Um momento da vida de Maria da Penha Maia Fernandes, 76 anos, não deveria servir de exemplo para nenhuma relação conjugal. Mas virou referência. Aconteceu 38 anos atrás, dia 29 de maio de 1983. É difícil até imaginar uma sequência tão cruel dos fatos. Ela ficou paraplégica depois que seu marido a acertou com um tiro nas costas à queima-roupa. De espingarda e enquanto ela dormia.
Pior que isso, ele quis matá-la de novo alguns meses depois: tentou eletrocutá-la quando ela tomava banho, sabotando o chuveiro elétrico. Ela já não tinha mais os movimentos da cintura para baixo. Mais ainda: o economista colombiano Marco Antônio Heredia Viveros, que Maria conheceu nos tempos de faculdade e se casou imaginando-o como uma pessoa boa, também a manteve em cárcere privado por mais de duas semanas à época. Entre outros motivos para evitar que ela se informasse sobre o ocorrido, a essa altura já manchete no noticiário. Ela relembra de um marido que já era agressivo com as três filhas, que o temiam.
Não bastasse, no andamento da investigação a Polícia descobriu que Marco Antonio havia simulado que o casal tinha sido vítima de assaltantes — o que nunca foi provado. Tudo havia sido o que hoje entendemos como violência doméstica, que avançou na modernização da lei para o conceito de feminicídio. Ele tentou mais de uma vez, ela sobreviveu. O economista, que se naturalizou brasileiro, precisou ser levado duas vezes a julgamento. Somente em 2002, quase 20 anos depois e a seis meses da prescrição do crime, ele foi condenado. Após apelos em cortes internacionais. A pena: dez anos e meio, depois reduzida para oito.
Ficou preso por menos de dois anos, hoje vive no Rio Grande do Norte, teve outras duas filhas e mais dois casamentos. A cearense vítima de tudo isso, farmacêutica bioquímica que diz ter torcido naquela situação de quase-morte principalmente para não ver as três filhas órfãs de mãe, deu nome à legislação que combate esses crimes. A Lei Maria da Penha, em 7 de agosto de 2021, completa 15 anos desde que foi sancionada.
O entendimento sobre o que representa o crime de agredir mulheres evoluiu, a punição é severa e ágil, mas os casos seguem acontecendo. Maria está viva para detalhar sua tragédia, mas entende que a Justiça e os gestores ainda podem fazer mais pela causa. Mas relembra que era muito pior quando a própria mulher agredida é que levava a notificação judicial para o companheiro agressor.
O POVO - A senhora lembra, 15 anos atrás, em 2006, qual era o cenário da violência doméstica?
Maria da Penha - O movimento de mulheres, eu não fazia parte. Quer dizer, em 2006 já tinha começado a fazer parte. Naquela época existia a Delegacia da Mulher, mas você imagina que antes da lei ela ia denunciar e ela mesma levava a intimação para o agressor. Você imagina o constrangimento e o que vinha de volta depois de ela ter denunciado o agressor. Era uma mulher muito corajosa, porque eu não teria essa coragem de ir e entregar a uma pessoa agressiva. Mas era assim que funcionava.
OP - Ela era a oficiala de justiça de seu próprio caso de violência.
Maria da Penha - Exatamente. Incrível, né?
OP - Seu caso aconteceu 38 anos atrás. A senhora conseguiu superar a memória dessas suas agressões? Como é isso hoje para a senhora?
Maria da Penha - Olha, eu superei porque no momento em que eu quis me mexer após o tiro e não consegui, pedi muito a Deus para não deixar minhas filhas órfãs de mãe. O sofrimento delas era muito grande. A mãe sempre consegue driblar alguma violência, consegue desviar as crianças de alguma violência, quando é possível. Então pedi muito a Deus que me deixasse sobreviver de qualquer maneira, mas não deixasse minhas filhas órfãs de mãe. Eu não me dei ao direito de reclamar da minha situação. Porque foi um pedido meu que Deus atendeu. E eu precisava estar viva por causa delas. Então não tive revolta do que eu passei em consequência do tiro. Eu tive mais revolta da omissão do Poder Judiciário. Tanto é que o Brasil foi condenado internacionalmente por ser negligente com a violência contra a mulher no País e ter assinado tratados internacionais, se comprometendo a mudar esse tipo de situação. O Poder Judiciário era altamente machista e engavetava...meu processo foi engavetado muitas vezes.
