Logo O POVO+
"Minha vida é o próprio legado"
Reportagem Seriada

"Minha vida é o próprio legado"

Administrador, advogado, empresário e escritor, João Soares Neto une negócios e arte numa trajetória dedicada à cultura e consumo em Fortaleza
Episódio 20

"Minha vida é o próprio legado"

Administrador, advogado, empresário e escritor, João Soares Neto une negócios e arte numa trajetória dedicada à cultura e consumo em Fortaleza
Episódio 20
Por


 

O cronista cearense Milton Dias (1919- 1982) bem o disse: "Entre a boca da noite e a madrugada tudo aumenta — o amor, a paz, o sono, o sonho, o silêncio, o ódio, o mistério, o medo, a população". Em um intervalo de horas, a Cidade se movimenta — em oito décadas, ela se recria. Completar 80 anos é se voltar para o essencial, uma brecha no tempo entre deveres e títulos, reuniões e prazos. Ao 22 de agosto de 2021, João Soares Neto celebra 80. Entre a boca da noite e a madrugada, muita coisa aprendeu ao longo dessa trajetória: conheceu gente de toda sorte; gozou de encontros com a vida; lamentou colisões com a morte.

Administrador, advogado, empresário, cônsul honorário do México, escritor, membro da Academia Cearense de Letras — os epítetos são múltiplos. Empreendedor do Shopping Benfica, instituição que mantém diversas atividades culturais como a Galeria BenficArte e Espaço de Leitura, João Soares Neto acompanha passado, presente e futuro na memória das paredes do shopping, retratos de uma Fortaleza que se renova nas ruas e academias que se avizinham.

"Nenhum shopping de Fortaleza tem a capacidade do Shopping Benfica de entrar na área de cultura e cinema — até porque isso não é métier de shopping center, mas sim métier de uma pessoa que une negócios e arte", reflete o empresário e escritor. Nestas oito décadas completas, o cearense vislumbra futuro em tudo o que edificou na Cidade.

 

 

O POVO: O senhor é primogênito de uma numerosa família. Como foi a sua infância em Fortaleza? Em que bairros o senhor viveu nos primeiros anos de vida?

João Soares Neto: Eu sou o filho mais velho de uma família que foi constituída por um ex-seminarista do Convento dos Capuchinhos que resolveu fugir porque não tinha vocação para ser padre e muito menos frade (risos). Meu pai se chamava Francisco Bezerra de Oliveira; minha mãe, Margarida Saraiva Caminha. Foram duas pessoas com uma mão na frente e outra atrás, com muita vontade de constituir uma família, que tiveram nove filhos. Sou cearense de Fortaleza, nasci em 22 de agosto de 1941. Como primogênito, eu precisava ser referência para os demais irmãos. Quando eu tinha cinco anos, minha mãe me mandou ir para a escola acompanhado de uma empregada da família. "Eu vou sozinho!", respondi. "Você é muito pequeno", ela argumentou. Nós chegamos a um acordo: eu fui em uma calçada e ela, em outra. Sempre fui um espírito independente. Moramos na Rua Princesa Isabel, na Avenida Visconde do Rio Branco, no Bairro de Fátima…

 

"Sem ler eu não sou ninguém, a leitura é que me transformou nessa pessoa independente, irreverente e que procura sempre o novo para não ficar na mesmice." João Soares Neto, sobre como se tornou leitor

 

OP: A sua relação com a literatura e demais artes se iniciou ainda na infância, por influência familiar?

João Soares Neto: A família da minha mãe, Saraiva Leão, tem muita ligação com a literatura — meu primo Pedro Henrique Saraiva Leão (1938-) é membro da Academia Cearense de Letras. Eu sempre ganhei de presente livros, então cedo comecei a ler. Um livro que me marcou muito foi "Viagem ao redor do meu quarto", do francês Xavier de Maistre. Li quando eu tinha uns 12 anos e procurava observar o que tinha no meu quarto, como flâmulas do Fortaleza (time de futebol)... Um dia, meu pai comprou uma biblioteca, duas estantes fechadas, e eu comecei a ler tudo. Aos 16 anos, criei no Bairro de Fátima o Grupo de Instrução e Recreação Atlética de Fátima (GIRAFA), onde fazíamos leituras também. Quando a Biblioteca Pública do Ceará era na Solon Pinheiro, fiz a ficha e fui retirando livros e o que era vício se tornou uma doença que até hoje me compraz, me alegra e faz sentido. Sem ler eu não sou ninguém, a leitura é que me transformou nessa pessoa independente, irreverente e que procura sempre o novo para não ficar na mesmice.

