Logo O POVO+
Cidade engolida: por que caso Braskem é maior tragédia urbana do mundo
Reportagem Seriada

Cidade engolida: por que caso Braskem é maior tragédia urbana do mundo

Maior crime ambiental em solo urbano atinge 20% do território de Maceió e deixa como rastro as ruínas de uma cidade-fantasma. Mineração desde os anos 70 comprometeu moradias que abrigavam mais de 50 mil pessoas que, agora, lidam com as consequências do deslocamento forçado — e denunciam potencial lucro imobiliário para a empresa
Episódio 3

Cidade engolida: por que caso Braskem é maior tragédia urbana do mundo

Maior crime ambiental em solo urbano atinge 20% do território de Maceió e deixa como rastro as ruínas de uma cidade-fantasma. Mineração desde os anos 70 comprometeu moradias que abrigavam mais de 50 mil pessoas que, agora, lidam com as consequências do deslocamento forçado — e denunciam potencial lucro imobiliário para a empresa
Episódio 3
Tipo Notícia Por

 

Neste dezembro de 2023, uma tragédia anunciada entrou para a história dos desastres socioambientais do Brasil e colocou a cidade de Maceió, capital de Alagoas, no centro do maior crime ambiental em solo urbano do País — e a maior tragédia urbana do mundo.

As pichações nas paredes das casas foram uma maneira encontrada pelos moradores para se manifestar sobre o caso Braskem(Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico)
Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico As pichações nas paredes das casas foram uma maneira encontrada pelos moradores para se manifestar sobre o caso Braskem

O afundamento do solo em pelo menos cinco bairros "Desde 2018, diversos bairros de Maceió sofrem com tremores de solo devido à desestabilização das cavidades provenientes da extração de sal-gema operadas pela Braskem, provocando halocinese e criando uma situação dinâmica com reativação de estruturas geológicas antigas, subsidência do terreno e trincas no solo e nas edificações." da capital alagoana é resultado do colapso da mina 18, à beira da lagoa Mundaú e próxima ao antigo Centro de Treinamento do Centro Sportivo Alagoano (CSA). Esse é um dos locais de exploração de sal-gema "Ele pode ser usado normalmente na cozinha, como o sal rosa do Himalaia vendido em supermercados, que é sal-gema. No entanto, seu uso é importante em vários processos industriais. Para a Braskem, o resultado da mineração serve para produzir PVC e soda cáustica." pela Braskem "Com mais de 40 anos em Alagoas, a petroquímica e mineradora Braskem, antes Salgema S/A, explora o mineral desde 1976 em Maceió." , empresa do grupo Novonor (antiga Odebrecht), que minera no estado desde a década de 70.

A exploração inadequada durante as atividades da petroquímica nas minas seria responsável pela criação de falhas e crateras na região, o que danificou centenas de moradias com o surgimento de rachaduras e afundamentos.

Em 3 de março de 2018, três das 35 minas perfuradas pela mineradora desabaram e provocaram um terremoto de 2,5 pontos na escala Richter.

Vítimas do caso Braskem fizeram registros nas paredes das casas antes de as deixarem(Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico)
Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico Vítimas do caso Braskem fizeram registros nas paredes das casas antes de as deixarem

A partir daí, teve início um deslocamento forçado de cerca de 55 mil pessoas dos bairros Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e Farol, que ficam às margens do espelho d’água e começaram a ser “engolidos”.

Ao menos três deles tiveram de ser completamente evacuados às pressas em 2020 devido a tremores de terra que abalaram a estrutura dos imóveis e deram origem a “bairros-fantasma” em um cenário semelhante a um pós-guerra.

Com a desocupação, foram desativados também aparelhos públicos como escolas, postos de saúde e hospitais como o único hospital psiquiátrico da cidade "Localizado no Farol, o único hospital psiquiátrico público de Alagoas, o Portugal Ramalho, precisou se mudar com 160 pacientes internados e 395 funcionários porque o prédio sexagenário poderia não resistir a novos abalos no solo." , além de comércios, uma trilha do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e uma série de danos ao patrimônio histórico e cultural maceioense.