OP - A senhora fala isso porque seu caso foi em 1983, seu ex-marido passou por dois julgamentos e ele só foi preso já perto de prescrever o crime, em 2002.
Maria da Penha - Exatamente, faltando seis meses para o crime prescrever. Foi nesse trabalho para ele ser julgado, no trâmite do processo para a condenação dele, que eu me envolvi com os movimentos sociais. Eu tomei conhecimento, não tinha noção do que era a violência contra a mulher, no que existia de tão presente na vida das pessoas. E do que existia escondido. Porque as mulheres ainda hoje, numa proporção muito menor, elas têm vergonha de denunciar e de admitir que sofrem violência doméstica. Mas de primeiro, nossa, a gente não via isso, essa confissão pública. Porque não tinha mesmo como a pessoa enfrentar um poder judiciário que não existia, era uma justiça que fazia de conta. Foi criada a Delegacia da Mulher? Foi. Pode denunciar, mas você que vai entregar a intimação.
OP - Também na delegacia, quando a mulher ia fazer a denúncia, não era tratada devidamente.
Maria da Penha - Era toda uma estrutura cultural que, à medida que os movimentos de mulheres foram mostrando, fazendo reuniões, comemorando o Dia da Mulher para desnudar essa questão da violência a ser paga pela sociedade.
"A Justiça precisa ser justa, precisa ser forte, precisa aplicar devidamente a lei. Além disso, uma das determinações que saíram no relatório do meu caso, a OEA determinou isso, é preciso investir em educação desde o ensino fundamental."
OP - O Judiciário realmente melhorou? Essa estrutura que a senhora fala que era arcaica, atrasada, ela mudou?
Maria da Penha - A gente ainda tem modelos de juízes muito machistas. Inclusive, graças à imprensa que mostra esses casos, temos visto coisas muito absurdas. Juízes que dizem "eu não conheço a Lei Maria da Penha nem quero conhecer", não dão medidas protetivas. A lei determina, por exemplo, que quando um agressor estiver preso por oferecer perigo à vida da vítima, e no momento em que o juiz for soltar, essa mulher tem que ser notificada e tem que ser protegida. Vamos dizer, até transferida para uma casa abrigo, ela tem que sair do espaço dela para ser protegida. E aconteceu o assassinato de uma mulher, o juiz soltou este agressor e ele foi até a casa, ela assustou-se e ele a matou ali, na hora que saiu da prisão.
Então o juiz foi questionado pela imprensa e disse "eu não podia adivinhar que ele queria assassinar ela". Por que ele estava preso? Porque ele oferecia perigo. E por que ele não se inteirou do que a lei determina? É um descaso, fazer de conta que é juiz sem ser. Acho que os órgãos responsáveis, os conselhos fiscalizadores da profissão, devem capacitar as pessoas que vão atuar frente a uma lei que determina muito ódio. Com essa lei, o agressor fica com muito ódio, por não ter mais a liberdade que ele tinha antes da lei, de fazer e acontecer e ficar por isso mesmo.
A Justiça precisa ser justa, precisa ser forte, precisa aplicar devidamente a lei. Além disso, uma das determinações que saíram no relatório do meu caso, a OEA determinou isso, é preciso investir em educação desde o ensino fundamental. Por que quantas crianças vivem a violência doméstica dentro de casa vendo o pai bater na mãe? Alguns são maiores, entendem que aquilo é errado, mas não têm poder de combater. Outros, desde pequenos, repetem essa agressão porque estão vendo ela acontecer ali.
OP - Como foi a reação de suas filhas com o caso e com o pai?
Maria da Penha - Meus pais ficaram transtornados quando foi descoberto pela Polícia que ele havia simulado um assalto. Porque depois que vim do hospital, passei uns seis meses ainda em contato com ele, já estava hospitalizada. E depois fui a Brasília, no Hospital Sarah Kubitschek, quando voltei, fiquei em cárcere privado por mais ou menos 15 a 20 dias. Então foi ali que eu tomei conhecimento, pelas moças que trabalhavam na minha casa, que havia um zunzunzum sobre a conversa que ele apresentou para todas as pessoas, que não acreditaram nele. Testemunhas, vizinhos... porque havia contradições. E eu acreditei na história que ele contou. Só no momento que me despertaram para essa possibilidade foi que eu resolvi sair de casa.
