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Quando Nelson Rodrigues explode a família brasileira
Reportagem Seriada

Quando Nelson Rodrigues explode a família brasileira

Ao enfrentar o conservadorismo brasileiro, Nelson Rodrigues coloca à luz temas silenciados por longos períodos, como o incesto, o estupro, o adultério e o racismo
Episódio 2

Quando Nelson Rodrigues explode a família brasileira

Ao enfrentar o conservadorismo brasileiro, Nelson Rodrigues coloca à luz temas silenciados por longos períodos, como o incesto, o estupro, o adultério e o racismo
Episódio 2
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Todos sabem o que é a família tradicional brasileira. Ela começou a ser construída no período colonial e está presente na formação de uma sociedade patriarcal no País. Tornou-se até hoje o símbolo da ordem. Virou uma representação da hierarquia presente nas relações sociais. Essa ideia, defendida por parte da população e por políticos conservadores, foi confrontada por Nelson Rodrigues ainda na década de 1930. Em suas histórias, o dramaturgo derruba as bases que sustentam o imaginário desse núcleo familiar.

 As narrativas do teatrólogo dialogam com o amor e a morte. Mas, dentro delas, evidencia o que a sociedade há muito tempo tenta esconder. São assuntos nebulosos, encobertos no cotidiano: o machismo, a violência psicológica, o estupro, o incesto, o adultério, o racismo, entre outros. “Nelson explode com a família tradicional no sentido mais absoluto da palavra, explode com a hipocrisia. Nos textos, a mulher trai e é feliz sendo adúltera. Você vê uma filha lésbica, um filho apaixonado pela mãe, um pai desejando a própria filha. Ele escancara o desejo que a gente não quer ver. É como se ele virasse nossas vísceras ao contrário e as colocasse à luz”, indica a dramaturga e pesquisadora Priscila Gontijo.

"Nelson Rodrigues sempre vai desagradar. O que ele fazia era muito forte: entrava em um local perigoso da alma, que as pessoas têm medo. Ele explodiu com a família brasileira, com esse Brasil superconservador. Ele desestabiliza o status quo" Priscila Gontijo, pesquisadora da obra de Nelson Rodrigues

 

O escritor revelava o que estava em um lugar oculto do inconsciente. “É muito complicado você ver seu lado sombra. Por isso, Nelson Rodrigues sempre vai desagradar. O que ele fazia era muito forte: entrava em um local perigoso da alma, que as pessoas têm medo. Ele explodiu com a família brasileira, com esse Brasil superconservador. Ele desestabiliza o status quo e joga um veneno nele”, explicita. “Com seus diálogos, ele deixava espaço para o não dito: as mazelas, as invejas, os ciúmes, os desejos. Em ‘Os Sete Gatinhos’, os personagens se matam, se agridem e se desejam. Quer algo mais proibido que o incesto? As pessoas até saíam no meio de suas peças, mas ele não tinha medo. Pelo contrário, quanto mais odiavam, mais ele ia a fundo”, ressalta Gontijo.

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Para o escritor e pesquisador de letras da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Moisés Monteiro de Melo Neto, o dramaturgo observa a sociedade e a desdobra em outra realidade. “Ele oferece uma catalisação em textos onde cada parte estilhaça o contexto do todo, recompondo-o em superposições alucinantes. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade, em ritmo frenético. A mãe erotizada, a tia virgem, o pai adúltero e pervertido, os jovens depravados, a entrega explosiva na reunião familiar, os preconceitos explícitos e implícitos. Tudo isso gira em um frenesi extasiante”, explica.

Segundo o professor, os textos de Nelson Rodrigues mergulham no inconsciente e se relacionam entre o real, o simbólico e o imaginário. “O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade. Nele, todos os humanos são iguais. O escritor busca essa raiz comum, dentre outras coisas, e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão”, afirma.

 

 

A representação da mulher no teatro de Nelson

 

Em “Perdoa-me por me traíres” (1957), Judite trai o marido, Gilberto, enquanto ele estava em um manicômio. Quando o homem retorna ao lar, descobre a situação. Mas, ao aceitá-la de novo e ter uma atitude compreensiva, o cunhado interna o irmão e a envenena. Em "Senhora dos Afogados” (1947), Dona Eduarda não está feliz com o marido. Por isso, rompe com a tradição da família e se envolve com o marido de sua filha. Moema, apaixonada pelo pai, induz o patriarca a matar a própria esposa. Já em a “Mulher Sem Pecado”, a personagem tem um destino mais positivo: decide fugir com o homem que não a respeita e abandona o marido obsessivo.

