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Como é ser mãe cientista na pandemia
Reportagem Seriada

Como é ser mãe cientista na pandemia

Levantamento do Parent in Science demonstrou que pesquisadoras com filhos viram uma redução na produção científica durante a pandemia. Três cientistas compartilham suas experiências com a maternidade e a produção científica durante a pandemia de Covid-19 no Brasil
Episódio 2

Como é ser mãe cientista na pandemia

Levantamento do Parent in Science demonstrou que pesquisadoras com filhos viram uma redução na produção científica durante a pandemia. Três cientistas compartilham suas experiências com a maternidade e a produção científica durante a pandemia de Covid-19 no Brasil
Episódio 2
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― Então, me conta um pouco sobre a sua pesquisa e como é sua rotina de trabalho.

Não é preciso perguntar muito. As entrevistadas começam pelas graduações, chegam aos mestrados e doutorados e desandam a compartilhar todos os obstáculos e mal-olhados que viveram ao engravidar e terem filhos durante a pós-graduação. Os relatos são cheios de “eu amo pesquisar” seguidos de “mas a academia não acolhe mães” cientistas. Pior: a academia as condena.

E durante a pandemia, as mães viram a encruzilhada apertar ainda mais. Confinadas em casa, afastadas da rede de apoio (quando existente) e sobrecarregadas com as tarefas domésticas e dos filhos ― socialmente incubidas às mulheres ―, o tempo para produção científica ficou quase nulo.

Esse cenário foi evidenciado pelo levantamento da Parent in Science, um grupo formado por mães e pais cientistas que discutem a parentalidade na ciência. De acordo com a pesquisa Produtividade acadêmica durante a pandemia: Efeitos de gênero, raça e parentalidade, mães brasileiras viram a produção cair. Apenas 47,4% das professoras e pesquisadoras conseguiram submeter artigos científicos como planejado durante a pandemia, por exemplo.

 

Docentes que durante a pandemia...

 

Quem se viu na dificuldade de cumprir prazos foi a geógrafa Adryane Gorayeb, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e, até julho de 2021, coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento e Cartografia Social (Labocart/UFC). Mãe de duas meninas, de nove e treze anos, Adryane ainda está escrevendo e corrigindo artigos que deveriam ser entregues em fevereiro e em outubro de 2021.

“Eu passei o intervalo entre o Natal e o Ano Novo, até o dia primeiro, inclusive, trabalhando. A gente tem uma quantidade de trabalho acumulado muito grande”, comenta. Além da produção científica, ela como coordenadora está responsável pela administração do laboratório, um trabalho que “nunca para”. "Também dando aula na graduação e na pós, a gente também tem as demandas dos alunos de correções e de aulas, né?”, relembra.

Adryane com as filhas, Clarissa (9) e Iara (13).(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Adryane com as filhas, Clarissa (9) e Iara (13).

Mães e pais se viram responsáveis por atividades que, em tempos normais, podiam ser terceirizadas em alguns momentos: as escolas cuidam das crianças durante parte do dia, permitindo que a maior atenção dos pais estejam nos trabalhos. Em famílias com mais poder aquisitivo, babás e trabalhadoras domésticas auxiliavam na atenção dos filhos e no cuidado com a arrumação da casa.

Mas no momento em que as escolas fecham e as famílias precisam se isolar, todo esse trabalho pesa principalmente nas mães. Elas são incumbidas de administrar a casa, zelar pelos filhos e acompanhá-los no ensino virtual. Tudo adicionado ao trabalho extra que a pandemia exigiu dos professores.

“Eu passei a pandemia toda como coordenadora da pós-graduação. Eu fiz a conta do YouTube da pós-graduação, coloquei playlists de todos os professores, fizemos eventos virtuais… Nós começamos com umas três pessoas inscritas e agora temos umas 1.500 pessoas. Além disso, nós criamos também o perfil da pós-graduação no Instagram, que até hoje sou eu que gerencio. Enfim, eu tive que aprender a trabalhar pelo Google Meet, tive que refazer todas as minhas disciplinas… Foi meio pesado nesse sentido”, conta a professora.

 

 

Enquanto tudo isso acontecia na universidade, Adryane virou a única provedora da casa. O marido é autônomo e os efeitos econômicos da pandemia zeraram a possibilidade de contribuição dele. “Eu também oriento doutorado, mestrado, desenvolvo pesquisas, tenho reuniões com parceiros internacionais… Então o dia ficou bem caótico e comecei a trabalhar tipo 12, 14 horas por dia, facilmente.”

A rotina da casa virou acordar seis da manhã e ir dormir lá pelas três da madrugada. Adryane cuidando da organização e limpeza da casa. O marido, pelas atividades mais pesadas e a alimentação. No meio de tudo, a atenção com a educação das meninas: o pai acompanhava as provas e envio de tarefas online, enquanto a mãe estava atenta às formalidades com a escola.