OP - Mas como suas filhas reagiram?
Maria da Penha - Minhas filhas eram muito temerosas dele, porque ele era muito violento com elas. Elas não podiam errar em nada. Nada de coisa de criança. Se ele estivesse de péssimo humor, elas pagavam por isso. Então elas não tomaram conhecimento, até o primeiro julgamento, que ele tinha sido o autor da tentativa de homicídio. A gente falava no processo e tal, quando estourou a bomba, depois de oito anos, que o julgamento ia acontecer, a imprensa começou a dar cobertura. Aí nós conversamos que iria haver o julgamento, mas elas não se tocaram muito da coisa. Quando houve a anulação do julgamento, foi quando fiquei numa situação muito deprimida. Porque estava tudo ali, todas as provas, todas as divergências dele durante o processo, as contradições. Eu fiquei mesmo sem conversar muito, sem querer lutar mais. Um mês depois eu disse "não, eu estou fazendo o que ele quer", eu preciso lutar. Aí eu escrevi um livro, não sei se você chegou a ler, "Sobrevivi... Posso Contar".
" Porque tem uma história aqui que vocês não conhecem. Mas de antemão é necessário que vocês aprovem. Porque quem fez isso com a mãe de vocês precisa pagar. "
OP - Lembro quando a senhora lançou o livro (em 1994), lembro bastante da repercussão.
Maria da Penha - Foi uma repercussão muito grande, foi muito concorrido. Esse livro, depois que eu escrevi, ele todo datilografado, não existia nem computador (risos), foi na máquina, já tava o boneco feito (o material finalizado antes de ir para impressão), então eu falei: meninas, queria que vocês lessem esse livro e me dissessem se eu posso publicar. Porque tem uma história aqui que vocês não conhecem. Mas de antemão é necessário que vocês aprovem. Porque quem fez isso com a mãe de vocês precisa pagar. Eu gostaria que vocês lessem com atenção e dizer se vão sofrer por isso ou se aprovam. Aí elas foram ler e foi quando tiveram uma crise de choro. Elas tomaram conhecimento da realidade. Elas disseram: "Mãe, pode publicar". Elas tomaram conhecimento, mas foram firmes. Eu disse: "Minha filha, agradeço muito o que vocês estão dizendo porque eu precisava desse apoio. Eu preciso fazer isso. Vocês não mereciam essa situação nem eu também." E elas não tinham esse amor por ele pela maneira como ele as tratava. É tanto que quando eu fiquei com a guarda delas, tinha o final de semana que ele vinha apanha-las, eu morria de medo de ele até fugir com elas, a mamãe ficava rezando. Eu dizia 'a sua tia tem um aniversário pra ir de criança. Vocês preferem ir com a sua tia para o aniversário ou querem ir com seu pai?'. "Não, mãe, a gente vai com a tia". Quando ele chegava eu dizia, 'olha, elas não vão poder ir hoje porque elas têm um aniversário. Hoje vão sair com a tia delas', 'hoje tem aniversário da coleguinha'. Entendeu? Eu dava essas desculpas e elas se sentiam protegidas, porque eu estava tendo aquele poder de dar um não a ele, pra elas não passarem por aquilo.
OP - Esse exemplo que a senhora contou é o que você sempre encontra em suas palestras, em suas falas públicas?
Maria da Penha - Sempre, dependendo do que perguntam, eu lanço essas coisas.
OP - Estamos falando de uma coisa que parece ser muito simples, que é uma relação familiar, conjugal. O que foi mais difícil nessa luta, nesses anos que você batalha por essa causa?
