“Qual o risco de ele ficar em casa sozinho?”: foi essa a pergunta que Luciana Gonçalves, 39, mãe de uma criança de 5 anos, ouviu de um médico que se recusou a dar um atestado para que ela pudesse justificar a ausência no trabalho.
A mulher é porteira e trabalha cerca de 12 horas por dia, mas precisou se ausentar da função para levar o filho com 39 graus de febre e sintomas gripais à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Cambé, no Paraná. Sem acreditar, Luciana retrucou: “Eu nunca deixei ele sozinho. Uma criança de 5 anos pode ficar sozinha por 12 horas em casa?”.
O caso aconteceu em maio e repercutiu graças ao vídeo que a mãe fez da conversa com o profissional de saúde. Como consequência, ele foi afastado e a prefeitura abriu um processo de sindicância para apurar se houve algum tipo de fraude na contratação. Além disso, o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM/PR) instaurou um procedimento para investigar a conduta do médico.
Luciana não tinha plano B; precisava se afastar do serviço para cuidar do filho.
Assim como ela, todos os dias milhares de mães brasileiras lidam sozinhas com os desafios da maternidade — e se veem desamparadas quando mais precisam de apoio para dar conta dos papéis atribuídos quase que exclusivamente a elas.
Demissões pós-licença, desigualdade salarial e enormes dificuldades na conciliação entre cuidado e trabalho produtivo já são temas antigos e vividos por mulheres nos quatro cantos do Brasil.
Também não é novidade que a maternidade se apresenta como um dos maiores obstáculos para o acesso ao trabalho e renda das mulheres no País.
Foram anos de luta para que elas provassem que a dedicação aos afazeres domésticos e cuidados com pessoas não são funções naturais ou aptidões estritamente femininas.
Mas se uma geração conseguiu ingressar no mercado de trabalho em maior peso, outra assumiu o ônus das duplas ou triplas jornadas e a seguinte, por sua vez, agora se depara com duas realidades desiguais.
De um lado, mulheres que conseguiram estabilidade financeira e podem pagar escolas, creches e cuidadoras; de outro, mulheres que se inserem em atividades precarizadas e têm dificuldade de se manter no mercado em virtude de questões como a baixa renda, a ausência de equipamentos necessários para viabilizar o cuidado com a família e a falta de políticas públicas que atendam às suas necessidades.
Nesse último caso, essas mulheres terminam por retornar para casa — um retrocesso que põe em xeque todo o esforço feito para avançar na garantia de direitos femininos no Brasil e no mundo ao longo da história.
Um estudo inédito do Centro do Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made/USP) sobre o custo da maternidade no Brasil mostra que mais de 11 milhões de mulheres (6,8 milhões negras e 4,3 milhões brancas) ficaram fora da força de trabalho em 2022 para cuidar dos filhos e da casa — apesar de desejarem estar no mercado.
O impacto na produtividade do País é evidente: segundo especialistas, se essas 11,1 milhões conseguissem permanecer, a força de trabalho aumentaria em torno de 10% — num país que passou a envelhecer mais e cuja população deve parar de crescer ainda no fim dessa década.
Em entrevista ao O POVO+, a economista Amanda Resende, uma das responsáveis pela pesquisa, lembra que “o trabalho de cuidado não remunerado é indispensável para a própria dinâmica do mercado continuar operando”.
“Sem ele, o mercado pararia de funcionar. Esse trabalho é o que garante a reprodução intergeracional, a manutenção da vida humana tanto em termos físicos quanto sociais, é o que faz as crianças se tornarem cidadãs, pessoas educadas e capazes de vender sua força de trabalho no mercado”, ressalta.
Abordar essa questão e evidenciar os prejuízos econômicos que esse cenário gera, segundo a economista, “é dar importância à indispensabilidade do trabalho não remunerado de diversos tipos”. O efeito, ressalta ela, é coletivo: “Toda a sociedade se beneficia do fato das crianças terem um bom desenvolvimento e cuidado”.
Resende menciona outro estudo recente que ajudou a construir: a NPE 54, que apresenta um Indicador de Infraestrutura Social de Cuidado (IISC) elaborado para demonstrar caminhos possíveis de resolução do problema.
O cuidado é o maior subsídio à economia
A economista aponta que “existem muitas confluências entre esses dois estudos, porque enquanto o primeiro evidencia um problema e dá o diagnóstico da questão grave que é o alto custo da maternidade no Brasil, o outro tenta remediar e atenuar essas desigualdades”.
O trabalho de cuidado envolve dedicação de muitas horas. Acompanhe:
“Mostram, por exemplo, que a oferta de serviços de cuidado pelo Estado garantiria uma rede ampliada para lidar com a escassez de serviços de cuidado que sobrecarrega as mulheres, em particular as mães. Isso é necessário especialmente para a população de baixa renda, que não pode arcar com os custos da terceirização desses serviços”, destaca.
Com a transição demográfica e o envelhecimento da população, de acordo com a pesquisadora do Made, a necessidade do cuidado para pessoas idosas vai demandar uma carga que muito provavelmente recairá sobre as mulheres, dado o papel social direcionado a elas pelo viés do gênero.
Diante da discussão recente sobre o aborto com o PL 1904/2024, projeto de lei que equipara a interrupção voluntária da gravidez ao crime de homicídio, a economista observa uma relação entre a liberdade da mulher sobre o próprio corpo e esse trabalho invisibilizado de modo geral.