A Companhia de Pesquisa de Recursos Naturais (CPRM), do Serviço Geológico do Brasil, constatou que a mineração foi a causa central do afundamento ainda em 2019.

Na época, a Braskem questionou o laudo, mas depois recuou e aceitou arcar com os custos dos aluguéis dos moradores.

Valores que são considerados insuficientes diante do tamanho do problema e fazem com que famílias permaneçam em suas casas mesmo com a ameaça de um desastre.

A família do montador Antonio dos Santos, 52, morador do bairro do Flexal, em Bebedouro, onde há uma colônia de pescadores e marisqueiros, é uma delas.


O bairro faz parte da história da fundação de Maceió e foi berço de tradições culturais ligadas ao território e à ancestralidade, além de abrigar prédios tombados como o Asylo das Órphans Desvalidas de Nossa Senhora do Bom Conselho, construído em 1877.

“A gente quer sair, mas com garantias. Daqui só foram quatro famílias, o restante não quis ir. Eu vou levar uma criança de 1 ano e uma idosa de 75 anos para dormir no chão de um colégio comigo?”, questiona.

“A criminosa é a Braskem, mas quem fica preso somos nós. Nós estamos excluídos da sociedade de Maceió, nosso bairro nem se encontra no mapa de risco. A gente depende da Justiça, mas eles obrigam a gente a permanecer aqui, nos obrigam a morar num lugar onde você não tem nada. A gente está ilhado, querer que a gente more num lugar insalubre desses é triste”, lamenta.

Antonio descreve que a sensação de medo e insegurança física e mental está exposta no rosto de cada um: “A gente não sabia o tamanho da gravidade, a dimensão do problema, eles escondem, na verdade a imprensa local esconde tudo. É um pessoal sem preparo para conversar com as pessoas, tiveram tempo para dialogar com a gente e vieram 11 da noite com ambulância, retirando as pessoas à força, ‘bora, vamo sair’”.

“Estamos morrendo aos poucos entre os escombros das casas destruídas e a solidão da avenida Fernandes Lima. Pedimos socorro”, desabafa.

A alameda citada pelo montador tem sido palco de manifestações populares que reúnem moradores, especialistas e ativistas do direito à cidade para cobrar providências da empresa Braskem e do Poder Público, que, segundo Antonio, “tem se mostrado mais preocupado em tranquilizar os turistas”. O ministro do Turismo, Celso Sabino, chegou a se manifestar nas redes sociais para garantir aos turistas que as áreas de turismo ficam afastadas da região afetada.

 

 

A previsão é que de outros atos em defesa das vítimas aconteçam, com apoio de organizações e movimentos populares do campo e da cidade como o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) e a Associação de Empreendedores Vítimas da Mineração em Maceió.

A realidade que ecoa desastres anteriores multiplica o número de vítimas e, de acordo com o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), já são mais de 200 mil pessoas afetadas direta e indiretamente pelo crime socioambiental.

Como resultado da repercussão do caso, que alcançou projeção nacional e internacional, a Braskem cancelou a participação que faria na 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), onde discutiria sobre sustentabilidade — uma das principais bandeiras levantadas pela mineradora.


Antonio acrescenta que há, ainda, outro drama que se mistura a esse: além das pessoas desalojadas pelo caso Braskem, existem centenas de desabrigados das enchentes que atingiram a cidade no meio do ano e que já aguardavam uma solução por parte da prefeitura.

As famílias vítimas dos alagamentos causados pelas chuvas intensas aguardam providências como o pagamento de aluguel social ou indenização enquanto vivem improvisadamente “acampadas”, inclusive com crianças, idosos e animais de estimação, em quadras de escolas públicas.