Maria da Penha - O mais feliz foi o momento em que meu processo foi aprovado internacionalmente. Foi enviada a recomendação de o Brasil juntar às leis brasileiras. E algumas outras recomendações. Aí a dificuldade da criação das políticas públicas. Porque não adianta ter uma lei e não ter as políticas públicas, a estrutura. Por exemplo, eu acho que nas grandes cidades, as capitais, 15 anos se passaram e agora que podemos dizer que elas estão mais ou menos bem estruturadas. Não com a excelência de estrutura, mas estão bem estruturadas. Aliás, bem estruturadas em certo sentido. Por exemplo, tem uma política pública que temos aqui no Ceará, que é a Casa da Mulher Brasileira (CMB). Nesse local a mulher encontra todas as políticas públicas que fazem com que a lei saia do papel. Tem a Delegacia da Mulher, o Centro de Referência.. tudo isso. Mas é necessário que essa Casa da Mulher Brasileira exista em todos os estados brasileiros.
OP - E ela não existe atualmente?
Maria da Penha - Ela não existe. No país temos cinco estados com a Casa da Mulher Brasileira. E algumas estão já sendo... sabe, sem muita verba para continuar. Aqui no Ceará ela tá muito bem, graças a Deus. Você sabe quais são as políticas públicas?
OP - Sim. Defensoria, Ministério Público, Polícia Civil, Vara de Justiça, o atendimento psicológico, uma boa estrutura. Minha pergunta seguinte inclusive era sobre isso. Numa conversa prévia que tivemos, você me disse que as políticas públicas não avançaram no Brasil. O que mudou neste governo atual, nos últimos anos, na política de combate à violência doméstica?
Maria da Penha - Olha, aqui no Ceará o Governo do Estado está bancando a Casa da Mulher Brasileira. Porque houve um corte de verbas. Houve um momento em que disseram 'a Casa da Mulher Brasileira no Ceará vai acabar'. Mas aí houve um reajuste e o governo estadual supriu essa parte. Então é uma tranquilidade. Você já pensou a mulher vítima ir para o bairro tal para a delegacia da mulher, ir para outro bairro onde está o Tribunal, precisa do Ministério Público. Então é sem lógica. A mulher que não tenha condição sair por aí com os filhos debaixo do braço, para ir nesses vários locais, ainda com medo porque está fazendo uma coisa que não é do agrado de seu agressor.
OP - Seguindo ainda com a pergunta, mas o que realmente mudou nesses últimos anos? Esse corte de verbas aqui foi bancado pelo Estado. Nacionalmente, você sabe como está?
Maria da Penha - Nacionalmente, tem casas que estão deficitárias no atendimento e não houve mais a criação de nenhuma nova casa.
OP - Não avançou?
Maria da Penha - Não, não avançou. Antes da pandemia, e espero que agora seja resgatada essa ideia, o governador prometeu fazer a Casa da Mulher Cearense. Em três regiões do Estado. Já é uma política baseada na Casa da Mulher Brasileira. Então aquela região pode atender as cidades circunvizinhas no que for necessário. E a nossa bandeira de luta do Instituto Maria da Penha é que exista o Centro de Referência da Mulher em todo município cearense. Em todo município brasileiro exista um Centro de Referência da Mulher, por menor que seja esse município, dentro do posto de saúde.
"O que eu mais quero é que o governo do Ceará crie e consiga que os prefeitos coloquem em seus municípios os centros de referência da mulher dentro do posto de saúde."
OP - Semelhante a um conselho tutelar?
Maria da Penha - Isso. O Centro de Referência da Mulher é para um atendimento psicossocial e jurídico. É a equipe que vai tomar conhecimento da situação daquela mulher. Sua situação financeira, psicológica, o fato como acontece e o que ela pode fazer. Então, esses três profissionais vão ajudar essa mulher a tomar uma decisão. E no momento que essa mulher tome essa decisão, ela já pode ser encaminhada para uma casa-abrigo, se for necessário. Ela chegar a ser encaminhada, decidir ir, a uma delegacia da mulher para fazer sua denúncia. Só que os pequenos municípios, os menores, bem pequenos, a única coisa que tem lá é o posto de saúde.
