Dois milhões de seguidores no Instagram, um milhão no Twitter e quase o mesmo número de inscritos no seu canal no Youtube. Aos 35 anos, a advogada Gabriela Prioli, mestre em Direito Penal pela USP, fala cada vez a mais gente. Com o recém-lançado “Política é para todos” (Cia das Letras), seu primeiro livro publicado, essa voz se amplia.
Em conversa com O POVO pelo Zoom, a advogada, professora, influenciadora e apresentadora da CNN trata dos principais temas da política atual, da polarização até as ameaças às instituições que pairam sobre os atos do 7 de setembro e as eleições do ano que vem.
Para ela, “os extremos não são a maior força na nossa política, eles talvez sejam mais estridentes”. Prioli ressalta, porém, que “a verdade é que a gente não vive uma necessária contraposição de extremos”.
“Isso, inclusive, é um argumento que equipara coisas que não são equiparáveis na política brasileira”, defende, afirmando que há no tabuleiro nacional um campo democrático, com vozes diversas e que precisam conviver entre si, e um outro, abertamente antidemocrático.
Sobre as possibilidades de que surja uma terceira via no campo eleitoral até 2022, a advogada diz que todas as chances existem, até mesmo de o presidente da República não entrar na disputa pela reeleição.
“Eu, sinceramente, acho que Bolsonaro constrói um caminho para poder sair pela tangente e sequer concorrer em 2022”, projeta.
Já sobre as constantes investidas do presidente contra o Judiciário e demais instituições da democracia, Prioli entende que esse jogo de forças alimenta a narrativa bolsonarista, que pretende fortalecê-lo, mas que não haveria espaço para um ato de força contra a Constituição.
“Os grupos que desempenham e usufruem desse poder há nos no Brasil – para eles, a nossa democracia estava ruim? Não me parece”, responde.
O POVO – “Política é para todos”, seu livro recém-lançado, tenta ampliar acesso a conceitos da política, mas também reafirma a política como ferramenta para resolução de conflitos. Como avalia o papel da política no Brasil de hoje, em meio a essa encruzilhada institucional?
Gabriela Prioli – Acho que dá para a gente conectar as duas coisas. A gente vem de um processo de demonização da política como solução, então a política se tornou sinônimo de algo negativo, de esquema, de interesses particulares, o que, na verdade, é o inverso daquilo que deveria ser a política. A gente deveria pensar a política de uma maneira mais comum, e essa demonização da política reflete um pouco o distanciamento da discussão política das pessoas normais, comuns. Eu adotei uma maneira de comunicar que reflete muito essa minha vontade de tornar o assunto acessível pra todo mundo, pra quem tem mais conhecimento sobre política, para quem tem algum conhecimento sobre política e para quem não tem nenhum conhecimento sobre política. Mas o que eu sentia do debate político é que era um debate que ridicularizava qualquer dúvida, que exigia que as pessoas se expressassem nele quase que (sempre usei essa expressão) como num baile de máscaras. A gente fala um dialeto que só algumas pessoas compreendem, e mesmo quem está dentro daquele grupo, se não compreende alguma coisa, finge que entendeu, porque se você confessar alguma dúvida ou incompreensão, pode ser rejeitado como alguém a quem não é permitido participar daquele círculo restrito dos grandes iluminados, das pessoas que podem discutir os assuntos.
O POVO – Ou ser cancelado, até, o que talvez seja pior.
Prioli – É, mas o cancelamento vem até num momento posterior dessa discussão da política. Penso nessa exclusão antes. Chegar numa discussão e alguém perguntar: você viu o que aconteceu, esse último embate entre os Poderes? Poxa, não. Não acompanhei. Como acha que vai ser tratado, dependendo do círculo? Porque, em alguns círculos, parece que se você não tiver todas as informações urgentes sobre aquele assunto, não pode entrar no debate. Só que eu gosto muito de uma frase do meu amigo Preto Zezé, quando deu entrevista ao Roda Viva (programa da TV Cultura), que disse o seguinte: “o material orienta a vida”. Eu sou filha de uma mulher que ficou viúva aos 32 anos e que, durante muito tempo, teve de se preocupar em saber como é que ela ia fazer para dar conta do dia e do dia seguinte. E aí não cabe a atualização constante sobre todos os assuntos. Eu vou dizer para essa mulher que a política não é para ela? Ou eu vou dar um jeito de pensar e falar: espera um pouco, vamos encontrar uma maneira de trazer essa pessoa para o debate? Porque senão o debate vai continuar restrito e a gente vai continuar sem pensar em soluções que partam de olhares diferentes, porque não tem pessoas diferentes incluídas nesse diálogo. Então, o livro “Política é para todos” renova e reafirma a minha crença de na política como uma possibilidade de solução dos nossos problemas, possibilidade também de diálogo, de interação entre pensamentos divergentes, desde que democráticos. Dentro da democracia existe espaço para a divergência, a democracia é o espaço do plural. Mas também é uma afirmação de que a gente tem que tentar desenvolver estratégias para trazer outras pessoas que não são alcançadas por debates – em termos mais difíceis, por exemplo – para dentro dessa discussão. Porque senão a política vai continuar sendo para alguns, e ela precisa ser para todos. Do contrário as soluções políticas nunca vão conseguir atender a desejos que reflitam não só os anseios da maioria, mas também garantam essa satisfação de anseios numa compreensão de que os direitos de minorias não podem ser violados. Que a gente tenha uma compreensão do papel político da proteção das minorias no país. Acho que foi isso que pretendi ao escrever esse livro.
