro, dólar-cabo (negociação no mercado paralelo para depósito em instituição no exterior), como era a questão da Lava Jato. O sujeito recebe um código internacional de transação bancária e esse código pode ser, digamos, descontado no Paraguai, na Bolívia, na Colômbia, no Peru, no Brasil, na Suécia. A gente vai atrás desses doleiros e vamos atrás dessas ligações.
... o crime organizado, o crime em geral, procura oportunidade de negócio. Onde ele acha que está vantajoso ele vai aplicar. O tráfico hoje é vantajoso. Porque ele tem uma pena muito pequena, se for comparado com roubo a banco
O POVO - Eles evitam o sistema financeiro, mas recorrem a artifícios de movimentação financeira...
Gakiya - É, evitam o sistema financeiro formal, essa foi uma dificuldade que nós tivemos. Eles não usam contas bancárias. Quando tem conta bancária, é administração de presídio local, é coisa pouca, R$ 40 mil, R$ 50 mil. Porque eles já sabem que isso a gente facilmente, através do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), identificamos e bloqueamos. Então eles não utilizam o sistema financeiro formal.
Eles estão utilizando doleiros e transações ilegais para fazer esse dinheiro transitar por vários países, sem que vire espécie. Porque hoje um quilo de cocaína na Europa é em torno de 35 mil euros. Então, se eu mandar uma tonelada por mês, imagine o volume de dinheiro que você teria que trazer para o Brasil, trazendo em espécie? Como é que você vai transportar isso? De avião? É difícil. A possibilidade também de perder o dinheiro, de ser apreendido, é grande. Então eles estão utilizando esse tipo de situação e provavelmente estão lavando esse dinheiro na América do Sul.
O POVO - Estou me lembrando aqui do episódio do furto ao Banco Central, aqui no Ceará, a lavagem desse dinheiro foi feita com um produto que valia dez, eles pagavam cinco ou dez vezes mais. Isso no caso de uma facção que tem um domínio maior, ela consegue até muito mais barato para essa lavagem. O senhor falou de doleiros, de personagens que também são identificáveis, mas que também estão numa rede criminosa muito consolidada, sedimentada.
Gakiya - Exatamente. Por isso que a gente entende que o PCC está prestes a se tornar uma organização mafiosa. Porque esse contato, essas transações já internacionais elas demandam um certo conhecimento desse tipo de expertise, de transação, de mercado. E possivelmente alguém vai dar o caminho das índias para poder eventualmente botar uma empresa etc, para poder lavar esse dinheiro, depois trazer esse dinheiro já lavado para o Brasil.
O POVO - A pergunta bem óbvia: qual é a movimentação financeira do PCC? Qual o tamanho disso?
Gakiya - A gente tem que falar com base em documentos que a gente apreende. E há algum tempo cada vez mais torna-se difícil esse tipo de apreensão. Principalmente agora porque o dinheiro não tá praticamente transitando mais no Brasil. É mais o tráfico interno dentro do estado de São Paulo. É calculável em torno de 100 milhões de dólares anuais.
Era a última estimativa que nós tínhamos. Mas com esse tráfico internacional esse valor pode ter duplicado ou triplicado. Nós não temos ainda estimativa. Mas pelo menos 100 milhões de dólares anuais, dá em torno de R$ 400 milhões, R$ 500 milhões por ano, é o que girava em torno do faturamento do PCC.
O POVO - Qualquer dinheiro de filiais da facção, no Ceará, na Paraíba ou Rio Grande do Sul, também migra para São Paulo, para financiar a estrutura de São Paulo?
Gakiya - Não. Esse valor que falei é o valor do estado de São Paulo. O PCC montou hoje, não chega a ser uma franquia, mas os Estados têm que se autogerir. Na verdade, o estado de São Paulo acaba mandando dinheiro, por exemplo, para o Ceará, para outros Estados, para compra de armamento, compra de droga, para ajudar nisso ou naquilo.
Mas o que eles fizeram? Eles treinaram esse pessoal para eles poderem já comprar pasta base, fazer o que eles chamam de virar a droga. Fazer o preparo dessa cocaína para distribuição interna, dentro de cada Estado. É o que eles chamam aqui em São Paulo de "padaria". Eles compram nesses locais. São laboratórios para poder trabalhar essa droga e colocar os demais insumos para transformar isso em cocaína.
