Os 29 anos do Mauc são marcados no caderno Vida&Arte de 25/6/1990 pela seguinte manchete de capa: "Nunca o Museu de Arte foi tão ativo". O texto da repórter Concy Beserra atesta que era "opinião geral na cidade" que o equipamento nunca fora tão "dinâmico" quanto naqueles tempos: “Somente nos últimos seis meses foram montadas ali cerca de treze exposições e mais doze estão programadas até o final do ano". O marco inicial do momento tão positivo reconhecido pelo V&A foi o ano de 1987, “quando (o museu) ganhou a direção do artista plástico e arquiteto Pedro Eimar”. Professor do curso de Arquitetura da UFC, especialista em Conservação e Restauração em Bens Culturais pela UFMG e artista, Pedro Eymar Barbosa Costa, 72 anos, é um nome intrinsecamente ligado ao Mauc, representante que conecta a geração scapiana a novos momentos históricos e desafios do museu.
“O Mauc vai ter vários ciclos de colaboradores. Como é um modelo colaborativo, é composto por vários ciclos de participação e de envolvimento”, aponta a professora e historiadora da arte Carolina Ruoso. No entendimento da pesquisadora, a presença de Pedro Eymar no Mauc é uma marca da permanência do espírito inicial da instituição.
“O mundo das artes no Ceará acontece muito a partir de experiências de grupos de artistas, sempre muito coletivas. Isso é muito forte no modo de pensar e fazer arte, desde a Padaria Espiritual e a SCAP até o Salão de Abril”, enumera Carolina. “Esses modos colaborativos vão compondo diferentes instituições cearenses num determinado período e o Mauc, o Pedro Eymar, guardam isso”, compreende a professora.
A ligação se dá essencialmente pela experiência que o então estudante teve ao ser pupilo do suíço Jean-Pierre Chabloz, membro da SCAP. “Meu envolvimento com a UFC começa entre 1963 e 1965, quando ela e o governo do Estado, mais precisamente Martins Filho e Parsifal Barroso (governador do Ceará entre 1959 e 1963), patrocinaram um curso de desenho ministrado no Conservatório Alberto Nepomuceno por Chabloz”, recupera Pedro Eymar em entrevista ao O POVO. “A exposição de encerramento do curso foi realizada em janeiro de 1965, cabendo a mim o prêmio Universidade Federal do Ceará com um retrato, um desenho”, avança.
Na década seguinte, Pedro se tornaria aluno de Arquitetura e Urbanismo na UFC e, em 1977, participaria da implantação do programa Bolsa-Arte. Criado no âmbito do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e gerenciado pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Extensão, o programa era um incentivo à produção artística no meio universitário, o que o aproximou do Mauc à época. Pouco depois, do final dos anos 1970 ao início dos anos 1980, tornou-se professor do curso, formou-se conservador e restaurador pela UFMG e enfim, assumiu a direção do Mauc a convite do Reitor Raimundo Hélio Leite (gestor entre 1987 e 1991).
A matéria do V&A sobre os 29 anos do museu foi produzida quando Pedro estava há três anos no cargo. De acordo com o texto, o espaço no então atual contexto era “bem diferente” daquele que o professor recebera: quando da posse, infiltrações nas salas ameaçavam as obras e havia comprometimento do sistema elétrico, do teto e do piso. A primeira medida enquanto diretor de Pedro, o texto narra, foi substituir o teto, o que foi feito "com verba do MEC e total apoio do reitor".
O segundo passo foi se dedicar ao restauro e à guarda de algumas obras, período em que Pedro capitaneou a construção da reserva técnica do Mauc. Então, chegou o “terceiro desafio de sua gestão - que é trazer o acervo à tona”. Foi daí que se desenrolou a situação descrita no começo deste texto: inúmeras e diversas exposições, alta no número de visitantes e desenvolvimento do Mauc enquanto espaço de cultura na Cidade.
Uma das exposições do período foi “José Tarcísio – 30 Anos de Atividades Artísticas”, que celebrava o marco da carreira do pintor e gravador cearense. De jovem estudante que se impactou com as pinturas de Bandeira na mostra inaugural do Mauc, ele se tornara artista expositor.