"O livro “Política é para todos” renova e reafirma a minha crença de na política como uma possibilidade de solução dos nossos problemas, possibilidade também de diálogo, de interação entre pensamentos divergentes, desde que democráticos"
O POVO – Fica patente nesse trabalho a preocupação de incluir e ampliar atores no debate político, traduzindo conceitos que muitas vezes são complexos, como os de Executivo, Constituição, Legislativo, Judiciário etc. Como foi trazer isso para o dia a dia?
Prioli – Simplificar sem tornar simplório é uma dificuldade, mas acho que é a tônica de toda a minha comunicação nas redes. Eu desenvolvo essa habilidade a partir de muita escuta. Então é na interação com a galera que interage comigo e que me segue que eu consigo entender onde eu preciso ser mais clara, o que para mim parece que está simplificado o suficiente, mas não foi o bastante. Eu confesso que tive mais dificuldade por escrito do que oralmente. Venho de um mundo de tradição escrita muito formal, o Direito. Embora eu também tentasse ser simples nas minhas falas no Direito ou nas minhas petições, a gente tem essa formalidade, é o estilo da advocacia, que é muito próprio. Conseguir sair do oral e passar para o escrito e manter a característica da simplicidade que tenho na oralidade foi um pouco mais difícil. O principal foi isso nas revisões, tentar deixa ainda mais compreensível.
O POVO – Como você se vê nesse papel hoje de interlocução no mundo político com um público mais geral?
Prioli – Olha, acho que a primeira coisa quando me vejo nesse papel de comunicadora é que fico feliz. Eu falo sobre diversos assuntos, não só sobre política. A política é um dos meus assuntos, e isso também é uma afirmação. Explico por quê. Se a gente disser que para falar sobre políticas as pessoas só podem falar sobre política, quem fala sobre política é uma pessoa que fala apenas sobre política, isso exclui muitas pessoas. Então quando eu me posiciono como uma pessoa que fala sobre política e fala sobre moda e fala sobre maquiagem e fala sobre viagens e fala sobre literatura e fala sobre relacionamentos e fala sobre vida, o que estou dizendo é que pessoas com interesses diferentes, múltiplos, variados, podem falar sobre política também. A política pode ser um assunto também, ela não precisa ser o único assunto. Porque se a gente disser que só pode fazer parte da discussão política quem tiver a política como único assunto, de novo esse núcleo vai estar muito restrito. Isso também é uma afirmação.
O POVO – Acha que é possível estabelecer diálogo e conexão com posições que muitas vezes são extremadas?
Prioli – Eu acho que tem diferentes tipos de posicionamentos públicos. Tem um posicionamento que é radical porque quer transformar as coisas pela raiz, é fundamentado, é legítimo e é democrático. Tem pensamentos extremados que, muitas vezes, são exteriorizações de inseguranças. Se eu não admito qualquer diálogo ou refutação das minhas premissas, faço isso porque, se eu for contrariado, não vou saber me justificar. Eu fiz uma entrevista uma vez com o Boulos para o meu “GPS político”. Perguntei para ele se tinha interlocutores que ele considerava leais e bem-intencionados, mas que tinham ideias políticas diferentes das dele. E o que ele me respondeu, não foi exatamente nestes termos, mas o sentido da frase é esse, foi que quem tem medo de debater com quem pensa diferente é porque não tem consistência na sua própria visão de mundo. Eu tenho absoluta tranquilidade de falar com pessoas que pensam diferente de mim porque tenho segurança naquilo em que acredito, eu sei por que acredito naquilo e por que eu defendo aquelas posições. Os meus pensamentos têm alicerce. Agora, se você verbaliza ou exterioriza um pensamento só porque pega bem nas suas redes e não sabe muito por que defende aquilo, é natural que se sinta inseguro para entrar num debate em torno daquela questão. Muitas vezes o pensamento mais extremo, que não admite diálogo, está nesse lugar de insegurança, que é a mesma insegurança que ridiculariza a ignorância, a mesma que inviabiliza a crítica. É uma insegurança de posição. Às vezes a gente entrou na onda e quis pertencer, mas não sabe direito o que é e estava ali falando. E quando é questionado sobre o que pensa, se percebe num lugar de vulnerabilidade. É natural resistir, a gente é gente. O que eu digo é: tudo bem, agora vamos acalmar um pouco e tentar entender por que você pensa assim. Às vezes eu alcanço essa pessoa. Acho que dá pra conversar. A gente não vai atingir todo mundo, até porque esse lugar é também um lugar de conforto. Cada pessoa vive um momento na vida, e às vezes a gente está num momento de incompreensão, que não consegue nem olhar para dentro porque não temos condições mentais, mas a gente precisa continuar trabalhando porque senão a gente corre o risco de que quem grita mais acaba se mostrando como a maior força. Os extremos não são a maior força na nossa política. Eles talvez sejam mais estridentes. Mas a verdade é que a gente não vive uma necessária contraposição de extremos. Isso, inclusive, é um argumento que equipara coisas que não são equiparáveis na política brasileira. A gente vive no Brasil um momento específico, de uma força política que se tornou relevante nos últimos anos e que tem um discurso abertamente antidemocrático. Isso é um problema. E a gente tem um campo democrático diverso, com posições absolutamente divergentes dentro dele, mas que são posições que têm de poder conviver dentro de uma democracia plural. Existe um outro extremo inviável, eleitoralmente falando, numa posição ideologicamente oposta. Mas acho que estamos falando mais de redes. Temos que ver o que é disputa eleitoral e o que é disputa de rede social. São coisas diferentes.