Eles não usam contas bancárias. Quando tem conta bancária, é administração de presídio local, é coisa pouca, R$ 40 mil, R$ 50 mil. Porque eles já sabem que isso a gente facilmente, através do Coaf
E para gerar o lucro interno. Para que a facção, por exemplo, aí no Ceará, possa se autogerir. Mas o dinheiro daí não vem aqui para São Paulo e nem de nenhum estado. O dinheiro dessa droga que é exportada... agora sim, se o PCC usar o porto de Suape (Pernambuco) ou um outro porto aí do Nordeste para fazer o envio dessa droga...
O POVO - Portos aqui do Ceará, de Pernambuco?
Gakiya - Enfim, portos do Ceará, de Pernambuco, se ele utilizar esses portos, aí sim. Porque aí é uma droga que é do PCC, aí esse dinheiro volta para São Paulo. O tráfico interno que gerar pagamento de advogado, vai gerar às vezes um plano de resgate, pagamento de cesta básica para familiar de preso, isso aí é gerido por cada estado. Dinheiro que arrecada aí fica aí mesmo.
O POVO - A facção rivaliza com as milícias ou é parceira das milícias?
Gakiya - Não, o PCC não tem, pelo menos que eu saiba até agora, nenhuma parceria com milicianos. Aqui no estado de São Paulo não temos a presença de milicianos. Pelo menos por enquanto. Isso é mais um fenômeno no Rio de Janeiro. Então envolve mais o Comando Vermelho. O PCC rivaliza mais hoje com o Comando Vermelho, com determinada facção local, com dada ramificação da FDN (Família do Norte) e por aí. Mas não com miliciano.
O POVO - Vou puxar por um tema que o senhor já tocou, o poder do Marcola. Hoje ele continua poderoso, perdeu poder ou já tem uma pessoa assumindo essa autoridade suprema da facção?
Gakiya - Ainda não perdeu poder. Ainda é considerado o líder máximo do PCC, assim como os demais que foram isolados são considerados os Sintonias finais do PCC. Uma parte está em Brasília, outra parte está em Mossoró e outra parte está em Porto Velho. Acabamos separando eles em grupos de presos.
Mas a tendência é que, com o tempo, vá surgir outras lideranças. Nós temos integrantes em liberdade, por exemplo, que são líderes do PCC na rua. Mas esses integrantes não têm ainda autonomia para tomar todas as decisões do PCC. Última palavra deveria ser do Marcola, mas, como eu disse, para que ele dê essa última palavra hoje é bem complicado. Sai.
Não vou dizer que é impossível sair uma ordem ou qualquer tipo de recado do sistema penitenciário federal. Mas isso é já uma dificuldade muito maior. Vai ter que usar uma visita, por exemplo. Vai ter que usar um advogado. E lembrando agora que com essa questão da covid-19, as visitas presenciais estão suspensas, então hoje a comunicação está bem dificultada pra eles. (Após 40 minutos de conversa, pediu para encerrar a entrevista, mas cedeu mais 10 minutos)
O POVO - Há informações de que o Marcola estaria deprimido, emagrecendo bastante, risco até de suicídio. Isso procede?
Gakiya - Até achei estranho uma matéria que foi publicada no Uol, uma página muito acessada. É uma matéria que foi levada pela defesa do Marcola. Por seus familiares e advogados. Tenho contato praticamente diário com o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) para trocar informações e o que eles me passam é que a situação tá normal. Falaram, por exemplo, que ele estava em greve de fome e ele nunca esteve. Marcola nunca esteve em greve de fome e já saiu publicado nesta mesma página que ele estava há tantos dias sem comer, todos estavam passando dificuldade, o que não é verdade. Lá eles têm atendimento psicológico.
Claro, eles estão isolados. Isso causa no ser humano, pode causar, um abalo psicológico. Isso é próprio do isolamento. Mas não quer dizer, por exemplo, que ele tá lá em depressão, que teve para se suicidar. Isso aí me parece que é uma jogada da família e da defesa para tentar de alguma maneira sensibilizar os tribunais e conceder o retorno dele de volta a São Paulo. Parece que é isso, um ato desesperado da família.
