O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo (MPSP), é considerado o algoz de Marcola, o principal chefe da organização criminosa PCC no Brasil. A entrevista com ele, combinada para ser feita via Zoom, já começou com falhas no áudio. Pareciam mínimas, foram se ajustando. Depois veio uma queda grande, perdeu-se a imagem, a voz picotando, vídeo travado. Caiu e retornou ainda oscilante. Algumas respostas e o sinal sumiu de vez. Quando reconectou, foi dado o alerta. Só aí vei a explicação.
O POVO - A sua conexão tá muito baixa. Seu vídeo tá travando. Tô lhe ouvindo, mas seu vídeo tá travando. Praticamente só tive sua primeira fala com o vídeo.
Gakiya - Acho que é a Internet. Não tô em casa, tô no Ministério Público. Pra você ter uma ideia, aqui a minha sala, as janelas e as portas são blindadas. Isso atrapalha um pouco o sinal da Internet. Mas eu vou tentar prosseguir.
Você pode assistir a outros vídeos no Episódio 3
Esse bastidor ajuda a entender parte da rotina tensa vivida pelo principal inimigo do Primeiro Comando da Capital (PCC). Lincoln Gakiya, de 53 anos, quase 30 de MPSP, é a pessoa que mais atrapalha a mais estruturada organização criminosa do Brasil.
É um dos mais notabilizados integrantes do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco). Chefia o Núcleo da cidade de Presidente Prudente, da região onde estão as principais unidades do sistema penitenciário paulista. Gakiya é odiado como "o Japonês", "o China", "o Frango japonês". O apelido vem da herança genética no rosto.
A Sintonia Geral Final, a cúpula do PCC, tem "salves" e mais "salves" (ordens) mandando "fazer" (matar) o promotor. Ele atua para conter o tráfico de drogas e armas, por terra, céu e mar, montado pelo grupo.
O domínio é total na América do Sul e se espalha em escalada por "escritórios" internacionais na Europa, Ásia, África e Estados Unidos. Tamanho e práticas de cartel. Ou mais que isso.
Para Gakiya, o PCC "é uma organização mafiosa". Só por São Paulo, movimentam perto de 100 milhões de dólares por ano (na cotação da temporada, mais de R$ 500 milhões). Na parede de sua sala, um quadro exibe o organograma da facção - desenhado nos anos dedicados à investigação - que mostra a estrutura corporativa reproduzida pelos criminosos. São 30 mil integrantes no Brasil.
O promotor sabe do perigo e se protege na medida do impossível. Vive sob escolta policial 24 horas do dia. Pesada. Não cabe descuidar. Em qualquer deslocamento ou parada - casa, trabalho, restaurantes, escola, passeio com os cães, pescarias, mulher, filhos - tem sentinelas da PM ao seu lado.
Checam ruas, instalações, agenda, mudam itinerários. Olham até para o céu. Drones já foram vistos sobrevoando o condomínio onde o promotor reside. Gakiya é "decretado" (marcado para morrer) há 15 anos. Mas com mais ênfase nos últimos dois anos. Daí a sala blindada.
A ira da organização aumentou quando ele assinou sozinho e protocolou, em 28 de novembro de 2018, já no fim de expediente daquele dia, o pedido de remoção do primeiro e segundo escalões do PCC das cadeias paulistas.
Mandou 22 nomes para o isolamento em penitenciárias federais. Transferiu os que mandavam e desmandavam dentro e fora das unidades prisionais. Inclusive o maioral deles, número 1 da "Família" (como se tratam), Marco Willians Herbas Camacho, o "Marcola".
Um dos motivos da mudança de endereço dos aprisionados, para celas federais, seria um plano astucioso para resgatar alguns desses cabeças. A trama foi descoberta em outubro de 2018 pelo Gaeco.
No script da fuga cinematográfica estavam o uso de helicópteros (dois ou mais), aviões, veículos, blindados, fuzis Ponto 50 (que perfuram blindagens), explosão de muralha, bloqueio de rodovia, muita munição a ser queimada. Cercariam um batalhão da PM, explodiriam até uma subestação elétrica.
A trama estava descrita em bilhetes descobertos e com códigos decifrados pelos investigadores. O custo da operação criminosa seria perto de R$ 100 milhões, conforme levantado pelo MPSP a o setor de inteligência prisional.
Mais adiante, nesta reportagem, você vai ver o teor de alguns bilhetes com ameaças a autoridades policiais e judiciárias de São Paulo, recuperados em inspeções nas unidades prisionais.
Gakiya até quis dividir a autoria da medida de retirada dos chefes faccionados das prisões paulistas. Não queria personificar a inimizade. Normalmente seria um ato do próprio governo de São Paulo, com manifestação formal dos secretários da segurança Pública e da Administração Penitenciária.
"Eles me pediram para aguardar até que se passasse o primeiro turno das eleições. Porque poderia prejudicar o então candidato governador... enfim", conta.
Segundo o promotor, veio a decepção por esperar. "Passou o primeiro turno, o Estado não fez o pedido. Passou o segundo turno, o Estado não fez o pedido. Então avisei aos dois secretários: 'olha, se o Estado não fizer, o Ministério Público vai fazer o pedido'". Como o plano de fuga era uma descoberta do Gaeco, Gakiya decidiu sustentar a transferência.
Márcio França, o então governador candidato que saiu derrotado das urnas para o atual João Dória, chegou depois a se manifestar publicamente contra a remoção. Gakiya diz que "o governo ficou com receio de ter uma retaliação em função dessa remoção. Então ele achou melhor empurrar esse problema para o próximo governo".
O receio seria de algo parecido com o “salve geral” de 2006, em que vários prédios públicos e agentes de segurança de São Paulo sofreram ataques em sequência, comandados de dentro das cadeias pela facção.
As garantias de que as represálias não aconteceriam desta vez teriam sido dadas, a partir de relatórios de inteligência. Ainda assim a assinatura não foi compartilhada.
"Assinei sozinho e tô com o ônus sozinho desse pedido. (...) A remoção ocorreu, mas o ônus acabou marcando minha vida, provavelmente para sempre", conforma-se o promotor, em seu gabinete revestido e vigiado. A conversa com Gakiya, de aproximadamente 50 minutos, ajuda a compreender a expressão “viver cada dia como se fosse o último”.
Como é a vida do promotor Lincoln Gakya, há 15 anos marcado para morrer pela principal organização criminosa da América do Sul, o PCC