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Nelson Rodrigues e seu "teatro desagradável"
Reportagem Seriada

Nelson Rodrigues e seu "teatro desagradável"

Ao abordar temas polêmicos na sociedade brasileira, Nelson Rodrigues recebeu críticas e elogios. Apesar da discussão, mantém uma influência inegável para a dramaturgia
Episódio 3

Nelson Rodrigues e seu "teatro desagradável"

Ao abordar temas polêmicos na sociedade brasileira, Nelson Rodrigues recebeu críticas e elogios. Apesar da discussão, mantém uma influência inegável para a dramaturgia
Episódio 3
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Após sofrer censuras que o impedia de prosseguir com a encenação de algumas peças, Nelson Rodrigues denominou a própria produção de “teatro desagradável”. Adquiriu uma imagem de artista “maldito” e assumiu esse personagem. Nas inúmeras vezes em que foi criticado, apoderou-se dos títulos. Foi um obcecado, um tarado, um reacionário. “O interessante é que, ao que consta, o início da carreira dele foi guiada por interesses financeiros. O que se seguiu, entretanto, foi um teatro apontado como de gosto duvidoso pela crítica e pelo público”, explica a pesquisadora Ariela Fernandes.

Montagem de 'Vestido de Noiva', em 1965(Foto: Cedoc/ Funarte)
Foto: Cedoc/ Funarte Montagem de 'Vestido de Noiva', em 1965

“Vale salientar que as três peças que vieram após ‘Vestido de Noiva’ sofreram censura, tanto por parte do Estado, quanto por parte da plateia conservadora. A partir desse momento, o autor começou a contar com a alcunha de ‘autor maldito’, para quem a proibição era constantemente instigante enquanto traço da sua produção literária e do ‘teatro desagradável’, comenta Ariela.

Segundo a professora de teatro, Juliana Nascimento, Nelson Rodrigues dizia que era impossível falar de temas mórbidos, por exemplo, sem enveredar por esse lugar. “As pessoas criticavam e repudiavam muito sua obra, sobretudo as míticas e as tragédias cariocas”, ressalta.

Os motivos de seus textos serem tão mal recebidos podem ser explicados por causa da maneira crua de tratar o mundo. “O texto rodriguiano é, ao mesmo tempo, retrato da sua época e sinal atemporal da nossa catastrófica sociedade. Ele nos dá uma percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do convencional, com linguagem própria e dinâmica”, indica o professor Moisés Neto.

" Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus ‘monstros’. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos." Moisés Neto, professor

 

Segundo o professor, “para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus ‘monstros’. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos. Afinal, o homem só se salva se reconhecer sua própria hediondez, não é?”. De acordo com ele, o teatro é um tipo de “acerto de contas” entre o ser humano e a sociedade.

"Fico agora imaginando como seria sua dramaturgia em tempos de internet… Será que cancelaríamos o autor ou daríamos nossa outra face ao espelho social e psicológico que ele propõe?"

 

“O maior diálogo da obra com o contexto da sua época ocorre justamente na tentativa de tornar o escândalo, a polêmica, o tabu como traços basilares da sua produção. Era uma espécie de denúncia da hipocrisia que, claro, ao chegar ao público, não foi bem recebido, já que mostrava situações possíveis de ocorrer com os mais diversos atores sociais”, comenta Ariela Fernandes. “Fico agora imaginando como seria sua dramaturgia em tempos de internet… Será que cancelaríamos o autor ou daríamos nossa outra face ao espelho social e psicológico que ele propõe?”, reflete.

As obras de Nelson Rodrigues tiveram dezenas de adaptações para a televisão e para o cinema(Foto: ARQUIVO/ AE)
Foto: ARQUIVO/ AE As obras de Nelson Rodrigues tiveram dezenas de adaptações para a televisão e para o cinema

Para Priscila Gontijo, o dramaturgo continuaria com uma fama negativa. Em sua opinião, ele poderia não ser encenado caso surgisse nos dias atuais. “O autor não é o cara da verdade. Ele é um ficcionista, é alguém que está criando e recriando um mundo com todas as suas falhas e com todas as suas luzes. Sou a favor da contradição. Se por um lado tem algo positivo, por outro tem algo pior. Neste momento ultraconservador que vivemos, a sociedade não quer ver isso, não quer que questione, que balance os pilares dos cidadãos de bem e dos bons costumes”, opina.

Nelson Rodrigues era um pessimista em seus textos. Ele enxergava as pessoas em sua forma mais íntima e, consequentemente, cruel. Aqueles que não entendiam suas mensagens poderiam se encaixar na descrição que ele mesmo definiu como os “idiotas da objetividade”. “Infelizmente ele era um pessimista e acertou em sua visão. A nossa realidade é péssima. Estamos vivendo a época de uma revolução idiota. Essas dificuldades, podem ser compreendidas a partir da obra dele”, indica o diretor Marco Antônio Braz.

 

 

Uma tarde  no Leme, com Nelson Rodrigues

 

Em uma tarde de 1978, Nelson Rodrigues abriu as portas de seu apartamento no Rio de Janeiro para conversar com um dramaturgo cearense que ainda estava no início de sua carreira. Ricardo Guilherme, que há pouco tempo tinha estreado “Valsa Nº 6” com seu grupo de teatro em Fortaleza, começara a se aprofundar nas obras do teatrólogo pernambucano. Por intermédio de um conhecido dos dois, o animador de iniciativas cênicas, Paschoal Carlos Magno (1906-1980), o encontro aconteceu.