"As personagens mulheres têm um desejo muito forte. Nelson Rodrigues foi taxado de machista, mas, na leitura que eu faço, ele retrata o machismo da sociedade brasileira." Juliana Nascimento, atriz e diretora de teatro

 

Existe um padrão. “A mulher quer ter liberdade e o que a sociedade faz quando ela busca isso? Mata”, ressalta Juliana Nascimento, atriz, diretora e a professora de teatro da Universidade Federal de Fortaleza (UFC). “As personagens mulheres têm um desejo muito forte. Nelson Rodrigues foi taxado de machista, mas, na leitura que eu faço, ele retrata o machismo da sociedade brasileira. Ele coloca, nas personagens mulheres, a questão do desejo, da volúpia, da busca por uma vida sexual feliz”, pontua.

Em sua tese, “Composições dramatúrgicas das mulheres na obra de Nelson: violência e feminicídio no teatro rodrigueano”, a pesquisadora identifica a maneira como as mulheres são punidas a partir do teatro do dramaturgo. “No final da década de 1930, quando ele começa a escrever, e durante as décadas seguintes, as mulheres eram extremamente reprimidas. Suas personagens revelam esse desejo feminino, e é quando o autor denuncia o machismo brasileiro, porque elas são punidas por isso. Elas não podem falar sobre seu desejo ou são assassinadas”, ressalta.

 

“Ele retrata muito a relação com a honra, com o pudor. Revela como a mulher teve sua construção social no Brasil. Isso vem dos resquícios coloniais. Na educação da mulher na colônia, ela tinha que ser fria como mármore. A honra do homem dependia das atitudes da mulher”, explica. Ela indica que o autor também mostra a vergonha que elas têm do próprio corpo. “Uma situação que aparece muito nas peças é que, por exemplo, Dona Eduarda é morta porque quer sair, que ter a experiência do prazer, da carícia, quer se separar, ter outro homem. A Judite é assassinada pelo cunhado, que não admite sua traição. Ainda hoje isso acontece”, explicita.

Da mesma maneira que Nelson Rodrigues revela a violência que perpetua na sociedade, ele também cria personagens femininos complexos, que dominam as próprias vontades. “As mulheres são donas da própria libido. Para mim, são as melhores personagens femininas do teatro: são contraditórias, tomam decisões, são impetuosas, enquanto os homens são uns ‘bananas’. Dizem que ele era machista, mas não necessariamente. Ele conhecia suas personagens com muita agudeza”, explicita a pesquisadora Priscila Gontija. Para ela: “a obra de arte não existe sem polêmica. Se uma obra de arte é aplaudida por todos e não gera polêmica, eu questiono, porque toda unanimidade é burra.”

O diretor de teatro Marco Antônio Braz compartilha da mesma opinião. “Se você ler todas as peças dele, você vai encontrar personagens femininas heroicas, que conseguem se conscientizar de sua força diante da situação. Em ‘A Mulher Sem Pecado’, Lídia é absolutamente revolucionária. Durante o final dos anos 1940, em que uma mulher era considerada socialmente abaixo do homem, ela tomar a decisão de largar o marido. Naquele momento, existe toda uma vitória.”

Outra maneira que Nelson Rodrigues encontrou de adentrar no universo feminino foi ao assinar sob o pseudônimo de Suzana Flag. Com publicações no Diários Associados, a partir de 1945, começou a escrever a coluna “Meu destino é pecar”. Na história em formato de folhetim, Leninha foi obrigada a casar com Paulo por causa das dívidas de sua família. Depois da cerimônia, ela vai morar na fazenda do marido e se torna prisioneira, mas se apaixona pelo cunhado.

“Esses folhetins não representam apenas uma mulher, elas são todas as mulheres. É uma tentativa dele de investir na alma feminina através de uma narrativa em que ele tenta, de fato, ser uma mulher”, explica Marco Antonio. “Existe a narrativa de um personagem feminino que vai adquirindo força e consciência para se libertar. E quase sempre o homem positivo de Nelson Rodrigues é aquele que acaba entendendo e abdicando desses antigos valores”, pontua.

 

 

“Os homens aparecem com duas faces: uma linda e outra hedionda”

 

Joselen Monteiro é psicanalista e estuda a obra de Nelson Rodrigues(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Joselen Monteiro é psicanalista e estuda a obra de Nelson Rodrigues

 

A psicanalista e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Fortaleza (UFC), Joselene Monteiro Silva, pesquisa sobre o teatro de Nelson Rodrigues a partir da psicanálise. Em entrevista ao O POVO, a pesquisadora aborda as características da estrutura familiar em na obra do dramaturgo, além de especificar as particularidades entre os personagens homens e mulheres de seus textos.