Em 30 de novembro, a Defesa Civil de Maceió emitiu alerta máximo devido ao risco iminente de colapso da mina 18, que rompeu parcialmente dez dias depois, quando o afundamento do solo já registrava um acumulado de 2,35 metros.

 

 

Após o rompimento, que aconteceu por volta das 13h15 do domingo, 10 de dezembro, o órgão descartou a possibilidade de um novo colapso e falou em estabilização da área.

O coordenador da Defesa Civil ainda assegurou que “nenhuma” das outras minas da Braskem na capital alagoana apresentam “outro comportamento anormal”.

Equipes técnicas do Ministério de Minas e Energia (MME), do Serviço Geológico do Brasil (SGB) e da Agência Nacional de Mineração (ANM) avaliaram os dados apresentados e também afirmaram que “não há indícios de repercussões em áreas adjacentes das demais minas”.

 

Mapa da área onde fica a mina 18, a lagoa Mundaú e os bairros atingidos

 

Segundo os técnicos, “o incidente foi localizado, sem dados maiores aparentes ou risco a vidas”. Dados da Rede Sismográfica apontaram que dois sismos positivos de pequena magnitude ocorreram horas antes do colapso, mas a expectativa é de que a situação na região se acomode.

De acordo com o prefeito João Henrique Caldas, o JHC (PL), que sobrevoou a área onde se deu o rompimento, na lagoa Mundaú, o local está totalmente desocupado e “não há risco para as pessoas”.

Em entrevista à CNN Brasil, JHC classificou o então iminente colapso no solo da capital alagoana como “a maior tragédia urbana no mundo em curso”, rotulação que também já havia sido dada pelo Observatório da Mineração anos antes do episódio.

 

 

No X (ex-Twitter), o gestor municipal anunciou demolições na área com o objetivo de reduzir a pressão sobre o solo e o controle do espaço aéreo com restrição do uso de drones em parceria com o governo de Alagoas.

Em nota publicada ainda na tarde de domingo, após o rompimento parcial da mina, a Braskem se manifestou sobre o “movimento atípico de água na lagoa Mundaú” e registrou que a movimentação do solo foi captada por câmeras de monitoramento do local.

No texto, a petroquímica informou que “toda a área, que vem sendo monitorada nos últimos dias, já estava isolada” e que “as autoridades foram imediatamente comunicadas”.

Vale prevê mais 13 anos para eliminar barragens como Brumadinho(Foto: )
Foto: Vale prevê mais 13 anos para eliminar barragens como Brumadinho

Dilson Ferreira, professor de Arquitetura e Urbanismo da Ufal e coordenador técnico da Diretoria do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB), menciona outras tragédias que tiveram uma repercussão no tecido urbano de lugares mundo afora.

Uma delas é o bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial: “Não dá para comparar porque é um ambiente de guerra, é um genocídio provocado pelo homem”.

“Temos outros casos mundiais como o acidente nuclear de Chernobyl e nacionais como o acidente com Césio-137 em Goiânia, e mais recentemente Mariana e Brumadinho, dois grandes acidentes ambientais e urbanos causados pela mineração”, lembra.

Dilson salienta que “aqui não morreu ninguém diretamente por conta da mineração, mas você tem algo que se compara a outros acidentes de grandes proporções”.

“Você tem cinco bairros afundando o solo, mais de 50 mil pessoas retiradas de suas casas, mais de 15 mil imóveis totalmente fantasmas, milhares de pessoas com problemas psicológicos, dezenas de suicídios, o impacto no comércio, o impacto na lagoa, que impacta não apenas Maceió, mas outros oito municípios que também ficam na borda da lagoa. Então realmente é a maior tragédia urbana causada pela mineração”, atesta.

“Você tirou 20% da cidade e saiu distribuindo, jogou todo o fluxo de carro, de comércio, tudo para outras regiões. Então pode haver um impacto não só na área, mas em toda a cidade. Você pressiona essa estrutura, você pressiona o aluguel, o uso do solo, a mobilidade”, sobreleva.

