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Antígona brasileira: Eunice Paiva, uma mulher de muitas vidas
Reportagem Seriada

Antígona brasileira: Eunice Paiva, uma mulher de muitas vidas

Ela madrugava com uísque rindo do patriarcalismo ao lado das amigas Lygia Fagundes Telles, Danda Prado e Renina Kartz. Ávida leitora, era fã de Érico Veríssimo. Formou-se em Direito aos 48 anos e, como advogada, produziu textos magistrais para a causa indígena. Conheça Eunice Paiva para além da "viúva da ditadura"
Episódio 7

Antígona brasileira: Eunice Paiva, uma mulher de muitas vidas

Ela madrugava com uísque rindo do patriarcalismo ao lado das amigas Lygia Fagundes Telles, Danda Prado e Renina Kartz. Ávida leitora, era fã de Érico Veríssimo. Formou-se em Direito aos 48 anos e, como advogada, produziu textos magistrais para a causa indígena. Conheça Eunice Paiva para além da "viúva da ditadura"
Episódio 7
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Há em Eunice Paiva (1929-2018) a força trágica de Antígona. Como a heroína grega da tragédia de Sófocles, ela desafiou o poder em nome da memória. Seu Creonte foi a ditadura militar, que tentou silenciar sua dor e apagar a história do marido, Rubens Paiva (1929-1971). Mas Eunice foi além da finda-linha: lutou contra o esquecimento e fez de sua busca por justiça um ato político que ainda está aqui.

“Eunice estava perdendo a memória para o Alzheimer ao mesmo tempo em que o Brasil estava perdendo a memória do que aconteceu durante a ditadura”, metaforizou, em entrevista ao portal americano IndieWare, a atriz Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro 2025 e concorrente ao Oscar de Melhor Atriz. “Ainda Estou Aqui” estreou no que seria o aniversário de 95 anos de Eunice Paiva, 7 de novembro.

Ela e a mãe, Fernanda Montenegro, encarnam Paiva no filme “Ainda Estou Aqui” (2024) e são responsáveis por trazer à tona um passado não tão distante de violência, repressão e perguntas sem respostas no Brasil. Com direção de Walter Salles, o longa recebeu três indicações ao Oscar 2025: melhor filme, atriz e filme internacional.

A vida de Eunice é narrada no filme Ainda Estou Aqui, no qual a advogada é interpretada pela atriz Fernanda Torres, que ganhou um Globo de Ouro por sua atuação neste papel(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva A vida de Eunice é narrada no filme Ainda Estou Aqui, no qual a advogada é interpretada pela atriz Fernanda Torres, que ganhou um Globo de Ouro por sua atuação neste papel

Viúva sem que soubesse a princípio, a dona de casa de classe média alta cuidou sozinha dos cinco filhos enquanto fazia de tudo para encontrar respostas sobre o paradeiro do ex-deputado — torturado, desaparecido e morto no Rio de Janeiro em 1971.

Liberada depois de 12 dias presa, ela voltou para casa e encarou o complexo e doloroso luto da ausência, do silêncio, da dúvida. Suspensos entre a esperança e o medo, seus expressivos olhos despediram-se da vista para o mar do Leblon e miraram Vera, Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz. Era preciso se manter firme e seguir em frente por eles.

A residência da família Paiva era farta, alegre e cheia de vida. Gostavam de receber amigos e de muita festa. Quando Rubens some, levado por agentes do DOI-Codi, a casa muda.

A linda casa que existiu na Avenida Delfim Moreira, número 80, no Leblon é uma das protagonistas do filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles. Nesta foto da década de 1970, a casa já abrigava o restaurante francês "La cave aux fromages", de Pierre Bloch, que assumiu a propriedade depois que Eunice foi para São Paulo com os filhos(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução A linda casa que existiu na Avenida Delfim Moreira, número 80, no Leblon é uma das protagonistas do filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles. Nesta foto da década de 1970, a casa já abrigava o restaurante francês "La cave aux fromages", de Pierre Bloch, que assumiu a propriedade depois que Eunice foi para São Paulo com os filhos

Mas Eunice recusava-se a aceitar a nomenclatura de “família vítima da ditadura”, e naquele ano também começaria uma trajetória para além da tragédia pessoal que faria dela um símbolo de defesa dos direitos humanos.