O POVO - Por que o Marcola foi traído pelo Gegê e pelo Paca? Isso foi a sentença de morte deles?
Gakiya - O que soubemos aqui em São Paulo e eu acompanhei uma parte das investigações aí. O que aconteceu é que o Gegê e o Paca, que saíram em liberdade, eram homens de confiança do Marcola, integrantes da Sintonia Final. Saíram para alavancar o tráfico do PCC, para desenvolver o tráfico internacional do PCC. Saíram com essa missão. Eles até o fizeram, mas eles também desviaram muito dinheiro da facção para uso particular.
O POVO - Muito quanto?
Gakiya - O pessoal calcula que eles desviaram mais de R$ 100 milhões do PCC para uso particular. Mansões aí no Ceará, carros de luxo, helicópteros, viviam uma vida aí de milionários. E também estabeleceram um tráfico internacional particular deles. Então foi isso que levou a essa ordem para matá-los. Plano que foi liderado pelo Fuminho, que foi preso agora, que também é praticamente um sócio, um amigo muito próximo do Marcola. Basicamente é isso. Eles consideram que houve uma traição por parte do Gegê e do Paca.
O POVO - Qual é a movimentação do PCC aqui no Ceará? Como ela se dá?
Gakiya - Não tenho esses detalhes da movimentação hoje do PCC no Ceará. O que posso dizer para você é que o PCC espelhou o comando, por exemplo, com a divisão de funções que tem aqui em São Paulo, para os demais estados. Por exemplo, você vai ter aí no Ceará um indivíduo que eu não sei quem é, mas que vai ser o Sintonia Geral no Ceará. É a pessoa que responde pelo PCC aí no Ceará.
Você vai ter alguém que é responsável, ou alguns integrantes são responsáveis, pelo setor financeiro do Ceará, e uma outra parte pelo setor de disciplina. Vai resolver os conflitos internos, se tem rebelião, essas coisas todas. É o que acontece aqui em São Paulo.
Basicamente é como se tivesse uma empresa matriz e várias filiais espalhadas pelo Brasil. O Ceará seria um deles. Com um agravante: o Ceará tem um grande número de integrantes. Número até desproporcional pela distância do estado de São Paulo, pelo tamanho do estado. Um número muito grande.
O POVO - Isso é um dos motivos de os líderes estarem sempre presentes aqui? Marcola morou aqui, o irmão dele (Alejandro Marcolinha) morou aqui, Fuminho esteve um tempo aqui, Gegê e Paca vieram pra cá. Isso é um fator que puxa?
Gakiya - Isso não foi falado por nenhum deles explicitamente. Não tenho nenhuma prova disso. Mas o que eu poderia dizer é que o que favorece é a localização geográfica. O Ceará tem uma extensa faixa litorânea, com portos, possibilidade de saída de drogas de várias maneiras via mar.
Vocês são um estado que é um polo turístico. Esses indivíduos, e outros inclusive, integrantes de máfias internacionais, acabam passando despercebidos aí no Estado. Eles se misturam com os turistas e conseguem se esconder no Ceará levando vida até de milionário. Como era o caso do Gegê e do Paca, dois presos que a gente procurava na Bolívia, no Paraguai, no Brasil, estavam aí vivendo tranquilamente há meses no Ceará.
O próprio Fuminho tirou identidade aí no Ceará, a última que ele tirou falsa. Passou aí também por Fortaleza. E também tem alguns líderes que têm parentesco. O irmão do Marcola, a esposa é do Ceará. O Fuminho tem parentes aí, ele não é daí, mas tem parentes aí. Tem outros integrantes da cúpula que têm parentes aí. Isso acaba facilitando.
O POVO - Por que o crime continua crescendo tanto, apesar de tanta medida restritiva, tanta regra imposta, tanta separação de cúpula, tanta gente que é trancada em regime disciplinar diferenciado. Por que mesmo assim essa facção continua crescendo dessa forma, movimentando valores cada vez maiores e se estruturando fora da base cada vez mais?