Desde que o primeiro tremor de terra foi registrado no bairro do Pinheiro, em Maceió, em 3 de março de 2018, pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) se dedicam a buscar explicações para as causas do fenômeno.

A professora e pesquisadora Natallya Levino é autora do livro "A cidade engolida: uma discussão inicial do afundamento dos bairros pela extração de sal-gema em Maceió/AL"(Foto: Natallya Levino/Acervo pessoal)
Foto: Natallya Levino/Acervo pessoal A professora e pesquisadora Natallya Levino é autora do livro "A cidade engolida: uma discussão inicial do afundamento dos bairros pela extração de sal-gema em Maceió/AL"

Entre as pesquisas realizadas está a que é coordenada pela professora Natallya Levino, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (Feac) da Ufal, autora do livro “A cidade engolida: uma discussão inicial do afundamento dos bairros pela extração de sal-gema em Maceió/AL”.

“Por ser um fenômeno recente, o material produzido ainda é insuficiente para dimensionar a grandiosidade do impacto e seus desdobramentos. O repositório tem a finalidade de reunir as informações produzidas por diferentes grupos de forma a publicizar o desastre que hoje atinge quase 60 mil famílias diretamente e impacta em toda a cidade de Maceió”, explica a pesquisadora.

O grupo de pesquisa também criou um canal no Youtube intitulado “Relatos de uma tragédia” para divulgar os resultados da pesquisa e promover o debate com a comunidade sobre os dados levantados em busca de soluções.

A pesquisadora acredita que a omissão do Estado e de órgãos ambientais contribuiu para a continuidade da exploração, que é proibida por lei em áreas urbanas e lagunares. 

Ela detalha que a extração de sururu na lagoa Mundaú é a principal fonte de renda desses pescadores e marisqueiros, proibidos de trabalhar em virtude da situação.

“Com os desdobramentos do desastre, que afetará a salinidade da lagoa, espera-se encontrar impactos negativos decorrentes do rompimento da barreira, nessa atividade que é tão importante para essa comunidade”, analisa.

Para Levino, o risco da exploração da sal-gema em áreas urbanas como no caso de Maceió decorre de alguns motivos, “como a ausência de fiscalização, pois uma fiscalização adequada evitaria que o desastre provocado pela mineradora em anos de exploração atingisse essa magnitude, com anuência dos órgãos reguladores”.

 

Profundidade em que são encontrados os blocos de sal-gema

 

Outro fator crítico citado pela docente é a “proximidade entre as minas, que decorre principalmente de uma ganância da mineradora em não respeitar padrão de segurança” e a “proximidade da exploração em área residencial, com ausência de responsabilidade social e corporativa da empresa”.

A demora para que a situação dramática fosse tratada com a devida importância, na opinião da professora, também se deve ao “fato de a exploração não ter um aspecto visual explícito. Ou seja, muitas das famílias que ali residiam sequer sabiam dos riscos. Somente após os primeiros tremores e o laudo da CPRM que a sociedade percebeu o que a mineração tinha provocado no solo da cidade”.

A Defesa Civil de Maceió tinha ciência de que a movimentação do solo na área da mina 18 da Braskem aumentava desde o fim de setembro, mais de dois meses antes de tornar essa informação pública, em 29 de novembro.

Em ofício, a prefeitura de Maceió explicou mudanças e pediu sigilo, alegando que a divulgação antecipada de "dados sensíveis" poderia causar transtornos à população(Foto: O Globo/Reprodução)
Foto: O Globo/Reprodução Em ofício, a prefeitura de Maceió explicou mudanças e pediu sigilo, alegando que a divulgação antecipada de "dados sensíveis" poderia causar transtornos à população

O afundamento também foi comunicado à petroquímica em novembro, que se recusou a tomar medidas imediatas. As informações foram reveladas com exclusividade pelos jornalistas Malu Gaspar e Johanns Eller, do jornal O Globo.

