As semelhanças entre um bode e uma travesti são inúmeras, segundo a multiartista cearense Sy Gomes, 22. "Para muitos, sequer somos humanas", emenda a artista visual, historiadora, performer, cantora, compositora e produtora cultural. Na sobrecapa do O POVO deste sábado, 16, Sy aparece ao lado do corpo empalhado do bode Ioiô — exposto no Museu do Ceará. Figura emblemática, o bode viveu em Fortaleza no início do século XX. A população, indignada com a política vigente à época, teria votado em Ioiô para vereador. O animal, contudo, nunca foi empossado. Assim como nenhuma travesti foi eleita em toda a história da Cidade.
Sy foi até o Museu do Ceará, no último mês, encontrar Ioiô. Ela lhe parabenizou por ser mais relevante do que uma travesti na política de Fortaleza, a capital do segundo estado que mais mata pessoas trans e travestis no País. Na companhia dos fotógrafos David Felício e Jorge Silvestre, a artista utilizou o corpo empalhado do bode como composição para uma performance. Sy suga as energias centenárias da taxidermia, se associa à figura de Ioiô, conversa com o corpo e realiza uma prece. Mais que isso: faz um pacto de sangue para que mais travestis possam viver neste território. E reivindica a preservação da memória trans em acervos.
Tal processo criativo compõe o novo projeto de Sy, "Ioiô não vai votar". A investigação resultará num painel de fotografias analógicas, com lançamento previsto para dezembro deste ano na Casa do Barão de Camocim, dentro da exposição do Laboratório Experimental da Rede Cuca (Lacre). Ao O POVO, a multiartista compartilha material inédito desta experimentação. São registros digitais, também feitos por David e Jorge, da performance.
Conhecida por movimentar a Cidade com suas criações, Sy — nascida no Eusébio, município da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) — integra a 21ª Unifor Plástica, da Fundação Edson Queiroz (FEQ). Com elementos vegetais e muitas cores, o trabalho "Plantas do fim do mundo ou O jardim" é um painel de três metros, produzido durante a pandemia da Covid-19. Com o tema "Corpo Ancestral", a exposição entra em cartaz nesta terça-feira, 19, no Espaço Cultural Unifor. Até hoje, 16, também é possível prestigiar a obra "O que aprendi com elas", de Sy, na exposição "Rarefeito" do Sobrado Dr. José Lourenço. Os locais devem funcionar com seguimento aos protocolos contra a pandemia, como uso obrigatório de máscaras e distanciamento social.
Se a população votou no bode Ioiô como forma de protesto, em 1922, Sy Gomes questiona: "Quem se importa com uma vereança travesti? Hoje, em quem a Cidade, revoltada, votaria? Num bode ou numa travesti?". Num súbito, surgiu o projeto "Ioiô não vai votar". Ao pensar sobre a história de Fortaleza, Sy lembrou de Ioiô. Um bode que, nos idos de 1915, fugiu da Grande Seca com retirantes e logo fez morada na Cidade. Segundo a também historiadora, o animal foi adquirido por um empresário. A firma era localizada na antiga Praia do Peixe, conhecida no agora como Praia de Iracema. Agitado, o animal "ia e voltava" do litoral à Praça do Ferreira, no Centro — daí o nome Ioiô.
De acordo com Sy, o bode foi associado, muitas vezes, à figura do "cabra macho cearense". Isso porque o animal gostava, por exemplo, de beber cachaça e levantar a saia de mulheres com seus chifres. Em 1931, o animal morreu. Seu corpo foi empalhado e doado ao Museu do Ceará. Há dois anos, seu rabo foi roubado. Após quase um século da eleição de Ioiô, a artista — que se define como travesti, negra, cearense e aficionada por criar mundos — investiga um espaço político não ocupado por uma travesti.
No trabalho "Ioiô não vai votar", ao passo que funde-se ao bode, se desassocia. Sy utiliza um casaco parecido (em cor e textura) com a pelagem de Ioiô. Compara o animal à representação de Baphomet (criatura simbólica pagã) e manipula sua carga mágica. A obra se insere no contexto de reestruturação do Museu do Ceará. Em maio deste ano, o secretário da Cultura do Ceará, Fabiano Piúba, anunciou a reforma do equipamento e a posse da nova diretora, Raquel Caminha. Sy quer debater, também, a ausência de travestis em um acervo como o do Museu do Ceará. Mais para frente, espera estar ali também, ao lado do bode.
"A história sempre contornou minha obra, mas nunca tinha dialogado com um acervo", analisa Sy. Integrante do Lacre, ela já compôs o 7º Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes, com a pesquisa "Travestis são como plantas"; e o 71º Salão de Abril, com a obra "Centro de Gravidade".
Em 2020, o projeto "Me Vejam de Longe - Outdoor Travesti" exclamou a memória travesti em cinco outdoors pela Capital. Em mais uma de suas experimentações pela Cidade, a artista provoca de forma independente, sob o movimento enérgico e espontâneo de si e de seus parceiros. "Estou muito realizada", celebra. Sy segue seu movimento artístico de percorrer caminhos e encontrar conexões com as tramas da vida. Sempre com inícios e meios, mas jamais fins.
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