Gakiya - Essa é uma resposta bastante complexa. Poderia dizer que o crime organizado, o crime em geral, procura oportunidade de negócio. Onde ele acha que está vantajoso ele vai aplicar. O tráfico hoje é vantajoso. Porque ele tem uma pena muito pequena, se for comparado com roubo a banco, o que pode ocorrer com morte, e essa pena ser muito agravada para latrocínio etc. Normalmente quando eles perdem, perdem a droga. Acaba sendo vantajoso.
Hoje, você fazer parte de organização criminosa só lhe dá prestígio dentro da cadeia, segurança. Na rua você tem um status, ser integrante de facção criminosa. E quando você consegue impor uma pena a um indivíduo desse é muito baixa. Então, hoje, fazer parte de organização criminosa não pode ser vantajoso.
Nós temos que aumentar essas penas, teremos que ter presídios específicos para integrantes de organização criminosa. E tenho pregado isso, inclusive. Estou propondo isso no estado de São Paulo, que se faça uma unidade de super máxima, apenas para líderes de organização criminosa. Para a gente separar. Porque nós temos em São Paulo 233 mil presos. Se eu falar para você que eu tenho 12 mil integrantes do PCC no sistema. Não é maioria, mas eles dominam o sistema.
O POVO - O senhor acha que a lei precisa mudar também?
Gakiya - Precisa. Precisamos ter reforma da legislação. O (ex-ministro da Justiça, Sérgio) Moro tentou até fazer isso aí no início com o pacote anticrime, mas o pacote foi praticamente mutilado. Mas precisamos avançar. Esses indivíduos que resolvem integrar organização criminosa precisam ser isolados, separados dos demais, não ter visita íntima, não ter acesso a telefone, acesso a televisão, rádio, jornal, nada disso. Eles têm que ter dificuldades. Dificuldade na progressão de pena.
... é como se tivesse uma empresa matriz e várias filiais espalhadas pelo Brasil. O Ceará seria um deles. Com um agravante: o Ceará tem um grande número de integrantes. Número até desproporcional pela distância do estado de São Paulo, pelo tamanho do estado
Hoje o sujeito pega 12 anos, cumpre dois anos, vai pra rua. Isso é muito ruim pro sistema. É claro que não tô falando de piorar essa progressão, de piorar esses regimes para todo preso. Mas para o preso integrante de facção não pode compensar. O sujeito entra, "não vou participar disso porque não vou sair nunca mais da cadeia".
Não pode valer a pena. Para Marcola que tem 300 anos de cadeia para cumprir, pra esse tá tudo bem. Mas esses jovens que entraram a primeira vez no sistema e já são cooptados, precisa não valer a pena. A gente precisa quebrar esse círculo vicioso. Realmente separar os presos mais perigosos desses de menor periculosidade.
O POVO - Uma curiosidade: esse quadro atrás do senhor é o organograma do PCC?
Gakiya - (Risos) É. Esse é o organograma que nós produzimos, fica aqui na minha sala.
O POVO - É como o seu troféu?
Gakiya- Na verdade levou anos pra gente produzir esse organograma. Porque ele não foi algo que nós aprendemos pronto. Nós aprendemos como funciona através de documento, interceptação, e nós fomos construindo esse grande organograma dessa grande empresa criminosa que é o PCC.
O POVO - O crime estaria se reconfigurando durante a pandemia?
Gakiya - A questão da pandemia afetou não só a sociedade em geral, o comércio, a quarentena, mas também as organizações criminosas na medida em que há uma dificuldade maior para essa droga entrar no País.
Digo por conta do fechamento de portos, aeroportos, por conta das fronteiras. Paraguai, por exemplo. Ponte da Amizade fechada. Uma maior fiscalização do que vem da Bolívia, embora tenha muita droga dentro do País ainda armazenada pela facção. Mas isso pode gerar um problema. E está havendo um problema também da parte de tráfico interno. Um problema de ter caído o consumo por conta da quarentena, da falta de dinheiro no mercado.
Então isso deu uma atrapalhada no tráfico interno do PCC. Não acredito que possa reconfigurar as facções por conta da pandemia. Eles vão se adaptando. Acredito que agora com a flexibilização esse comércio vai voltar a ser o que era normalmente. Infelizmente.
Como é a vida do promotor Lincoln Gakya, há 15 anos marcado para morrer pela principal organização criminosa da América do Sul, o PCC