Um documento sigiloso obtido pelo jornal, o ofício 774 da Defesa Civil datado de 13 de outubro, revela que o órgão já havia observado movimentos na região crítica da mina, no bairro do Mutange, na orla da lagoa Mundaú, antes da informação vir a público.

“A lagoa Mundaú é um patrimônio da cidade, seja pelo uso de transporte, lazer ou por ser fonte de renda para milhares de famílias. Com os danos provocados na lagoa, essa hoje não consegue ser fonte de sustento pra essas famílias, que alegam que atualmente não tem mais peixes e nem mariscos”, evidencia Natallya Levino.


“Tivemos audiências justamente para traçar diretrizes para programas que forneçam suporte a essas famílias, que estão na margem da lagoa, mas em região que não será evacuada, e mesmo assim sofrem diretamente os danos provocados pela mineração. Esperamos, além de programas de assistencialismo, que mecanismos de preservação da lagoa sejam adotados para garantir que as gerações futuras tenham novamente direito a uso da região”, salienta.

Um entrave que tem sido enfrentado pela categoria, segundo a pesquisadora, que tem acompanhado de perto o processo, é que “para conseguirem cadastrar pescadores e marisqueiras para receberem auxílio, encontram dificuldades na emissão de carteira pelo Ministério da Pesca, que demora até anos para deixar pronta uma carteira de pescador/marisqueira”.

“Acho que essa situação, principalmente dada a vulnerabilidade da população, precisaria ser criada uma força tarefa e reduzida a burocracia”, avalia.

 

 

Nem tudo que reluz é ouro

Os aspectos geológicos que ajudaram a formar as camadas do solo brasileiro ao longo da história favoreceram a criação de um terreno fértil que hoje faz com que o Brasil seja reconhecido como um dos principais produtores de minérios do mundo.

O País produz aproximadamente 70 substâncias minerais diferentes, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), e em 2021 o setor mineral brasileiro foi responsável por aproximadamente 20% das exportações, o que representa quase 5% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.

No Nordeste, onde o desenvolvimento econômico é mais conhecido por ter como base o turismo, a agricultura ou o comércio, a concentração e extração de recursos minerais como ferro, magnesita, urânio, talco e ouro, dentre muitos outros, também é responsável por abastecer diversos segmentos da indústria e movimentar uma parte considerável da economia.

O Ceará recebe destaque pela carga relevante de minério de ferro e carvão mineral, que são matérias-primas para a siderurgia e usinas térmicas, mas o estado também é o terceiro maior exportador de rochas do País e possui depósitos de diversos outros minérios que frequentemente são alvo de pesquisa e extração, como lítio, titânio, manganês, fosfato e ametista.

Mas nem tudo que reluz é ouro, como diz a máxima: tamanha riqueza carrega consigo uma cadeia de exploração que nem sempre leva em conta os contextos sociais, ambientais e urbanos de lugares parcial ou completamente modificados para atender a um potencial lucrativo.

Maceió entra para a lista das cidades drasticamente afetadas por desastres socioambientais recentes ligados à mineração, ao lado de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, onde o rompimento de barragens da mineradora Vale em 2015 e 2019, respectivamente, deixou efeitos devastadores para a população e todo seu entorno.

 

 

Memórias em ruínas

Embora o colapso seja recente e sua iminência tenha chegado à maioria das manchetes de jornais do Brasil e do mundo somente nos últimos dias, a ameaça era uma vizinha com quem os maceioenses dividiam o cotidiano há pelo menos cinco anos.

Isso porque os efeitos da extração de sal-gema, mineral que é formado no subsolo, a cerca de mil metros da superfície, começaram a ser sentidos nessa região em 2018, quando cinco bairros da capital alagoana registraram tremoresafundamento do solo.

