As cortinas do Teatro Carlos Gomes sobem, e centenas de pessoas assistem à mesma cena: no palco, há um homem de cadeira de rodas, uma idosa sentada em uma poltrona enrolando um pano de forma compulsiva e uma estranha menina de vestido curto sentada na escada. O paraplégico, então, grita com sua empregada para descobrir qualquer possibilidade de traição de sua esposa.
Na primeira encenação de “A Mulher Sem Pecado”, escrita em 1941, mas interpretada pela primeira vez no Rio de Janeiro no ano seguinte, Nelson Rodrigues (1912 - 1980) já mostrava as características que iriam percorrer todos os seus textos.
O ciúme excessivo, a deslealdade, a volúpia feminina e a obsessão no contexto da classe média brasileira viriam a se tornar temáticas recorrentes. Seriam esses assuntos os motivos para tensões até hoje infindáveis. Mas, naquele primeiro dia de exibição, o dramaturgo sentia que nada daquilo chocava o público. Ele escutava somente o som incessante de tosses desinteressadas.
"Eu não era ainda um autor no ensaio geral. Foi preciso que, de repente, o público invadisse o teatro. Naquele momento, descobri uma verdade jamais suspeitada: - o teatro é a menos criada das artes, a mais incriada das artes"
“Não foi um original que me fez autor; nem a representação, nem o décor. Eu não era ainda um autor no ensaio geral. Foi preciso que, de repente, o público invadisse o teatro. Lembro-me de uma senhora gorda, de chapéu, e que entrou comendo pipocas. Naquele momento, descobri uma verdade jamais suspeitada: - o teatro é a menos criada das artes, a mais incriada das artes”, reflete sobre suas memórias daquela experiência. Quando escreveu “As roedoras de pipoca” em sua famosa coluna “As Confissões de Nelson Rodrigues”, publicada pelo O POVO em 20 de outubro de 1972, o teatrólogo mostrava as inquietações de sua estreia. As reações que esperava que os espectadores tivessem não aconteceram.
“No meio do segundo ato, estava mais do que nunca convencido de que é o público que faz do teatro uma arte bastarda, uma falsa arte. Comecei a imaginar uma representação utópica, ideal, para cadeiras vazias. Só seria autor, ou atriz, ou ator aquele que estivesse disposto a trabalhar para ninguém”, relata. Estava ansioso, considerava-se um chato. Foi apenas na última cena que todos ficaram em silêncio. “A surpresa geral deu-me uma satisfação maligna. Houve no teatro um momento sem tosse. Alcei à fronte, e o que me humilhou é que ninguém por perto viu em mim o autor. Imbecis. Imbecis”, continua.
"Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte.Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outro, o menos inteligente dos seres”."
Naquele dia, chegou à conclusão: “Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte. Está só, espantosamente só, com o soneto, o romance ou o texto dramático. Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outro, o menos inteligente dos seres”. Quando saiu do teatro e estava no caminho para casa, já idealizava a estrutura para sua próxima peça, “Vestido de Noiva” (1943), que o consagraria na cena artística.
“O estilo apresentado pelo autor em sua primeira peça parece ser embrionário em vários sentidos, mas certamente já revela consigo o que seria aprofundado nas peças seguintes: o trabalho com o inconsciente dos personagens, abordado também de forma estrutural nas peças, sendo intimamente relacionado ao tempo e espaço das suas tramas”, explica Ariela Fernandes Sales, doutoranda em Letras e autora da dissertação “Tragédia, melodrama e fait divers em ‘A Mulher Sem Pecado’, de Nelson Rodrigues” (2014).
Entretanto, a exploração do subconsciente não é a única característica que já estava presente. A temática amorosa, por exemplo, está explícita desde a primeira cena. “Em meio a todas as peças de Rodrigues destaco o apreço que ele tem pela temática amorosa. E ela acaba se ramificando em temas correlatos na feitura do seu teatro polêmico: o amor que possui ciúmes, traição, loucura ou o que hoje, no nosso contexto, chamaríamos de relacionamentos abusivos”, comenta a pesquisadora. Traços destas questões também podem ser percebidas nas obras posteriores, como “Perdoa-me por me Traíres” (1957) e “O Beijo no Asfalto” (1960).
Mesmo com particularidades que ainda iriam se fortalecer em seus outros textos, a primeira encenação bastou para causar sentimentos dúbios entre os espectadores. “De alguma maneira, ele pede que você se projete. Existe um deboche ‘rodriguiano’ e um conceito universal. Ele sabe que a junção desses dois elementos faz com que a gente possa ter um olhar mais comum, de classe média, com um olhar de grandeza”, elucida o diretor de teatro Marco Antônio Braz, que montou várias peças do dramaturgo durante sua carreira.