Bingo da mãe exausta
“A autonomia da mulher para decidir sobre seu próprio corpo é um dos caminhos para garantir que o trabalho de cuidado não remunerado e toda a desigualdade atrelada a ele, como a pobreza de renda e de tempo, sejam eventualmente extintos. A maternidade voluntária e planejada é um caminho para reduzir as desigualdades sociais de forma mais ampla”, acredita.
Na opinião da pesquisadora, “se uma mulher não quer ter um filho, ela não tem condições de criar um filho. Vai ser muito difícil para ela garantir condições adequadas para que essas crianças se desenvolvam, tenham bem-estar e possam, no futuro, superar a condição de pobreza das mães”.
Resende também comentou sobre a perda recente de Maria Conceição Tavares, economista que se tornou referência e orientou o debate público a respeito de diversas questões relacionadas à economia que ajudam a entender o Brasil.
“Ela tem muito a ensinar para nós e para as próximas gerações, porque a luta dela era por um Brasil mais justo, igualitário e equânime que reconhecesse o direito dos trabalhadores, de uma distribuição de renda mais justa para o crescimento econômico e para a manutenção do bem-estar da sociedade, já que os objetivos de um economista não devem ser apenas olhar para a eficiência econômica, mas sim para a justiça distributiva”, sublinha.
Nesse sentido, salienta ela, “historicamente a análise econômica tem se centrado no que é monetizado, então busca analisar relações de produção que se dão no âmbito do mercado. Isso acaba ocultando a importância do trabalho não remunerado”.
“Um grande componente do trabalho de cuidado se dá no núcleo familiar, e isso acaba ocultando sua relevância econômica. Ele não está expresso no PIB e a gente sabe que a análise econômica tradicional é, em grande medida, baseada no PIB e no interesse na observação do crescimento econômico com base no Produto Interno Bruto”, enfatiza.
Se o trabalho de cuidado foi invisibilizado desde o nascimento da economia, que o considera uma atividade sem valor para a esfera econômica, um esforço de pesquisadoras, economistas e especialistas surge para fazer um dimensionamento que ajude a reverter esse quadro.
Isso porque através da demarcação da geração, provisão e dos impactos macro, meso e microinstitucionais dos sistemas de cuidado, seja no âmbito individual, familiar ou coletivo, se tornará possível mensurar o peso que o trabalho de cuidado possui na economia enquanto atividade humana.
No Ceará, uma iniciativa inédita da Secretaria do Trabalho (SET) financiada pela Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa (Funcap) tem realizado um diagnóstico do trabalho de cuidado na comunidade do Lagamar, na periferia de Fortaleza — um projeto piloto que deve ser expandido para outras localidades da Cidade.
De acordo com a professora Jacqueline Franco, coordenadora do programa Cientista-Chefe do Trabalho, um dos principais objetivos dessa ação é construir o Observatório de Políticas Públicas do Trabalho do Estado do Ceará.
“Esse é um projeto de busca ativa vai investigar as pessoas que trabalham cuidando de outras pessoas. A gente considera muitas delas invisíveis na economia, porque há um grande número de cuidadores. São pessoas que abriram mão dos seus trabalhos, das suas vidas, do lazer para cuidar de outra pessoa”, pontua.
Conforme a professora, o local escolhido para a pesquisa piloto foi a comunidade do Lagamar, na periferia de Fortaleza, “por suas características socioeconômicas e por concentrar muitos desses cuidadores que são esquecidos pela parte formal da economia e que muitas vezes não têm nenhuma fonte de renda”.
Já a professora Ana Maria Fontenele, que coordena o projeto, explica que a ideia surgiu “como fruto de um debate sobre o que fazer para amenizar o trabalho de cuidado, a fim de que ele não recaia exclusivamente sobre as mães e as filhas”.
“As pessoas só saem para trabalhar porque tem alguém cuidando de outras pessoas que dependem de cuidados, sejam crianças, bebês, adolescentes, idosos, pessoas enfermas. Imagina se isso não existisse?”, coloca.
Na aplicação dos questionários dentro da comunidade, Fontenele observa que “são pessoas que, dentro da relação familiar, não são escolhidas, mas na maioria das vezes são impostas a elas esse trabalho”.
“E a gente percebe que essa é uma tarefa que carrega muita emoção. Ao mesmo tempo em que aquela mulher compreende que é essencial para a vida daquela pessoa que depende do cuidado dela, se sente aprisionada por esse dever”, relata.
Fontenele segue: “nosso objetivo é identificar possíveis saídas para isso. Uma remuneração para que aquela pessoa que cuida possa exercer dentro da sua própria residência, por exemplo. É considerar a pessoa cuidadora em si, com suas necessidades e seus anseios”.
A iniciativa deve seguir para outros bairros periféricos como Bom Jardim, Canindezinho, Messejana, Conjunto Palmeiras e Barra do Ceará.
“A pobreza aumenta a dor”, afirma a docente do curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (Feaac/UFC).
“A gente tem momentos de roda de conversa sobre saúde mental em que as pessoas se desmancham de emoção ao relatar o cotidiano delas. Mas mesmo com todas as precariedades, essas mulheres são a base para a sociedade funcionar”, finaliza.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Reportagens com dois episódios aborda o trabalho e cuidado não remunerado que, majoritariamente, é relegado às mulheres no Brasil