E é necessário que exista o centro de referência dentro do posto de saúde. Se essa mulher precisar ir a um centro de referência e, por uma vaidade, o prefeito fez um espaço público notório, ela não vai. Porque na hora que ela sair de lá, quando chegar em casa o marido já soube que ela esteve lá. Em cidade pequena todo mundo fala de todo mundo. No posto de saúde, ela vai até lá porque pode estar cuidando do filho que está doente, porque ela está doente, psicológica ou fisicamente. Então nesse espaço dentro do posto de saúde, ela vai ser atendida com mais tranquilidade para ela. Ela vai absorver as informações de uma forma segura. É isso que eu tenho falado nas minhas palestras, nos encontros. O que eu mais quero é que o governo do Ceará crie e consiga que os prefeitos coloquem em seus municípios os centros de referência da mulher dentro do posto de saúde.
OP - A imagem que se tem é que a Lei da Maria da Penha é uma lei que funciona, mas você mostra aí que vários avanços ainda precisam acontecer.
Maria da Penha - E são coisas que, por exemplo, não precisam construir um prédio. Vamos aproveitar o posto de saúde.
OP - A senhora teve algum tipo de encontro, contato com alguém do governo federal, de algum ministério, sobre a causa? O Instituto Maria da Penha foi chamado para alguma audiência, para discutir algum ajuste da política pública?
Maria da Penha - Não, no atual governo não tive nenhum encontro direto com a Damares (Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro). Mas eles já têm conhecimento de alguns projetos que o Instituto encaminhou, mas não veio resposta.
OP - Nunca houve nenhum encontro presencial nem algum retorno?
Maria da Penha - Não, nada.
OP - Eu queria lhe perguntar sobre o caso do DJ Ivis. Houve muita repercussão. Ao mesmo tempo que o vídeo choca muito, o DJ, já famoso, ganhou mais seguidores após o episódio. Ganhou mais adesão nas redes sociais. Como a senhora interpreta esse fenômeno?
Maria da Penha - Eu fiquei perplexa. Porque aquelas cenas mostrando a superioridade de força sobre uma mulher fragilizada e isso ter o apoio de outros? Quer dizer, nossa sociedade está muito doente. Então a gente precisa cada vez mais investir em educação. Como é que esse rapaz se tornou tão violento? Ele viu o pai fazer isso com a mãe? Ele foi criado nesse clima? De a mãe esconder? Porque naquele tempo não era permitido denunciar, não havia essa visibilidade do direito da mulher. Que nós temos direito, vivemos uma vida sob violência, a mulher sempre era uma pessoa de segunda categoria. A família dele deu essa estrutura de educação para ele? Os pais dele se posicionaram a favor mesmo tendo a cena. É uma sociedade muito doente, muito doente.
"E você precisa ver que quando acontece um feminicídio, morre uma mulher e quantas crianças ficam na orfandade? Quantas crianças são carentes hoje do amor de sua mãe."
OP - Essa adesão é tão chocante quanto ter visto aquelas imagens das agressões. E também se fala da pandemia ter potencializado esses casos. Mas falamos de seu caso, que tem quase 40 anos que aconteceu, e de uma pessoa famosa, de 30 anos de idade, que tinha informação suficiente sobre uma lei que está completando 15 anos. Já existe uma sociedade informada sobre o crime de agressão à mulher, mas os casos aumentam.
Maria da Penha - E você precisa ver que quando acontece um feminicídio, morre uma mulher e quantas crianças ficam na orfandade? Numa progressão geométrica. Quantas crianças são carentes hoje do amor de sua mãe, relembram durante os seus momentos de silêncio as violências observadas. Qual o sentimento de alegria para a vida essa criança tem? Será que a família vai conseguir suprir esse sofrimento? É uma coisa muito séria, muito triste.
OP - Ela vai ser criada em outra estrutura familiar, em outro ambiente que pode até replicar situações que ela viveu ou ela vai incorporar essa agressão para o resto da vida.
Maria da Penha - Geralmente, quando a família tem condição financeira de procurar a Justiça, para a família da mulher ficar com a guarda daquelas crianças que ficaram órfãs - é mais fácil a família da mulher ficar - mas quando ambas as família são pobres, o homem se acha muito no direito, "meus filhos ficam comigo". Que tipo de criação esse homem vai dar, que tipo de violências esse homem vai fazer?
OP - No caso do agressor, a medida protetiva funciona? Ele deixa de cometer e regride, de fato, na violência?