Nenhuma reação que o público teve durante “A Mulher Sem Pecado” aconteceu como Nelson Rodrigues imaginava. “Comendo pão com manteiga, eu pensava: - ‘O teatro não existe. O que existe é a plateia.’ E depois, enxugando a boca com o guardanapo de papel, concluía: - O teatro morreu antes de nascer”. Após analisar a repercussão, percebeu que as obras teatrais não eram formadas pela visão do autor, mas, sim, pela perspectiva do público. As pessoas que assistem são os únicos responsáveis pela construção do espetáculo.
Na opinião do dramaturgo pernambucano, seus textos teatrais não merecem estar no mesmo patamar de desentendimento que os clássicos: “A minha obra teatral tem sido marcada pela incompreensão. Como autor dramático, sou aplaudido por equívoco e vaiado também por equívoco. Dirá o leitor, que é um simples, um ingênuo: - ‘Mas isso é literatura!’. Não nego e explico: - faço literatura, porque é meu ganha-pão. E se não a fizer, morro de fome. Mas não é isso o que eu ia dizer. Ia explicar que não mereço uma incompreensão que o mundo reserva para os gênios e não para um autor medíocre como eu.”
Em “A Mulher Sem Pecado” (1942), Olegário é um homem obcecado pela ideia de que sua esposa já cometeu uma traição. Acredita nisso porque ele teria a mesma utilidade que um morto: nenhuma. Na sua visão, ninguém poderia permanecer fiel a um marido de cadeira de rodas. Dois anos depois, quando escreve “Vestido de Noiva” (1943), apresenta a jovem Alaíde, que foi atropelada por um automóvel. Encontra-se presa entre dois mundos - o real e o espiritual -, e relembra seus relacionamentos com a irmã, Lúcia, e o namorado, Pedro.
"Você sempre tem uma história de amor e morte. Toda obra dele é assim. Já de cara, em um primeiro contato, isso se torna muito evidente"
Já em “Álbum de Família”, escrita em 1945 e censurada por mais de duas décadas, um núcleo familiar compartilha relações incestuosas, ao mesmo tempo que são cruzados pela tragédia. Em todos esses textos e nos outros 14 que produziu, há sempre uma conexão entre o amor e a morte. “Você sempre tem uma história de amor e morte. Toda obra dele é assim. Já de cara, em um primeiro contato, isso se torna muito evidente”, indica Marco Antônio Braz.
O próprio autor definia suas histórias de maneira semelhante. “Um dia, não sei quem pediu-me uma definição do meu teatro. Pensei, pensei e acabei respondendo que meu teatro, todo meu teatro, era uma meditação sobre o amor e sobre a morte. A pessoa não entendeu e quis que eu fosse mais preciso e mais prolixo. Insisti em que entendia pouco, muito pouco, de minhas peças”, revela em “Notas sobre Guimarães Rosa”, da coluna “As Confissões de Nelson Rodrigues”, publicado pelo O POVO em 15 de setembro de 1972.
A estrutura das narrativa era diferente, mas sempre retornava aos mesmos assuntos. “Tem um titulo que ele dava a si mesmo, que era ‘Flor de obsessão’. Voltava a determinados temas, como a morte, o amor, o sexo, ter que matar ou se matar…”, diz o dramaturgo Ricardo Guilherme. Para ele, Nelson era um defensor do amor verdadeiro. “Ele era um romântico, um utópico, no sentido de acreditar no amor eterno. Ele representa a luta que o homem vive para superar sua condição de humano. Ele busca um homem extra-humano, que transcenda a humanidade”, reflete.
“Se me perguntarem o que sou, direi, direi, alçando a fronte: - ‘Contador de histórias’. Gosto das que eu faço e das que os outros fazem. Sou uma espécie de santo dos chatos. ‘Como assim?’, perguntarão vocês. Porque os trato com infinita paciência. Não sei se me farei entender. Os chatos têm sempre história que os outros acham horrendas e que eu acho lindas. Não faço por menos: - lindas. Gosto de todas as histórias, como disse, mas ainda prefiro as de amor”, relata no texto “Pequenas histórias de amor”, divulgado no O POVO em 10 de outubro de 1972.
"Nelson era muito passional e tinha uma ligação forte com a música. E o irmão também tinha essa pintura permeada pelas tintas mais fortes, pelo expressionismo."