Apesar de não ter causado mortes diretas, o afundamento fez com que mais de 50 mil pessoas tivessem de deixar suas casas — o que deu início a uma migração forçada para escolas, abrigos, lugares distantes, residências de parentes ou mesmo a rua, e não apenas tirou a vida desses bairros ao ponto de transformá-los em verdadeiras cidades-fantasma, como também afetou a vontade de viver de muitos dos seus antigos moradores.

Defesa Civil de Maceió evacuou casas e estabelecimentos comerciais devido ao risco de colapso de uma das 35 minas operadas pela Braskem(Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico)
Foto: Carlos Eduardo/@cotidiano_fotografico Defesa Civil de Maceió evacuou casas e estabelecimentos comerciais devido ao risco de colapso de uma das 35 minas operadas pela Braskem

Deixar para trás e em ruínas o território que abrigou as memórias de uma vida gerou uma população de refugiados urbanos, vítimas — algumas vezes fatais — de situações extremas de sofrimento e adoecimento mental.

É caso de um dos melhores amigos do funcionário público Beroaldo, 55. Davi, que é cadeirante e vive em situação de rua desde que deixou a casa onde morava no bairro do Farol, chegou a ingerir agentes tóxicos como produtos usados para limpeza doméstica.

César, outro amigo próximo que mudou-se para uma localidade afastada do núcleo social que mantinha desde a infância, fez a ingestão de um produto utilizado como raticida e faleceu na casa onde residia no Farol.

Maquete construída pelo funcionário público Beroaldo, 55, para homenagear e lembrar da casa onde viveu por 53 anos no bairro Farol, uma das regiões afetadas pelo caso Braskem(Foto: Beroaldo/Acervo pessoal)
Foto: Beroaldo/Acervo pessoal Maquete construída pelo funcionário público Beroaldo, 55, para homenagear e lembrar da casa onde viveu por 53 anos no bairro Farol, uma das regiões afetadas pelo caso Braskem

“Já perdi a conta de quantos amigos meus entraram em depressão e morreram. É muito complicado, agora todo mundo mora distante, separou todo mundo. É uma dor muito grande porque cada um foi para um canto. Agora tentamos fazer um encontro como a gente fazia no Farol, fazer um racha, uma resenha, descontrair a cabeça. Passei a ter problema com sono, não tem mais dia nem mais noite. Se não tiver uma cabeça boa e Deus no coração, não dá”, desabafa.

“Até meu cachorro, o Garoto, adoeceu e faleceu. Você imagina, minha casa era grande, tinha quatro pés de coqueiro, carambola, acerola, a terra era muito boa. Meu cachorro vivia solto. No tempo que saí de lá, fui morar numa casa sem espaços. Ele não conseguiu”, conta.

Morador do bairro por 53 anos, Beroaldo construiu uma maquete da própria casa como homenagem e lembrança. Ele diz que reproduzir uma miniatura do antigo lar não foi difícil, pois conhecia a residência como a palma da mão: “Foi herança dos meus pais, nasci e me criei lá, era uma chácara pequena. Um terreno de 10,20 de frente por 50 metros de fundo”.

O funcionário público se mostra revoltado com a recusa da empresa em acatar o valor do imóvel, avaliado em R$ 1,3 milhão. Sem perspectiva de resolução, Beroaldo tem vivido dias desgastantes.

“Eles não aceitam, acham um valor muito alto, mas a proposta deles é muito abaixo do valor da minha casa. Eles fazem uma matemática que não existe, porque quem tem dinheiro manda mais. Já fiz três avaliações e toda vez que eles batem de frente a gente tem que fazer outra, cada uma é mais de R$ 2 mil, um dinheiro que vai servir para pagar matrícula de escola, plano de saúde”.

Ao lado da esposa, da filha e do neto pequeno, Beroaldo expõe que “estão tirando o povo à força, estão determinando que a polícia tire, tem pessoas sendo agredidas e saindo sem ter para onde ir, indo dormir em chão de escola”.