"Eu tenho um certo orgulho de ter conseguido atravessar essa onda que o caracterizava como um autor reacionário antes de ele ser consagrado" Ricardo Guilherme, ator e dramaturgo

 

“Ele tinha uma relação histórica com o Pascoal, que fez com que recebesse um menino na sua casa. Ele já parecia um senhor, mas não era tão velho. Eu passei uma tarde conversando com ele no Leme, ouvindo e perguntando. Ele ficou emocionado com a peça, fez várias perguntas sobre como eu conhecia sua obra. Foi muito bonito”, recorda Ricardo. Naquele dia, Nelson Rodrigues contou sobre a peça em que estava trabalhando: “A Serpente” (1978), a última que produziria antes de morrer. “Eu tenho um certo orgulho de ter conseguido atravessar essa onda que o caracterizava como um autor reacionário antes de ele ser consagrado”, comenta.

Mesmo que já tivesse se aprofundando nestes textos teatrais, foi somente duas décadas depois, no início de 1990, que teria contato com outra faceta rodrigueana: os contos. “Montei uma espécie de síntese estética e poética de sete contos e dei o nome de ‘Flor de Obsessão’, que era um título que ele usava para si mesmo”, explica.

Logo depois, envereda pelas crônicas. Agora, não utiliza apenas a voz de Nelson Rodrigues. Ricardo Guilherme e os pensamentos rodrigueanos se fundem em um para formar “Nelson Ricardo Guilherme Rodrigues”. “Eu deixo exposto que é o dramaturgo, mas com uma intervenção criativa minha”, indica. Assim surge o espetáculo “Bravíssimo”, que realiza um manifesto sobre o homem brasileiro. “O que é ser brasileiro? Qual o comportamento do homem brasileiro? Nelson dizia que o brasileiro era um ‘narciso às avessas, que cospe na própria imagem’”, reflete.

Já “É Proibido Nascer em Brasília”, de 1996, o cearense também se apropria de outra crônica. “Ele esteve na inauguração de Brasília e escreveu sobre essa visita. Na época, ele se posicionava contra aqueles que eram contra a capital. Nas outras peças, não há uma separação entre Nelson e Ricardo. Nesta há. Eu faço minha encenação, afirmando que ninguém deveria nascer em Brasília, porque é um projeto de um lugar sem dono”, revela. Por coincidência - ou não - sua neta, anos depois, nasceria na capital federal.

Para ele, a grande tragédia que circunscreve a obra rodrigueano é a ideia de que o ser humano não tem escapatória. “O ser humano é instintivo, é humano, é carne. Sempre que ele tenta superar isso, não consegue e se dá mal. O grande drama é que ele não consegue transcender sua própria condição, não consegue superar sua própria animalidade”, indica.

Se as obras de Nelson Rodrigues causaram tantas opiniões divergentes enquanto estava vivo, existe um consenso na atualidade: gerações de profissionais do teatro foram influenciados por suas obras. Esse é o caso do diretor Marco Antonio Braz, que se tornou conhecido na década de 1990 pelas suas encenações rodrigueanas. “Olhando hoje, esse contato foi anscestral, foi anterior a si mesmo”, comenta.

'Vestido de Noiva' (1943) foi a peça que consagrou Nelson Rodrigues no teatro(Foto: Reprodução/ Divulgação)
Foto: Reprodução/ Divulgação 'Vestido de Noiva' (1943) foi a peça que consagrou Nelson Rodrigues no teatro

Ele conta que surgiu no grupo de teatrólogos formado na universidade nos anos 1980. “Na época, sabíamos que deveríamos investir na dramaturgia brasileira. Era uma embocadura que permitia um melhor desenvolvimento do contexto. Mas a gente sempre costumava trabalhar com traduções”, lembra. A partir desse incômodo de investir em uma realidade que dialogasse com o Brasil, nasceu sua primeira montagem de “Beijo no Asfalto” (1990) na faculdade.

Também na mesma década, encenaria “Perdoa-me por me traíres” (1995), “Viúva, porém honesta” (1996) e “Bonitinha, mas ordinária” (1999). Realiza espetáculos de outros dramaturgos, mas foca em Nelson Rodrigues. Até hoje, tem o costume de produzir todas as 17 peças com uma regularidade anual.

Para ele, o autor continua atual por causa dos temas que aborda. “Uma das coisas que mais gritou nos últimos anos é que as pessoas resolveram efetivamente colocar na mesa o que estava embaixo do tapete. Nelson abomina os ‘ismos’, e toda a obra dele já denuncia o machismo, o patriarcalismo e o racismo”, afirma.

Tereza Rachel e Carlos Alberto em ‘Bonitinha, mas Ordinária’, na montagem de 1962(Foto: Carlos/ Cedoc - Funarte)
Foto: Carlos/ Cedoc - Funarte Tereza Rachel e Carlos Alberto em ‘Bonitinha, mas Ordinária’, na montagem de 1962

“‘Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária’, por exemplo, radiografou da relação de poder até a cultura do estupro. Passou pelo preconceito racial. Mostrou que o homem é quase um animal diante do dinheiro. Mas a peça, por ser ‘anti-Nelson’ traz um final feliz. Apesar de todas as atrocidades, existe um verdadeiro milagre”, afirma Marco Antonio Braz. Segundo ele, é uma história necessária para a atualidade. “Ela nos deixa uma esperança clara do amor.”

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