E, no teatro de Nelson Rodrigues, o que é amor sem a iminência da morte? Suas histórias sempre beiram a tragédia. Em “Valsa Nº6” (1951), por exemplo, mostra uma adolescente que foi assassinada e que luta para reconstruir as memórias anteriores. “Em suas obras, ele resgata muito esse instante em que o mundo agoniza, esse limiar entre a vida e a morte, para a criação teatral dele”, explica a escritora, dramaturga e pesquisadora, Priscila Gontijo, que escreveu a dissertação “Vozes dissonantes em Vestido de Noiva e Valsa Nº6 de Nelson Rodrigues e a proposta de criação de um romance dramático” (2018).
"Trabalhava como jornalista, entrevistava assassinos, viu a gripe espanhola. Ele era muito impressionado pela morte. É possível perceber esse limiar entre a vida e a morte no sentido artístico e na obra dele"
Jornalista desde a adolescência, ele se inspirava nas características expressionistas do irmão e ilustrador, Roberto Rodrigues. “Nelson era muito passional e tinha uma ligação forte com a música. E o irmão também tinha essa pintura permeada pelas tintas mais fortes, pelo expressionismo. Com essa convivência em casa, acho que ele, ainda menino, foi acendendo para sua obra”, opina a pesquisadora.
Segundo a autora, essa característica trágica é uma das consequências de sua vida pessoal. Em 1929, o dramaturgo presencia seu irmão ser assassinado dentro da redação do jornal. Também enfrenta um longo período internado após ser acometido por tuberculose. “Ele viu muita gente morrer. Trabalhava como jornalista, entrevistava assassinos, viu a gripe espanhola. Ele era muito impressionado pela morte. É possível perceber esse limiar entre a vida e a morte no sentido artístico e na obra dele”, comenta.
“Eu já fui quase tudo em jornal. De 30 a 32 (época em que eu e minha família passamos fome) poderia ter sido contínuo. E hoje estaria batendo no peito, com cínica imodéstia: - ‘Sou um ex-contínuo! Sou um ex-contínuo! Mas, se não tive nenhuma experiência de portaria, tenho todas as de redação. Vejamos: - repórter de polícia, cronista esportivo, autor de histórias infantis, crítico teatral, redator político, folhetinista, diretor de revista policial, etc., etc.”, começa Nelson Rodrigues na crônica “A brotoeja da pálpebra”, publicada pelo O POVO no dia 24 de janeiro de 1973.
Desde que começou a trabalhar em jornais, o autor não parou. Como contista, um de seus maiores destaques foi sua coluna “A Vida Como Ela É…”, do periódico “Última Hora”. Nas histórias, recriava temas que já lhe eram costumeiros: o ciúmes, o problema da fidelidade, a moralidade, as relações sexuais e o amor na classe média carioca. Também escreveu de forma periódica os textos de “Pouco Amor Não é Amor”. A obra, que terá nova edição lançada pela Nova Fronteira ainda em 2021, demonstra parte de suas experiências como jornalista policial.
Em suas crônicas, costumava falar de situações que vivia no cotidiano. “Ele não se furtava a publicar suas opiniões sobre política, sociedade, comportamento, cultura, mesmo que muitas vezes fossem radicais ou polêmicas, mesmo que batessem de frente com o pensamento de intelectuais e da classe artística, expondo a hipocrisia que via em vários setores da sociedade”, afirma Janaína Senna, editora da Nova Fronteira.
Nelson Rodrigues também escreveu romances e folhetins. “Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados”, por exemplo, consagrou uma personagem na literatura nacional e atraiu milhares de leitores durante sua publicação em 1959. , ao mesmo tempo em que é capaz de fazer de conta que não vê os maiores horrores e colocar os interesses pessoais à frente de qualquer outra coisa”, comenta Raquel Cozer, diretora editorial da HarperCollins, que irá publicar todos os romances do autor.
"Se eu fosse mais importante e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse assim, mais ou menos assim: - NELSON RODRIGUES - Autor brasileiro, também conhecido por flor de obsessão etc. etc."
Essa obra extensa o consagrou na literatura e no teatro. Por isso, tornou-se um dos mais importantes teatrólogos brasileiros. Mas nenhuma dessas descrições são necessárias. Quando faleceu em 1980, já havia escrito como gostaria de ser definido em “A hediondez caça-níqueis”, divulgado pelo O POVO no dia 19 de janeiro de 1972: “Se eu fosse mais importante e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse assim, mais ou menos assim: - NELSON RODRIGUES - Autor brasileiro, também conhecido por flor de obsessão etc. etc.”
Especial aborda os 80 anos de 'A Mulher Sem Pecado', primeira peça do dramaturgo Nelson Rodrigues