Atos unificados em defesa das vítimas da Braskem em Maceió têm recebido apoio de mobilizações como o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) e a Associação de Empreendedores Vítimas da Mineração em Maceió(Foto: Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)/Reprodução)
Foto: Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)/Reprodução Atos unificados em defesa das vítimas da Braskem em Maceió têm recebido apoio de mobilizações como o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) e a Associação de Empreendedores Vítimas da Mineração em Maceió

O servidor acrescenta que, com a demanda crescente por moradia, “tudo aumentou”: “O aluguel que eles pagam não dá para nada. Casa que era 600 fica 1000 [reais], porque se aproveitam da situação”.

“A Braskem comete o crime e o morador que é o culpado. Oferecem mixaria, prometem mundos e fundos, mas quando você sai não tem nada. Matam você na unha, tentam te vencer no cansaço. O leite já foi derramado, não tem mais como voltar para lá, virou uma cidade-fantasma. Então se é para sair, que paguem o valor justo e correto”, declara.

Beroaldo ainda reforça as suspeitas que têm pairado entre os moradores de que a retirada dos habitantes da região e a aquisição dos imóveis por parte da Braskem deixará o caminho livre para que, caso as movimentações do solo estabilizem, a empresa utilize a área para construção de empreendimentos imobiliários, haja vista o potencial lucrativo para esse segmento.

“Posso até estar errado, mas desde quando isso aconteceu que vem no meu pensamento que nada ali vai afundar. Se afundar é onde está a mina. Eles querem tirar as pessoas dali para construir condomínio de luxo no futuro. Lá é terra de Djavan, de jogador conhecido, fica perto do Centro, perto da praia, paisagem bonita”, argumenta.

A hipótese é recebida com repulsa pelos moradores, que, nas palavras de Beroaldo, consideram “um absurdo presentear a Braskem com as áreas que ela mesma destruiu”. De acordo com especialistas, no entanto, o palpite tem fundamento.

É o que pontua a arquiteta e urbanista Caroline Gonçalves, que é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal): “É comum que surjam essas teorias do que vai vir a ser a área, e não diria que isso é possível em um curto prazo, inclusive há um acordo que diz que eles não podem construir para fins comerciais, residenciais”.

Aérea ocupada pela mina 18 antes do rompimento. (Foto: Instituto de Meio Ambiente de Alagoas)
Foto: Instituto de Meio Ambiente de Alagoas Aérea ocupada pela mina 18 antes do rompimento.

Ela cita uma determinação do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA-AL) e do Conselho Estadual de Proteção Ambiental (Cepram) que corrobora com a afirmação de que a Braskem será, de fato, proprietária dos bairros destruídos pela mineração.

Para ativistas dos direitos à cidade, o documento, que é uma condicionante para licença de operação e exige que a mineradora construa, nos bairros destruídos pela extração de sal-gema, uma Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN), termina por legitimar o termo de acordo que deu posse à empresa sobre todos os imóveis desocupados em razão do afundamento de solo.

A publicação define que a finalidade do documento é proibir qualquer atividade comercial na área situada no mapa de risco, com o objetivo de “permitir que a vegetação ocupe toda a área, criando, assim, uma unidade de conservação”.

“Porém, o que acontece é que tem um ‘salvo se houver estabilização do solo’, que não é o que a gente vislumbra agora, mas é o que se espera. E como a gente está sem Plano Diretor atualizado, era pra ter sido revisado em 2015 e ainda não foi, não tem como garantir que isso não se concretize”, sinaliza.

 

 

Entre a mineração que rende milhões e a iminência de um desastre

A pouco mais de uma hora de distância de Maceió, uma pequena cidade na bacia do rio São Francisco vivencia o que classifica como a iminência de um desastre.