Mudou-se para São Paulo, retomou os estudos, formou-se em Direito aos 48 anos e tornou-se uma das poucas especialistas em direito indígena dos anos 80 e 90 no Brasil.

“Aos 42 anos, prestou outro vestibular. Estudou sozinha, viúva, triste. Em Santos, para onde nos mudamos. Estudou, entrou em primeiro lugar na faculdade de direito e se transferiu para a Mackenzie. Uma prima conta que minha mãe estudava o tempo todo, que nós corríamos pela casa e ela estudava, estudava”, escreve o filho Marcelo Rubens Paiva.

Como advogada, Eunice Paiva deixou legado para o direito indígena(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva Como advogada, Eunice Paiva deixou legado para o direito indígena

Engajada com pautas e movimentos sociais, integrou a mobilização pelas Diretas Já e foi uma das primeiras críticas à Lei da Anistia (Lei Nº 6.683/1979).

Como advogada, fez pareceres magistrais para a causa indígena. Participou da Assembleia Constituinte e contribuiu para as discussões que resultaram no capítulo Dos Índios (VIII - Artigos 231 e 232) da Constituição Federal de 1988.

No centro dos movimentos que exigiam justiça para as vítimas da ditadura, ela destacou-se por seu papel na pressão pela promulgação da Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil (Lei Nº 9.140/1995), que reconheceu como mortos os desaparecidos políticos do período ditatorial.

Reconhecimento oficial da morte de Rubens Paiva só aconteceu no dia 23 de fevereiro de 1996, depois que entrou em vigor a Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil (Lei Nº 9.140/1995). A legislação reconheceu como mortas pessoas que "sumiram" em circunstâncias políticas entre 1961 e 1979(Foto: Sérgio Andrade)
Foto: Sérgio Andrade Reconhecimento oficial da morte de Rubens Paiva só aconteceu no dia 23 de fevereiro de 1996, depois que entrou em vigor a Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil (Lei Nº 9.140/1995). A legislação reconheceu como mortas pessoas que "sumiram" em circunstâncias políticas entre 1961 e 1979

Vinte anos depois, o filho Marcelo Rubens Paiva, escritor, narrou os bastidores do evento: “Eleito presidente em 1994, FHC, amigo íntimo do meu pai, desconversou quando a Anistia Internacional cobrou uma posição sobre os desaparecidos políticos. Foi notícia. Eu morava nos Estados Unidos. Liguei para a minha mãe, que também estava indignada no Brasil. Minutos depois, chegou um fax no meu quarto e sala em Stanford, Califórnia. Ela tinha encontrado nos arquivos o texto do FHC sociólogo e colunista da Folha, nos anos 80, citando o amigo Rubens Paiva e cobrando do governo Sarney uma posição sobre os desaparecidos políticos”.

“Liguei imediatamente para meu amigo do movimento estudantil, Paulo Moreira Leite, conhecido como PTB, que na época era redator-chefe da Veja. Pedi uma página para escrever um texto sobre a contradição do FHC dos anos 80, pensador crítico do regime, e dos anos 90, presidente da República. Ele me deu duas páginas.”

“A repercussão, imensa. Mas a resposta foi digna. Com José Gregori, outro amigo do meu pai, seu ministro da Justiça, redigiram a Lei 9.140. Quando ela foi promulgada, chamaram minha mãe para a cerimônia no Palácio do Planalto. Ela ficou sentada ao lado do presidente, diante de ministros militares. Ao final, todos se levantaram, abraçaram-se. Fotos. No dia seguinte, vejo na capa dos jornais minha mãe abraçada ao chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, do Exército brasileiro. É uma das fotos mais importantes do longo e infindável processo de redemocratização brasileira. Tempos de reconhecimento. Um lado sai da trincheira e cumprimenta o outro.”

Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu Eunice Paiva no Palácio do Planalto em uma cerimônia para apresentar o projeto da Lei dos Desaparecidos. Na foto, ela é recebida pelo general Alberto Cardoso, então chefe da Casa Militar. No evento, o presidente assumiu a responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura(Foto: Reprodução/Marcelo Rubens Paiva via X)
Foto: Reprodução/Marcelo Rubens Paiva via X Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu Eunice Paiva no Palácio do Planalto em uma cerimônia para apresentar o projeto da Lei dos Desaparecidos. Na foto, ela é recebida pelo general Alberto Cardoso, então chefe da Casa Militar. No evento, o presidente assumiu a responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura

O trabalho de Eunice e seu impacto se estenderam até a redemocratização do Brasil, influenciando políticas de reparação e ações voltadas para a preservação da memória histórica.

Anos depois, graças à luta da família e aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela então presidenta Dilma Rousseff em 2011, os responsáveis pela morte de Rubens Paiva sentaram no banco dos réus.

Àquela altura, Eunice já estava acometida pelo Alzheimer. Morreu em 13 de dezembro de 2018, mesmo dia em que a instituição do AI-5 marcava meio século. Tinha 86 anos, e por 14 deles conviveu com os efeitos do estágio III da doença. Mas como relata o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho caçula, Eunice nunca permitiu que a doença a definisse.

"Eunice estava perdendo a memória para o Alzheimer ao mesmo tempo em que o Brasil estava perdendo a memória do que aconteceu durante a ditadura", declarou Fernanda Torres, que interpreta Eunice em "Ainda Estou Aqui", em entrevista ao portal americano IndieWire(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva "Eunice estava perdendo a memória para o Alzheimer ao mesmo tempo em que o Brasil estava perdendo a memória do que aconteceu durante a ditadura", declarou Fernanda Torres, que interpreta Eunice em "Ainda Estou Aqui", em entrevista ao portal americano IndieWire

No livro “Ainda Estou Aqui” (2015), ele relata que sempre que as emoções lhe tomavam o peito — como quando revia uma filha que morava longe ou segurava um neto nos braços —, repetia uma frase cheia de significados: “Eu ainda estou aqui”. A obra retrata, na perspectiva dele, “uma mulher de muitas vidas”.

Em entrevista ao The Hollywood Reporter, a atriz Fernanda Torres revelou ter sentido a presença de Eunice durante as gravações.

"Fui sozinha agradecer a essa grande brasileira pela honra de tê-la encarnado no cinema. Obrigada, Eunice", escreveu Fernanda no Instagram(Foto: Reprodução/Instagram @oficialfernandatorres)
Foto: Reprodução/Instagram @oficialfernandatorres "Fui sozinha agradecer a essa grande brasileira pela honra de tê-la encarnado no cinema. Obrigada, Eunice", escreveu Fernanda no Instagram

“Isso não acontece normalmente, mas eu senti a presença de Eunice. Não foi algo espiritual. A personagem apenas estava ali comigo”, afirmou.

Segundo ela, o momento aconteceu enquanto filmava as cenas na sorveteria em que Eunice percebe a ausência de Rubens (interpretado por Selton Mello).

A atriz ainda disse que chorou bastante após a gravação, passeando a esmo pela capital carioca.

Após a repercussão do filme Ainda Estou Aqui, o túmulo de Eunice, no cemitério do Araçá, na capital paulista, virou ponto turístico.

“Exemplo para a família e para a democracia brasileira” é a frase que estampa a lápide colocada na capelinha azul.