“Ocupei aquele espaço comemorando meus 30 anos de arte. Foi uma exposição panorâmica, grande. Teve muito apoio, foi muito esperada, muito visitada. Gilmar de Carvalho foi importante nessa exposição, ele fez um trabalho muito interessante dentro da Universidade (com os alunos) para se visitar a exposição. Foi um sucesso e ficou uma boa temporada”, orgulha-se o artista.
A exposição de José Tarcísio, lembra Pedro Eymar, delineava “o fio de um calendário anual de 40 exposições”. Mais ou menos no mesmo período, o museu recebeu uma homenagem ao centenário de Raimundo Cela; a Oficina de Gravura e Papel Artesanal ministrada por Eduardo Eloy, que “revela os segredos da prensa e da gravura” ao lado de nomes como Sebastião de Paula e Nauer Spíndola e na qual Francisco de Almeida anuncia “novos gênios gravadores”; os doze gravadores trazidos do Cariri pelo “imortal e incansável” Gilmar de Carvalho; o Caldeirão de Stênio Diniz; as doações de matrizes e estampas ao acervo do museu; Descartes Gadelha “trazendo, com alma, mais uma safra de visões da experiência humana”... “O meio artístico local produz, expõe e se agita”, rememora o ex-gestor.
"A gente vai vendo uma continuidade no modo de ser e existir do museu que é esse modelo colaborativo. O diretor tinha esse princípio que, no meu entendimento, é uma herança. Ele é representante desse ciclo geracional da SCAP", reforça a professora Carolina Ruoso.
“As exposições que Pedro Eymar desenvolvia tinham a perspectiva de pensar de forma colaborativa as relações entre problemas contemporâneos e o acervo do Mauc. Ele desenvolvia exposições de curadoria colaborativa super inovadoras. O problema é que no período isso era (algo) outsider. Hoje estamos fazendo esse debate, mas, quando ele estava, era considerado ‘recreativo’”, denota.
Em análise do professor Gilmar de Carvalho (1949-2021) publicada em 13 de agosto de 1991 no Vida&Arte sob o título “Trinta Anos de Mauc, Artes Plásticas no Ceará, etc.”, o pesquisador aponta que o museu “fez questão de manter durante a maior parte de sua existência” o que chamava de “lado austero e porque não dizer elitista”. Este “contribuiu para sacralizar ainda mais a criação artística e sua fruição, aberta a uns poucos iniciados”.
“A fase de inserção desse espaço público na vida da cidade (...) deu ao MAUC um novo alento”, atesta Gilmar. “É quando ele passa a abrir espaço para as várias tendências, sem preconceitos, da ousadia dos ex-integrantes da Fratura Exposta aos xilógrafos de Juazeiro do Norte”, segue. “O museu espelha nossos paradoxos e inquietações”, precisa.
Nove anos e três meses separam “Nunca o Museu de Arte foi tão ativo” de “O Mauc nunca parou”, manchetes de capa do caderno Vida&Arte sobre o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. A primeira, publicada em 25 de junho de 1990, celebrava um momento positivo da instituição. Já a segunda, datada de 28 de setembro de 1999, abria uma reportagem especial sobre a delicada situação do equipamento, impactado por fechamentos devido a reformas estruturais e falta de pessoal, criticado pelo “trancamento” do acervo e sombreado pelas conquistas do início da década.
É a reportagem de 1999, escrita pela repórter Eleuda de Carvalho, que vai levar a historiadora da arte e professora Carolina Ruoso a destrinchar as décadas de trajetória do Mauc na tese de doutorado que defendeu na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. O período da publicação do material no V&A é marcado por “modelos de museu em disputa”, como analisa a pesquisadora.
É preciso, porém, traçar um contexto geral e anterior ao enredado do final dos anos 1990. “Pedro Eymar assume a instituição em 1987, no período de abertura política, e vai segurar o Mauc em um momento de crise das instituições públicas brasileiras”, afirma Carolina. “Precisamos lembrar que o Mauc se segurou no período da Ditadura Civil Militar (1964-1985) e, depois, em um grande período onde os projetos políticos não eram os de fortalecer as instituições públicas”, avança.