OP: Neste sentido, quais suas principais referências literárias? Que autores marcam sua trajetória enquanto leitor e também como escritor?

João Soares Neto: Entre os brasileiros, o autor que me marcou e marca me marca foi Monteiro Lobato. Para mim, ele é uma referência porque ele foi também advogado, empresário, dono de editora. Aquilo que Monteiro Lobato escreveu para adultos não é tão valorizado quanto "Sítio do Picapau Amarelo", mas Monteiro Lobato morou um tempo nos Estados Unidos e essa passagem dele pela América foi muito importante. Quando ele voltou ao Brasil, entre os anos 1930 e 1940, afirmou que o País tinha petróleo e foi preso várias vezes pelo Getúlio Vargas. Outro autor que tenho grande admiração é o Capistrano de Abreu. O pai dele o enviou para Recife para fazer faculdade de Direito, mas como ele não gostava, foi reprovado. O Capistrano é meu maior guru. Ele nunca perdeu o vínculo com o Ceará, mesmo quando foi para o Rio de Janeiro... Capistrano nunca deixou de dormir de rede. O que me comove é que ele era um antipático por natureza, mas tinha profundos amigos.

 

"Eu passei a minha vida fazendo política… Tinha que estudar para manter duas faculdades e escrever ao mesmo tempo uma coluna chamada "Informes Acadêmicos" que saía diariamente no jornal "Correio do Ceará"." João Soares ao falar sobre a militância e o conhecimento

 

OP: O senhor é bacharel em Administração pela Universidade Estadual do Ceará, graduado em 1964, e em Direito pela Universidade Federal do Ceará, em 1965. Como nasceu o interesse por essas áreas do conhecimento? Como foi conciliar dois cursos?

João Soares Neto: Nenhum dos diplomas que estão na parede do meu escritório foram dados gratuitamente, nenhum foi comprado: foram frutos da minha atividade perante o mundo. Fui líder estudantil, secretário de uma entidade chamada União Cearense dos Estudantes Secundários, depois entrei na Faculdade de Direito e na Escola de Administração — uma à noite, outra pela manhã. Também a trajetória nessas duas faculdades também tem a ver com a política. Era o tempo do parlamentarismo no Brasil, então na Faculdade de Direito foram eleitos deputados e eu fui o segundo deputado mais votado, sendo do primeiro ano. Eu passei a minha vida fazendo política… Tinha que estudar para manter duas faculdades e escrever ao mesmo tempo uma coluna chamada "Informes Acadêmicos" que saía diariamente no jornal "Correio do Ceará", eram notícias de acadêmicos. Enfim, fui estudando e procurando aprender. Na Escola de Administração, eu tinha professores fabulosos! Terminei a Escola de Administração um ano antes da Faculdade de Direito. Eu tinha uns 18 anos quando iniciei esse caminho na academia.

 João Soares Neto começou a escrever ainda estudante universitário no Correio do Ceará e passou por outros jornais de Fortaleza(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA João Soares Neto começou a escrever ainda estudante universitário no Correio do Ceará e passou por outros jornais de Fortaleza

OP: A atuação no ramo habitacional marca sua entrada nos negócios. O que levou um apaixonado por literatura a se aproximar do mercado habitacional?