O sucesso da produção despertou curiosidade sobre a vida da advogada e sobre onde foi enterrada, principalmente depois que a atriz Fernanda Torres relatou ter feito uma visita ao cemitério durante as gravações.

“Há um ano, se encerram as filmagens de Ainda Estou Aqui e fui sozinha agradecer a essa grande brasileira pela honra de tê-la encarnado no cinema. Obrigada, Eunice”, escreveu a atriz ao compartilhar um registro do momento.

 

 

Eunice Paiva, uma mulher de muitas vidas

Nascida em 7 de novembro de 1929, Maria Lucrécia Eunice Facciola Paiva passou a infância no Brás, bairro tradicional de São Paulo, em uma família de origem italiana.

Viveu entre a comunidade ítalo-brasileira que veio para o Brasil no início do século XX até mudar-se para Higienópolis, bairro mais abastado.

Desde criança cultivou o gosto pela leitura. Canhota determinada, levava reguadas dos educadores como uma tentativa forçada de fazê-la escrever com a mão direita.

No livro "Ainda estou aqui", obra de Marcelo Rubens Paiva que deu origem ao filme homônimo, o filho mais novo de Eunice registra detalhes pouco conhecidos sobre a mãe(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva No livro "Ainda estou aqui", obra de Marcelo Rubens Paiva que deu origem ao filme homônimo, o filho mais novo de Eunice registra detalhes pouco conhecidos sobre a mãe

Era a melhor aluna de sua turma no tradicional Colégio Sion de São Paulo e, justamente por seus conhecimentos, a amiga Maria Lúcia Paiva lhe pediu reforço com algumas explicações.

Foi na casa dela que Eunice conheceu o futuro marido, Rubens. Os dois começaram a namorar em 1947 e prestaram o vestibular com 17 anos.

Ela foi aprovada em primeiro lugar no curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele foi reprovado e passou dois anos em viagens pelo mundo antes de ingressar no curso de engenharia civil.

Rubens e Eunice Paiva em frente à Torre de Pisa, na Itália(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva Rubens e Eunice Paiva em frente à Torre de Pisa, na Itália

Eunice concluiu a graduação mesmo a contragosto do pai e, embora não tenha exercido a profissão, era reconhecida por falar inglês e francês fluentemente.

Os dois casaram em 30 de maio de 1952. Dez anos depois, quando o marido lhe propôs que empenhassem as economias na sua campanha para deputado federal, Eunice já era mãe de cinco filhos: Vera, Ana Lúcia, Eliana, Marcelo e Beatriz.

Mesmo assim não se opôs ao sonho do marido, que foi eleito em outubro de 1962. Mas a estabilidade da família duraria pouco.

Dois dias após a deflagração do golpe militar, em 1964, Rubens teve os direitos políticos cassados.

Em meio à tentativa de sair de Brasília, teve o avião onde estava interceptado.

O deputado fugiu à pé do aeroporto à Embaixada da Iugoslávia, onde exilou-se e permaneceu recluso por três meses.

Retornou clandestinamente ao Brasil e, mesmo com os conselhos de amigos para que deixasse o País, ele decidiu mudar-se com a família para o Rio de Janeiro. Lá, começou a trabalhar como diretor de uma empresa de engenharia.

Em 20 de janeiro de 1971, agentes da Aeronáutica foram até a casa da família. Depois de uma breve conversa, Rubens Paiva saiu dirigindo o próprio carro rumo à 3ª Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont. Nunca mais foi visto.

Relatos dão conta que foi provavelmente esquartejado e enterrado na restinga de Marambaia, sob a areia de 42 quilômetros de praia que pertence à Marinha do Brasil.

Eunice Facciolla Paiva liderou a busca por informações e documentos sobre o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi no Rio de Janeiro em 1971(Foto: Arquivo/Família Paiva)
Foto: Arquivo/Família Paiva Eunice Facciolla Paiva liderou a busca por informações e documentos sobre o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi no Rio de Janeiro em 1971

Também no dia 20, Eunice e a filha Eliana, então com 15 anos, foram levadas dentro de um fusquinha para a sede do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Tijuca.