 

 

O terror da pandemia e as cobranças irreais

Sylene Ruiz, 42 anos, perdeu muito na pandemia. Ela é a irmã mais nova de oito irmãos. Dois deles, de 45 e 49 anos, contraíram a Covid-19 e foram internados. Depois, nos dias 31 de março e no dia 12 de abril de 2020, eles morreram vítimas da doença. O pai, de 82, também chegou a ir para a UTI, entubado… Tudo enquanto Sylene se preparava para a qualificação do doutorado em Sociologia na Universidade Estadual do Ceará (Uece), em fevereiro.

 

"Eu senti como se tivesse feito a pior coisa do mundo ao decidir engravidar." Sylene Ruiz, doutoranda em Sociologia

 

“Foi muito assustador. E o mais assustador ainda foi ver a insensibilidade das pessoas”, relata. Ela entrou na pandemia como “recém-mãe”, já que o filho Bento tinha apenas 4 meses de idade. Quando ela anunciou a gravidez (muitíssimo desejada) no doutorado, Sylene disse ter percebido o impacto da não-receptividade dos colegas. “As pessoas disseram que eu tinha acabado com a minha pesquisa”, relembra. “Eu senti como se tivesse feito a pior coisa do mundo ao decidir engravidar.”

“Ser mãe dentro da academia é três vezes mais difícil”, determina, recordando de como foi desencorajada a manter um doutorado sanduíche na Universidade de Lyon, na França, só porque tinha engravidado. Ela já tinha até conseguido a bolsa de custo para seguir adiante, mas com a falta de acolhimento adicionada à impossibilidade de viajar na pandemia, Sylene desistiu da oportunidade.

Sylene e seu filho, Bento.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Sylene e seu filho, Bento.

Além disso, ela também conta como sequer tem sido cogitada para participar de grupos de pesquisa ou produção de artigos científicos, por acreditarem que ela não daria conta. “A maioria dos doutorandos são homens, um ou dois já defenderam. E o que eles viviam falando no grupo do WhatsApp era: ‘Vamos aproveitar que a gente está dentro de casa para publicar’”, descreve, explicando logo em seguida que saiu do grupo por não suportar mais discursos do tipo.

Afinal, o peso da maternidade e das tarefas domésticas foi tanto (mesmo dividindo com o marido) que Sylene não conseguiu publicar nenhum artigo em 2021. A tese sobre a produção de café em Baturité também ficou em suspenso, já que era impossível fazer as viagens de campo. Somente em novembro de 2021 ela pode retomar a pesquisa: foram os quatro sábados de novembro e dezembro indo para a serra às 5 da manhã e voltando às 16h. “Foi bem pesado, ainda está sendo. Fiz 20 entrevistas, mas ainda não consegui transcrever nenhuma.”

 

Pós-doutorandos que durante a pandemia...

 

Assistir às aulas com o bebê chorando? Complicado. Participar das palestras de duas ou quatro horas de duração após noites mal dormidas? Não tem quem aguente. O fato do marido também trabalhar praticamente todo o dia agravou ainda mais o cenário. Aliás, esse é outro ponto: antes da pandemia, Sylene era professora substituta na Uece e também atuou como docente na Universidade de Fortaleza (Unifor). Mas a crise sanitária custou os empregos, e ela não tinha bolsa.

"Geralmente estudo assim", descreve Sylene, segurando Bento.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal "Geralmente estudo assim", descreve Sylene, segurando Bento.

“E é aí que tá. Ele não podia largar o trabalho dele. Eu parei o meu”, destaca. Não é que o marido não faça nada em casa, inclusive ele ficou responsável pela alimentação de todos. Mas mesmo assim, existe a carga mental que a maioria das mulheres enfrentam.

Imagine que você é uma mulher e tem um marido. O marido diz que vai dormir, sobe a escada e dorme de fato. Você diz que vai em seguida. Mas ao levantar do sofá, vê os brinquedos do filho jogados no chão e os organiza. Ao subir as escadas, percebe que algumas roupas estão fora do cesto de roupa suja… Ah! Precisa comprar sabão em pó, melhor anotar isso logo. E assim segue, a mulher faz todas as tarefas que aparecem… E duas horas depois deita para dormir. Fecha os olhos, mas a mente continua fazendo listas de supermercado, lembretes de cuidados com o filho e repassando a agenda da universidade. Isso é carga mental.

“Parecia que eu tava numa guerra”, suspira ao contar dos desafios de estudar, pesquisar e ver familiares, amigos e conhecidos morrendo pela Covid-19. “Desenvolvi síndrome do pânico, precisei tomar remédio controlado. Mas encontrei refúgio na arte: eu precisava cuidar de mim, porque, caso contrário, não conseguiria cuidar do meu filho, nem do meu marido.”

 

 
No episódio 2: Mulheres raramente são laureadas por prêmios científicos, apesar de representarem mais da metade dos cientistas. Como solucionar isso?

Esta série de reportagem é vencedora do 5ª do Prêmio Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) de Jornalismo

  • Edição Fátima Sudário
  • Texto e recursos digitais Catalina Leite
  • Identidade visual Isac Bernardo
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