Em Craíbas, a mineração de cobre, o terceiro metal mais utilizado no mundo, rende milhões à empresa Vale Verde, dona da maior barragem de rejeitos já construída em Alagoas — estrutura que tem acesso a calhas de rios temporários que desaguam no Velho Chico.

Dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) mostram que o município é o que possui a maior arrecadação do estado, com uma atividade que rendeu R$ 18,5 milhões somente em 2023.

A planta de beneficiamento da MVV abriga equipamentos dos processos de britagem, moagem, flotação e filtragem(Foto: Ministério de Minas e Energia/Divulgação)
Foto: Ministério de Minas e Energia/Divulgação A planta de beneficiamento da MVV abriga equipamentos dos processos de britagem, moagem, flotação e filtragem

A produção do concentrado de cobre na mina a céu aberto é direcionada à exportação do minério, principalmente, para o mercado asiático. Com vida útil estimada em cerca de 14 anos, o local lavra aproximadamente 4,1 milhões de toneladas por ano.

Mas os números positivos do lucro com essa exploração mascaram os impactos socioambientais negativos que são percebidos pelos craibenses, a começar pelo fato de que esse dinheiro não retorna em melhorias para eles.

É o que relata Tancredo Barbosa, que é morador da zona rural de Craíbas e membro da Associação de Desenvolvimento Sustentável (ADS): “Nós aqui das áreas diretamente afetadas moramos a 100 metros da área de mineração e estamos lutando para que um novo crime não aconteça”.

O cobre, que é encontrado na natureza em estado sólido, é o 3º metal mais utilizado no mundo, perdendo apenas para o ferro e o alumínio(Foto: Mineração Vale Verde/Divulgação)
Foto: Mineração Vale Verde/Divulgação O cobre, que é encontrado na natureza em estado sólido, é o 3º metal mais utilizado no mundo, perdendo apenas para o ferro e o alumínio

Ele explica que as explosões provocadas pela mineradora para a extração do cobre têm causado rachaduras nas casas e até em escolas da região, que fica próxima à mina Serrote. Além disso, existem efeitos causados pelos ruídos, poeira e até mesmo resíduos das operações na região.

Na opinião de Tancredo, o caso Braskem tem semelhanças com o que acontece em Craíbas: “São três coisas em comum: a questão do relato dos moradores, dizendo que existem problemas; as empresas dizendo que não existe problema nenhum, que tudo está sendo feito dentro dos parâmetros e técnicas, que não há perigo nem preocupação; e a omissão dos entes públicos, porque se eu tenho pessoas relatando e órgãos competentes para verificar, por que eles não fazem isso?”.

A exemplo dele, a própria população tem se mobilizado para buscar um acompanhamento maior dos efeitos das explosões que, segundo a empresa, “são controladas e acontecem, preferencialmente, uma vez por semana, seguindo padrões internacionais de controle”.

“Antes as explosões eram só às quintas-feiras, hoje as explosões são às terças e quintas, daqui a pouco as explosões vão ser quatro dias por semana, depois todos os dias eles precisam produzir. Agora dizer que nós temos que aguentar todo esse tempo, todo esse problema, 24 horas de barulho? Porque eles não param, não tem feriado, não tem domingo, não tem madrugada. O barulho é constante”, relata.

“A gente tem casos de gente que mora lá, tinha sete tarefas de terra e pelo assoreamento ele só consegue plantar uma tarefa e meia. Ou seja, perdeu completamente onde tinha o recurso, onde trabalhava com fumo, com agricultura familiar”, destaca.

Tancredo grifa: “Nós não vamos esperar que a desgraça aconteça para buscar efetivamente alguma coisa, não vamos deixar que uma empresa de orçamento bilionário descambe para algo que seja irreversível”.

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

O que você achou desse conteúdo?

Os riscos da exploração mineral

A partir da tragédia de Maceió, que está causando o afundamento de parte da capital alagoana, OP+ traz conteúdo sobre a atividade da mineração