"Manter um acervo com a qualidade de referência cultural tão rica impõe uma batalha incansável", define Pedro Eymar. Entre desafios da gestão do Mauc, ele lembra da necessidade de enfrentar “reformas cada uma com sua natureza específica e tendo em comum a impossibilidade de serem realizadas de forma simultânea” e de “modernizar-se apesar da privação das dotações orçamentárias”. Tais contextos podem ser encontrados em registros do Vida&Arte.
Na capa de 30/10/1995, a repórter Elizabeth Rebouças assina o texto “Os Canteiros da Cultura”, que aborda reformas inacabadas de três polos culturais da UFC, incluindo o Mauc. O museu fechara um ano antes para intervenções estruturais. “A primeira fase da reforma do Museu de Arte da UFC está pronta. Apesar da grandiosidade do projeto em execução, a obra corre o risco de não ter continuidade imediata”, avisa o texto. Isso porque não havia dinheiro.
A matéria ouve a Superintendência de Planejamento Físico e Operações da UFC, que afirmava não haver “dotação assegurada”, mas sim “forte disposição do reitor (Roberto Cláudio, que ocupou o cargo de 1995 a 2003) em não deixar as obras iniciadas pararem". As dificuldades financeiras eram grandes e havia solicitações de toda a Universidade. “O Ministério praticamente não está destinando verbas para as atividades afins”, segue o texto, completando com uma aspa da superintendência: "imagine pra área cultural”.
Na matéria de Eleuda de Carvalho de 1999, outra situação de descontinuidade era descrita. Naquele momento, havia um contexto acentuado de diminuição da equipe do Mauc: eram somente cinco servidores trabalhando internamente. Antes do Programa de Desligamento Voluntário instituído pelo Governo Federal no período, eram 17.
O enfraquecimento das políticas públicas para as Universidades foi sentido por estudantes como a hoje artista visual Mariana Smith. Aluna do curso de Comunicação Social entre 1999 e 2004, ela foi integrante do programa Bolsa-Arte e, a partir dele, teve contato com o Mauc. Antes de presenciar as ausências, porém, viu no museu uma forma de se conectar com o universo das artes na falta de cursos da área na época.
“Ele tem esse grande acervo da arte cearense, é uma coisa maravilhosa, então tinha toda a questão de poder acessá-lo, conhecê-lo. É uma coisa muito rica, ainda mais para esse jovem que está começando a estudar artes sem ter um curso específico. Entender que isso existia foi muito mágico”, lembra Mariana. “Tinha uma congregação de estudantes de vários cursos, esses bolsistas, que se interessavam por arte, queriam ser artistas, e encontraram um lugar”.
Entre as atividades realizadas no escopo da bolsa, Mariana lembra de oficinas de fabricação manual de carvão, ministradas pelo próprio Pedro Eymar, e da técnica do tatismo, bem como o auxílio na montagem de exposições. Na época, a então estudante fez os primeiros trabalhos com artes visuais. “Eu congelava flores, fazia manchas em tecidos. A gente ficava experimentando técnicas, era muito solto”, divide.
A “soltura” descrita pela artista proporcionava, por um lado, as experimentações, mas por outro uma ausência, por vezes, de maior acompanhamento. Um exemplo do tipo se relaciona com a prensa de xilogravura que o Mauc tinha no ateliê dos fundos. “No ateliê de gravura, quem quisesse experimentar podia, mas, por exemplo, nunca tive uma aula de xilogravura. Eu era louca pra aprender a fazer, mas não tinha quem ensinasse”, ilustra.
“Não tinha uma equipe. Tinha o Pedro Eymar, o Pedro Humberto - que foi um grande professor de fotografia para mim e também trabalhava no Mauc. Eles estavam ali, mas como não tinha recursos, não tinha um projeto definido. O Mauc era um lugar em aberto”, arrisca Mariana.