Maria da Penha - Existe um projeto que está trabalhando a questão para o agressor. Esses agressores que estão presos participam de um curso. O Instituto Maria da Penha em Recife faz um trabalho nesse sentido. Eles sofrem também com a educação que sofreram. Muitos deles estão repetindo como agressores aquilo que viram. E que foram educados a aprender a não chorar, aguentar a dor, a não levar desaforo pra casa, a bater. E a bater da maneira que o pai ensinou e demonstrou, a bater na mulher que tinha em casa e que era a mãe deles.
OP - A senhora uma vez falou, em entrevista ao O POVO, que na sua infância pensava num príncipe quando era menina, amadureceu e acabou casando, em vez de ser com o amor, era o seu agressor. Ele que, no andamento da relação, se mostrou uma pessoa completamente diferente da que você conheceu. A mulher agredida costuma desconhecer esse companheiro da relação? Ela se surpreende, se cala diante dos episódios, por esse desconhecimento?
Maria da Penha - Eu tiro pelo meu caso, achei que tinha encontrado a pessoa certa. Até porque eu tive um relacionamento (anterior ao marido que tentou matá-la) em que eu sofri muita agressão psicológica. Meu (primeiro) marido na época era muito ciumento, monitorava horário de entrada e de saída da faculdade. Por que demorou tanto, o que houve? Isso aí me desgastou muito e foi o motivo de romper o relacionamento. O outro, me envolvi com ele inclusive porque era uma pessoa muito querida nos grupos nossos de amigos. Era uma pessoa prestativa, amiga. Era aquela pessoa que eu tinha prazer em conversar, em contar com ajuda. Nessa época eu morava em São Paulo com três amigas, às vezes tinha um conserto simples para fazer e ele era habilidoso. Eram qualidades dele que me davam ânimo de pensar que estava com a pessoa certa. Eu via meu pai fazer isso, ajeitar alguma coisa, consertar, então achava isso legal. Como a gente saía sempre em grupo, tinha uma convivência bem amigável. No momento em que o nascimento das nossas filhas lhe proporcionou a sua naturalização brasileira, foi o momento em que ele mudou totalmente. Ele conseguiu o que ele queria, se tornar brasileiro.
OP - O que a senhora diz para uma mulher não ser agredida ou não esconder essa agressão?
Maria da Penha - Eu acho que cada vez mais a imprensa é responsável para informar a mulher que ela não deve esconder. Se ela tem vergonha de dizer para sua família, que ela procure uma amiga com quem possa conversar. Inclusive ela criar uma senha com essa amiga. Por exemplo, a amiga saber que ela sofre determinados tipos de violência e, quando estiver num momento difícil, que ela ligue pra essa amiga e fale a senha. Para essa amiga saber que está precisando de ajuda. E ela ir pra casa dessa amiga, ligar para o 180 ou tomar um posicionamento e ajudar essa amigidá-la, conversar com ela, acompanhar essa amiga, ir num centro de referência, para se situar. Porque quem está ali pode ter uma visão melhor do que quem está no fogo ali se queimando. Às vezes não sabe nem que direção tomar. É tanta coisa, tanta turbulência na vida que ela não sabe nem que direção tomar. Que ela escolha uma amiga do seu coração, que tenha condições de ajudá-la.
OP - Que na confidência ela revele o drama que esteja passando. Porque é uma história sempre que tende a ser trágica.
Maria da Penha - Acho que uma confidente é muito bom como estratégia para sair daquela situação. Não precisa expor isso para o agressor porque vai ser pior para essa vítima. Pelo amor de Deus, não diga "vou lhe botar na lei Maria da Penha" porque isso piora a situação. Que ela consiga se fortalecer na surdina. Para que quando ela tome uma decisão e consiga se livrar daquele relacionamento, ela faça isso com segurança.
OP - O propósito da Lei Maria da Penha hoje é entendido na sociedade brasileira?
Maria da Penha - De uma maneira geral a sociedade aprova e acha que realmente foi um avanço. Muito ainda precisa ser feito, mas muito precisa ser feito pelos gestores públicos dentro do seu pequeno município, por menor que ele seja.
Leia aqui a entrevista de Maria da Penha para as Páginas Azuis em 2010
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