Permaneceram encapuzadas e passaram por interrogatórios. Eliana foi liberada em 24 horas; Eunice passou 12 dias.

Rubens foi oficialmente dado como desaparecido. As forças de segurança afirmavam que teria sido resgatado por terroristas quando era transportado pelos agentes.

A primeira imagem de Eunice e os filhos após a prisão do marido, na entrada da casa no Leblon, em 1971. O fotógrafo da extinta revista Manchete reclamava: "Fiquem sérios". Mas a irreverência era marca da família(Foto: Eduardo Simões/Arquivo da família Paiva)
Foto: Eduardo Simões/Arquivo da família Paiva A primeira imagem de Eunice e os filhos após a prisão do marido, na entrada da casa no Leblon, em 1971. O fotógrafo da extinta revista Manchete reclamava: "Fiquem sérios". Mas a irreverência era marca da família

Eunice contestou a versão e fez pedidos de esclarecimentos ao Conselho de Direitos da Pessoa Humana, órgão ligado ao Ministério da Justiça, ao Superior Tribunal Militar e à Justiça Federal. Os pedidos foram negados.

No ano de 2007, ela e a filha Eliana conversaram com o jornalista e biógrafo Jason Tércio, autor de livros sobre a trajetória do político.

No relato, obtido com exclusividade pelo O GLOBO, Eunice revisitava memórias sobre o marido: “Rubens era a pessoa mais solidária do mundo. Vivia ajudando o pessoal que ele podia ajudar”.

Eunice passou a exigir a verdade sobre o marido, e com as indicações de que ele teria sido assassinado, reivindicou o reconhecimento de sua morte e a revelação de onde o corpo estaria enterrado — o que jamais aconteceu.

“Depois que ele morreu, eu fiquei sozinha no Rio com cinco filhos. E a minha família toda é de São Paulo. Quando chegou o mês de julho, ainda naquela tensão, resolvi ir para São Paulo. Não entreguei a casa, deixei a empregada tomando conta durante um tempo. (A casa) é uma lembrança lindíssima que eu tenho do Rio de Janeiro. Abria a janela de manhã e via a praia.”

“(...) Mas eu vi que não tinha mais volta, eu tinha que tocar a vida. Então, me mudei para Santos, porque meu sogro morava lá e me ligava várias vezes chamando. Meu sogro dizia: ‘Eu quero que meu filho, quando for solto — ele ainda acreditava que o Rubens estava preso —, encontre a família dele aos meus cuidados’. No Rio, as conversas com os amigos eram sempre sobre o Rubens, onde está o corpo, e eu não conseguia explicar. Em Santos, eu pude recuperar um pouco a minha paz”, expôs ao biógrafo.

Depois da viuvez, Eunice ingressou na faculdade de Direito e passou a conciliar o papel de mãe com a rotina estudantil aos 42 anos.

Já advogada, enfrentou batalhas pela reabertura do caso arquivado, emissão do atestado de óbito, investigação e punição dos responsáveis pelo assassinato e localização dos restos mortais de seu esposo.

Eunice Paiva exibindo o atestado de óbito de Rubens Paiva, documento que recebeu 25 anos após a morte dele(Foto: Eduardo Knapp)
Foto: Eduardo Knapp Eunice Paiva exibindo o atestado de óbito de Rubens Paiva, documento que recebeu 25 anos após a morte dele

Envolveu-se com grupos civis que exigiam justiça para os desaparecidos e seus familiares. Sua luta por Rubens se expandiu, tornando-se uma causa em nome de todos os brasileiros.

Entre essas diversas batalhas, as obras que narram a história de Eunice também destacaram sua atuação como uma das poucas advogadas da época especializadas em direito indígena.