O estado “em aberto”, por um lado, fazia com que o museu pudesse ser ocupado por ideias desafiadoras e inovadoras. Um marco deste momento citado por Mariana e, também, pela historiadora de arte Carolina Ruoso, foi a exposição “Labirinto da Arte e da Vida”, em agosto de 2004.
“Ela foi super importante, muito experimental. O Mauc era um lugar em aberto para quem quisesse ocupar de alguma maneira. Essa exposição foi uma ocupação experimental do museu, chamaram vários artistas, foi um grande labirinto que ocupava o museu inteiro”, remonta Mariana.
“Labirinto da Arte e da Vida” foi resultado de um doutorado coletivo - uma experiência inédita no País - defendido pelos então doutorandos em Educação pela Universidade Federal do Ceará Andréa Havt Bindá (in memoriam), Eduardo Loureiro Jr (hoje professor da UFC) e Fabiano dos Santos (atual secretário da Cultura do Estado).
“O Mauc e o Pedro Eymar estavam acolhendo esses projetos extremamente inovadores e que eram extremamente colaborativos, o que exige um papel de gestão muito forte para saber acolher essas propostas diversas”, reconhece Carolina. “Era uma tomada de posição de um entendimento em defesa da participação na instituição cultural - ao contrário de como a sociedade cearense olha para o museu”, segue a pesquisadora.
Em paralelo a - e mesmo antes de - experiências como a de “Labirinto”, havia uma pressão para que o Mauc dinamizasse o acesso às coleções. Mariana recorda do momento como “uma corda bamba”. “Tinha uma pressão da sociedade para estar expondo sempre esse acervo. Isso causou um rebuliço porque quando você ‘tranca’ o museu com sala permanente, ele perde o espaço de experimentação. Na época, foi meio controverso, mas havia a pressão”, explica.
Em 1999, na matéria do Vida&Arte, uma crítica forte é em relação justamente ao “fechamento” da instituição, que de fato fechava aos finais de semana e mantinha as obras na reserva técnica - Pedro Eymar creditava a situação à falta de segurança.
A crítica foi fortemente vocalizada por Sérvulo Esmeraldo, em continuação da matéria de capa de 28/9/1999 que levava como título uma frase do artista que outrora havia ajudado a construir o Mauc: "Um museu hermético e estático". Nas páginas da reportagem, consta também uma entrevista com o reitor Roberto Cláudio sob o título “O Mauc tem que abrir".
“Sérvulo estava fazendo uma provocação, vai friccionar o museu. Nesse caso, ele está fazendo o papel de defensor da abertura da instituição e o Pedro Eymar, como gestor, está defendendo”, contemporiza Carolina.
“O mundo das artes é um mundo de negociações e renegociações, conflitos, diferenças. Há as forças hegemônicas e as contra-hegemônicas. O Mauc é pressionado a colocar essas exposições de longa duração. Isso acontece também no Pompidou (Centro Georges Pompidou, complexo cultural criado em Paris em 1977), que nasce inovador e cede ao modelo do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, criado em 1929). Não dá para dizer que totalmente, mas é uma exigência, e de alguma forma o Mauc cede ao modelo do cubo branco, com exposições de longa duração”, pondera a professora.
“Uma instituição colaborativa obviamente gera muitas intrigas. São como marimbondos, ora tem aqui um grupo deles dialogando, ora se separam”, ilustra Carolina. “São ciclos de cooperação, de colaboração. É um processo coletivo que gera divergências, disputas de interesses, mas a gente não pode perder de vista que o museu é esse lugar construído por tantas pessoas, com visões diferentes, mas que compuseram um grande repertório de imaginação museal para a instituição”, defende a pesquisadora.
Fontes de pesquisa: Site do Mauc (www.mauc.ufc.br); Tese de Doutorado “Casa de Marimbondos. Nove tempos para nove atlas. História de um museu de arte brasileiro (1961 -2011)”, de Carolina Ruoso, defendida na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne; O POVO.doc
Reportagem em série passeia pela história do Museu de Arte Contemporânea da UFC, mostra suas transformações e aponta para o futuro da instituição