João Soares Neto: A primeira empresa que criei se chamava Consórcio Cearense de Administração, desativada quando fundei posteriormente a Planos Técnicos do Brasil. O Consórcio trabalhava com administração, que era uma coisa absolutamente nova no Brasil até então. Eu me formei e sou uma pessoa desobediente, então não tinha condições de ser empregado. Eu descobri que tinha um nicho no Brasil muito novo chamado Sistema Financeiro da Habitação (SFH), então resolvi realmente aprender e aprendi. Comecei, então, a trabalhar com projetos habitacionais e criei uma empresa chamada Planos Técnicos do Brasil. Em 1964, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH) e ninguém sabia o que era essa instituição. Foi nessa época que conheci Elano Paula, engenheiro que trabalhava com construção e queria entrar no sistema financeiro da habitação, mas não tinha conseguido que o BNH examinasse o processo dele. Eu disse: "Vou conseguir. Se eu não conseguir, você não me paga nada. Se eu conseguir, você me paga x". Fui ao Rio de Janeiro e consegui. Elano e Walder Ary formaram um grupo e a Planos surgiu para dar apoio aos projetos feitos não só no Ceará, Piauí, Maranhão, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. A Planos foi a empresa que conseguiu reunir pessoas, todas mais velhas que eu, em sua maioria professores universitários, para formar a equipe técnica. Minha entrada no ramo habitacional foi uma busca de ser pioneiro, uma pessoa que não fazia o que os outros faziam.

OP: Além de administrador, advogado e escritor, o senhor é reconhecido e consolidado empresário. O que despertou o desejo de empreender?

João Soares Neto: Eu acredito que a leitura. Também sou apaixonado por cinema — tenho orgulho de dizer que eu sou o único sócio honorário da Academia Cearense de Cinema —, então aprendi muita coisa vendo filmes e assistindo a séries. Uma coisa puxou a outra... Meu pai queria que eu fosse servidor público porque era seguro, mas eu cheguei para ele e disse: "Isso não serve para mim, eu vou ser empresário" e fui me aventurar. O Consórcio era eu, eu e eu. Comecei sozinho, mas depois um grande amigo começou a trabalhar comigo, Ananias Josino Lobo. O empresariado é um feito desse menino velho abusado que teve que ir derrubando cancelas e portas porque nenhuma se abriu para mim.

 

"Tenho 11 livros publicados, entre crônicas e contos. Acredito que eu tenha sido um dos primeiros a inventar microcontos — histórias contadas com começo, meio e fim em um parágrafo. Publiquei meu livro de microcontos também em Espanhol." João Soares, ao abordar sua produção literária de crônicas e contos

 

OP: O senhor tem 11 livros publicados — entre eles, obras como "Sobre a Vida e o Amor" (1999); "Microcontos" (2000); Conversas de Domingo (2009) e "Experiência como Presidente" (2017). Como o leitor se tornou escritor? Quais foram suas primeiras experiências com a escrita?

João Soares Neto: Meu primeiro exercício de escrita foi no jornal "Correio do Ceará" com a coluna "Informes acadêmicos" nos anos 1960. Eu escrevia no jornal como empregado, recebendo como jornalista. Um dia, o Dr. Eduardo Campos, que era o diretor do Diários Associados à época, me convidou para escrever uma outra coluna sobre administração e negócios. Escrevi também no O POVO por causa da minha relação pessoal com o Demócrito Rocha, nós éramos contemporâneos, mas sem nenhuma periodicidade. Depois, quando surgiu o Diário do Nordeste, escrevi anos e anos como cronista aos domingos. A escrita literária nasceu como consequência natural. Tenho 11 livros publicados, entre crônicas e contos. Acredito que eu tenha sido um dos primeiros a inventar microcontos — histórias contadas com começo, meio e fim em um parágrafo. Publiquei meu livro de microcontos também em Espanhol.

OP: Em 2013, o senhor ocupou a cadeira 35 da Academia Cearense de Letras (ACL), na vaga deixada pelo acadêmico Alberto Nepomuceno de Oliveira…

João Soares Neto: O caminho que eu trilhei foi se encadeando principalmente pela curiosidade, um dos principais adjetivos; a minha curiosidade e a busca do conhecimento para transformar em alguma coisa. Eu participei de vários grupos culturais antes de entrar na Academia Cearense de Letras: fui fundador e também presidente da Academia Fortalezense de Letras; hoje sou sócio honorário. Eu era amigo muito próximo da escritora Natércia Campos e, quando ela morreu, aventaram am possibilidade de eu entrar na vaga dela, mas eu neguei porque não entra em vaga de amigo meu. Passei alguns anos para não entrar na vaga de pessoas que eu conheci. O patrono da minha cadeira é Tomás Pompeu de Sousa Brasil (membro fundador e presidente da Academia Cearense de Letras fundada em 1984). A minha entrada na ACL foi fruto da atuação na Academia Fortalezense de Letras. Hoje eu vejo a ACL, presidida pelo Lúcio Alcântara, como uma instituição em boas mãos.