Ávida leitora desde pequena, era fã de Érico Veríssimo e, a cada lançamento dele, ficava nas filas das livrarias tal qual uma fã de Harry Potter.  “Nas salas das casas em que morei, não tinha TV, mas livros do chão ao teto”, relembra o filho mais novo, Marcelo.

Marcelo Rubens Paiva com a mãe, Eunice, em foto tirada nos anos 1990(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Marcelo Rubens Paiva com a mãe, Eunice, em foto tirada nos anos 1990

Ele conta que, quando nasceu (1959), a mãe “já tinha lido de tudo”: “Os russos Dostoiévski e Tolstói, os franceses Balzac, Flaubert, Victor Hugo e Proust no original e, do inglês, de Hemingway a Fitzgerald, passando por Henry Miller, além de toda a literatura brasileira”.

Eunice era amiga de grandes escritores como Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Millôr, Haroldo de Campos, além de editores e livreiros.

Varava madrugadas na companhia das amigas Danda Prado, ativista lésbica e feminista, e Renina Katz, ilustradora e aquarelista. “Madrugavam com uísque rindo do patriarcalismo”, narra o caçula.

 

 

Ailton Krenak: “É impossível contar a história do movimento indígena sem falar de Eunice Paiva”

O período da ditadura militar brasileira também atingiu os povos indígenas. Entre outras atrocidades, foram perseguidos e expulsos. De invadidos, passaram a ser tratados como invasores.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante esse período “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”.

Durante esse período, Eunice atuou na defesa jurídica dos povos indígenas, assinando pareceres judiciais, buscando indenizações e demarcações de terras, publicando artigos e livros e contribuindo para as discussões que resultaram no capítulo Dos Índios (VIII - Arts. 231 e 232) da Constituição Federal de 1988.

Nascida em 1929, Eunice Paiva estudou Letras aos 18 anos na Universidade Mackenzie. Ela voltou à faculdade em 1973, dois anos após sua vida ser transformada com o sumiço de Rubens Paiva. Decidiu cursar Direito e formou-se aos 47 anos(Foto: Jorge Araújo)
Foto: Jorge Araújo Nascida em 1929, Eunice Paiva estudou Letras aos 18 anos na Universidade Mackenzie. Ela voltou à faculdade em 1973, dois anos após sua vida ser transformada com o sumiço de Rubens Paiva. Decidiu cursar Direito e formou-se aos 47 anos

“É impossível contar a história do movimento indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva”. As palavras são do líder indígena, ambientalista e filósofo Ailton Krenak em entrevista à CBN e dão uma ideia de como essa figura foi importante para a causa.

Ela tornou-se consultora do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas (ONU), participou de fóruns internacionais e debates na televisão.

Foi responsável por escrever um parecer crucial para a demarcação da Terra Indígena (TI) Zoró, no município de Rondolândia, em Mato Grosso, numa área próxima à divisa com Rondônia.

"É impossível contar a história do movimento indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva". As palavras são do líder indígena, ambientalista e filósofo Ailton Krenak(Foto: Jorge Araújo)
Foto: Jorge Araújo "É impossível contar a história do movimento indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva". As palavras são do líder indígena, ambientalista e filósofo Ailton Krenak

Os Zoró enfrentaram uma drástica redução populacional causada por surtos epidêmicos trazidos por invasores que atuavam na pavimentação da rodovia que ligava as duas capitais.

Graças ao trabalho da advogada em conjunto com as lideranças indígenas, o território teve seu reconhecimento oficial homologado em 1991.

No final da década de 1980, Eunice trabalhou no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que administrava no Brasil os recursos de uma organização fundada pelo músico Sting.

Ele se tornou defensora da causa indígena após uma turnê mundial ao lado do líder Raoni Metuktire, para angariar fundos para a demarcação da Terra Indígena Menkragnoti, dos Kayapó, no Xingu, homologada em 1993.