O POVO: Como a estrutura familiar de Nelson Rodrigues, exposta em seus textos, pode ser definida?
Joselene Monteiro: A família é um tema onipresente no teatro de Nelson Rodrigues, sendo costumeiramente o foco das tensões da trama. Um modelo de estrutura familiar clássico — pai, mãe e filhos — ou com algumas variações, como viuvez e presença de agregados, é apresentado no início de suas peças. Quaisquer que sejam as versões dessa estrutura familiar, é constante a questão da desagregação da família nos moldes tradicionais, na qual o poder está centrado na figura do pai. Este esforça-se inutilmente para manter a família sob seu domínio, sobretudo as mulheres, que se apresentam como insatisfeitas e sempre prestes a fugir de seu jugo. Embora sejam múltiplas as formas de organizações familiares, os temas se repetem: incesto, ciúme, traição, sexualidade desviante, castidade e devassidão. Todos esses temas acabam por compor seu projeto de teatro desagradável.

OP: Qual a representação da mulher na obra de Nelson Rodrigues?
Joselene: As personagens femininas são apresentadas frequentemente como dissimuladoras, amorais e livres de culpa. Essa visão de que, nelas, a emoção prevalece sobre a razão faz com que, para Nelson, as mulheres sejam mais inocentes e capazes de amar do que os homens. Em “Flor de Obsessão”, ele afirma que, embora a mulher se corrompa por menos do que o homem, mesmo na mulher mais degradada sobrevive algo de intacto, intangível e eterno, um mínimo de inocência que a redime. As mulheres são representadas como aquelas que conduzem os homens ao infortúnio ao confrontá-los com seu próprio desejo. A abordagem das mulheres pelos homens colocam-nos diante de um enigma e da dúvida. Assim emergem questões tabus para os homens: ser traído e ser impotente.

" Os personagens masculinos são constantemente marcados por impulsos irrefreáveis e por uma culpa que os atormenta devido aos atos que se viram compelidos a fazer, o que evidencia suas fragilidades."

 

OP: E qual a representação do homem em sua obra?
Joselene: Na obra de Nelson Rodrigues, os homens aparecem com duas faces, uma linda e outra hedionda. Frequentemente, em seus textos, o autor dividia os homens em duas metades: santos e canalhas. Mesmo o homem mais vil possuiria uma nuance de santidade, assim como o homem mais virtuoso teria uma face sombria prestes a aflorar. Os personagens masculinos são constantemente marcados por impulsos irrefreáveis e por uma culpa que os atormenta devido aos atos que se viram compelidos a fazer, o que evidencia suas fragilidades. Alguns tipos de homens se repetem na obra de Nelson Rodrigues: há os chefes de família enfraquecidos e arruinados pelos próprios desejos (incestuosos ou transgressores de alguma forma); os filhos incestuosos (seja em relação à mãe, à irmã ou à madrasta) e/ou em posição conflitante em relação ao pai; os maridos traídos (alguns dos quais os próprios atos conduziram ou justificaram a traição da esposa); os castos (que também escondem uma face obscena); e aqueles nos quais a face canalha se sobressai, mas que são redimidos pelo amor.

OP: Quais as principais diferenças que o autor expõe entre o homem e a mulher?
Joselene: O autor, com sua face reacionária, tanto se opunha à revolução sexual e às reivindicações feministas, pois o ideal amoroso preconizado por Nelson exigia uma relação desigual entre os gêneros, além de uma renúncia à liberdade e à satisfação sexual pura e simples. Essas reflexões estão bem presentes em suas crônicas. Mas, quando examinamos sua obra ficcional, percebemos que ele transcende essa moralidade que tanto defendia. Como um artista genial, Nelson era capaz de dar autonomia a seus personagens e, assim, não vemos em cena seus modelos idealizados, mas conflitos de homens e mulheres com seus próprios desejos transgressores.

"“A vida como ela é…” configura um verdadeiro retrato psíquico da condição humana ao apresentar o desejo na sua condição trágica, sempre relacionado a uma falta."

 

OP: Qual o retrato psíquico que ele faz da condição humana?
Joselene: Nelson mostra repetidamente a impossibilidade do encontro amoroso, o que se aproxima da visão da psicanálise sobre o tema: há falha na tentativa de o sujeito encontrar seu objeto porque este é sempre perdido ou faltoso. Assim, por não ter um objeto instintivamente estabelecido, a sexualidade humana está fadada à insatisfação. “A vida como ela é…” configura um verdadeiro retrato psíquico da condição humana ao apresentar o desejo na sua condição trágica, sempre relacionado a uma falta.

OP: As obras de Nelson Rodrigues costumam passar pelos temas do desejo, do incesto, da sexualidade, do inconsciente, etc. Como a psicanálise dialoga com o teatro do autor?
Joselene: A obra rodrigueana põe em cena algo comum a todos e que todos desejam ignorar. É um saber um tanto quanto intragável para o público, pois revela questões sobre a sexualidade e o amor que usualmente se restringem ao inconsciente. Lacan ensina que nós, psicanalistas, temos que seguir os artistas até onde nos conduzem, pois eles sabem, sem nossa ajuda, o que nós não sabemos. Portanto, trata-se do que o artista pode ensinar ao psicanalista. E considero que Nelson Rodrigues tem muito a ensinar.

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