OP: Criada em agosto de 1894, a Academia Cearense de Letras é pioneira do gênero no País. Qual é a importância da manutenção desse espaço, em sua leitura?

João Soares Neto: A instituição literária é um bafejo, uma organização que nos deixa mais leves. As pessoas não vivem só de pão: as pessoas pensam, sentem, escrevem. Aqui no Shopping Benfica, por exemplo, nós já fizemos dezenas de lançamentos de livros. As pessoas querem ser lidas e ouvidas. Livros e jornais em papel ainda me encantam.

João Soares Neto, empresário e escritor (Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA João Soares Neto, empresário e escritor

OP: O apreço pela cultura é marca expressiva em um dos seus mais notáveis empreendimentos: o Shopping Benfica. Desde os quadros no térreo às exposições que o espaço abriga, o Benfica costura consumo e arte. Quais os desafios na gestão dessa ideia?

João Soares Neto: O Shopping Benfica foi uma teimosia pessoal minha. O imóvel era de um banco, tomado de uma empresa... Antes de comprar o imóvel, em 1996, eu perguntei a algumas pessoas o que deveria fazer e nenhuma falou em shopping. Consultei experts que me disseram para não fazer nada no Benfica porque é um bairro muito pequeno, que era melhor na Aldeota. Quando alguém dizia que eu não deveria fazer, mais vontade eu tinha de fazer! No dia 30 de outubro de 1999, o Benfica foi inaugurado — e foi inaugurado de uma forma bem pouco comercial: ao som da Camerata da Universidade Federal do Ceará e com 80 quadros nas paredes, até para tapar os buracos de lojas que ainda não estavam abertas. Começamos assim, misturando shopping com atividade cultural. Não é vantagem dizer que a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult/CE) já fez oito certames para diplomar entidades culturais e o Shopping Benfica ganhou em todos os oito anos. Não existe nenhuma empresa pública ou privada no Ceará que tenha oito certificados seguidos dados pela Secult e realmente a gente merecia. O Benfica é um bairro libertário, é um bairro diferente, é um bairro que tem todas as conotações políticas, principalmente de esquerda, e nós sempre convivemos muito bem com os integrantes das universidades. Acostumamos clientes e visitantes a se depararem com quadros: em todo o teto do piso térreo há quadros de pintores cearenses. O meu sonho foi fazer de uma empresa uma entidade cultural. Colocar isso na cabeça de um empresário normal, que não seja lunático como eu sou, não é aceitável.

OP: O Shopping Benfica se localiza num bairro universitário: avizinha-se da Universidade Federal do Ceará, das Casas de Cultura da UFC, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e também do Centro de Humanidades da UECE - Universidade Estadual do Ceará. Como é a relação do Shopping Benfica com esse público, com esse bairro?

João Soares Neto: O Benfica tem um entorno de 17 bairros e foram esses bairros que procuramos conquistar. Nenhum shopping de Fortaleza tem a capacidade do Shopping Benfica de entrar na área de cultura e cinema — até porque isso não é métier de shopping center, mas sim métier de uma pessoa que une negócios e arte. Vou resumir essa relação do shopping com o bairro e a universidade em um ato: quem eu convidei para cortar junto com a minha mãe a fita simbólica do Shopping Benfica foi o Reitor Antônio Martins Filho. O Benfica nasceu diferente e se consolidou neste sentido. Estamos sofridos por causa da Covid-19, sofridos por causa da invasão de shoppings no Ceará, mas o fato é que eu comemoro 80 anos e esse é o meu legado: não só o Shopping Benfica, minha vida é o próprio legado. Ter transformado um shopping em ser, ente cultural, museu de artes plásticas aberto ao público, com responsabilidade social constante e desde o princípio. Não fazemos quaisquer diferenças entre raças, pessoas e gêneros. Temos uma biblioteca infantil bonita, agradável. Nós somos abertos ao novo. 

 

 

 

 

O que você achou desse conteúdo?