Entre seus feitos, a advogada foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá), uma organização não governamental que colaborou na criação de diversos projetos de saúde, educação e política para povos indígenas.

Ela atuou no instituto até 2001. Além de sua atuação no mundo jurídico, também participava de congressos acadêmicos, debates públicos, sessões de documentários, palestras e reportagens culturais.

 

 

Suflê, mousse, sorvete: receitas de Eunice também contam história da família Paiva

A presença discreta, mas marcante, de Fernanda Montenegro como Eunice Paiva já fragilizada pelo Alzheimer, dá o tom de desfecho de Ainda Estou Aqui, filme de Walter Salles que representa o Brasil no Oscar.

Na cena que encerra a trama, uma reunião de família carrega um simbolismo que vai além da luta de Eunice pela memória de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, morto pela ditadura. O momento também celebra um lado pouco lembrado da advogada: sua paixão pela cozinha.

Dona de uma habilidade especial para receitas, especialmente tortas e pratos natalinos, Eunice tinha um talento que encantava filhos e amigos — e que continua vivo na lembrança da família. No longa, os filhos lamentam não ter conseguido reproduzir seu icônico suflê, uma ausência que simboliza sua falta.

Receita do suflê de Eunice Paiva, prato mencionado algumas vezes no filme "Ainda estou aqui"(Foto: Ana Lúcia Paiva/Reprodução)
Foto: Ana Lúcia Paiva/Reprodução Receita do suflê de Eunice Paiva, prato mencionado algumas vezes no filme "Ainda estou aqui"

O suflê de queijo de "Dona Eunice" é quase um personagem em Ainda estou aqui, memórias de Marcelo Rubens Paiva.

O prato aparece repetidas vezes ao longo do filme: na lembrança da filha que morava fora, no desejo de Eunice de prepará-lo em um dia especial e até na fala de Rubens ao ser levado pela polícia: "Volto a tempo para o suflê".

Mais do que um prato, ele representa um elo entre a família e uma rotina brutalmente interrompida pela repressão.

Três dos cinco filhos de Eunice confirmam que o famoso caderno de receitas da mãe se perdeu com o tempo.

Antes disso, Eliana digitalizou algumas páginas, enquanto Nalu anotou a receita do suflê, que levava queijo parmesão, leite, ovos, manteiga e um toque opcional de presunto ou champignon.

O segredo? Claras bem firmes, batidas na mão ou na batedeira, para garantir a leveza do prato. E uma regra inegociável: precisava ser servido imediatamente, para não murchar.

A tradição culinária de Eunice ia além do suflê. No Natal, preparava os mesmos pratos havia décadas: presunto à moda da Virgínia, tender com batata-doce e um molho agridoce de abacaxi, melado e gim.

Havia também uma mousse de aipo batizada de "Kolynos", uma referência ao creme dental da época, por seu frescor.

Eunice Paiva ao lado da filha Eliana, que compartilhou registros das receitas da mãe ao jornal O GLOBO(Foto: Hélio Campos Mello)
Foto: Hélio Campos Mello Eunice Paiva ao lado da filha Eliana, que compartilhou registros das receitas da mãe ao jornal O GLOBO

Entre as sobremesas, reinavam o bolo de sorvete com frutas cristalizadas e um sorvete de creme que ela adorava, a ponto de jantá-lo com chantilly e vinho branco quando visitava a filha na França.

Com o avanço do Alzheimer, Eunice precisou abandonar a cozinha. Mas deixou um legado de sabores e memórias que resistem ao tempo.

Seus dotes culinários foram herdados de uma educação tradicional no Colégio Nossa Senhora de Sion, onde aprendeu a ser a "dama do lar" — mas desafiou esse destino ao se tornar advogada e defensora dos direitos indígenas. Fluente em cinco línguas, também costurava com destreza e reformava até os ternos do marido.


"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

 

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