"... a gente precisa buscar algum lugar de princípios, dos quais a gente não abre mão, mas identificação absoluta é muito difícil. Do contrário, a gente está procurando ídolo"
O POVO – Projetando o cenário de hoje e pensando em 2022, há possibilidade de uma candidatura ocupar espaços que já não estejam ocupados por uma candidatura consolidada à esquerda e outra à extrema-direita?
Prioli – Uma terceira via?
O POVO – Isso.
Prioli – Possibilidade sempre existe, mas a gente precisa ver como esses atores vão se articular para 2022. Possibilidade existe até de o presidente da República sequer concorrer, se a possibilidade de perder se afigurar muito provável, além de possível. Eu, sinceramente, acho que Bolsonaro constrói um caminho para poder sair pela tangente e sequer concorrer em 2022, porque ele vai preferir criar uma narrativa de mártir, de anulado pelo sistema e pelo establishment, como foi o discurso dele já em 2018, do que materializar uma derrota nas urnas. Então possibilidade existe para tudo ainda. Acho que existe um setor da população brasileira que não se vê representado por nenhuma das candidaturas que se apresentam como mais fortes para 2022, e esse setor democrático é legítimo e tem o direito de tentar edificar uma via de representação. É o que digo: dentro da democracia, a gente precisa legitimar mesmo aquilo que não é nossa visão. Porque se a gente disser que não deve ser tolerado tudo aquilo que não somos nós, ou que não seja muito parecido conosco, essa visão é autoritária, ela não é democrática. O democrático é dizer: essa é minha visão, vamos entrar nesse debate, mas tem pessoas que democraticamente discordam de mim e eu preciso construir alguma coisa no diálogo.
O POVO – Esses muitos nomes que têm surgido como terceira via ainda não têm conseguido, segundo pesquisas, fisgar esse eleitorado sem representação. Atribui isso a quê?
Prioli – Eu acho que a gente ainda está numa época de muita conjectura. Nessa época de conjectura, é natural que as pessoas digam que nada me representa porque tem muito de uma busca por representação absoluta e de identificação total. Eu também falo que a gente precisa buscar algum lugar de princípios, dos quais a gente não abre mão, mas identificação absoluta é muito difícil. Do contrário, a gente está procurando ídolo, e não representação política. Eu, pelo menos, tenho muita dificuldade de encontrar alguém com quem concorde 100% das vezes, nem comigo concordo sempre. Acho que tem esse movimento ainda de uma ressaca da crise da política como algo negativo, de que ninguém me representa, é tudo ruim, eu vou ser forçado a escolher, mas, em algum momento, as pessoas vão precisar entender que, se elas quiserem uma terceira via, só se constrói uma trabalhando por ela. Não dá para esperar que algo caia do céu.
O POVO – Tabata Amaral, deputada do PDT, defende posições semelhantes às de muitos homens dentro do partido, mas é mais perseguida nas redes sociais. Djamila Ribeiro, filósofa e escritora, estrelou uma propaganda de bolsa e foi alvo de ataques. Como avalia esses episódios e as barreiras para a mulher, seja com mandato, seja na vida profissional?
Prioli – A gente ainda vive num mundo que tenta conformar as mulheres a uma atuação muito restrita, então a gente pode até fazer política ou falar sobre política, desde que a gente faça e fale sobre política segundo a vontade dos nossos senhores. E os senhores podem ser homens ou mulheres, porque estamos todos inseridos nesse caldo de cultura conforme a gente vai amadurecendo e sendo socializado. Mulheres com uma existência livre, que manifestam seus pensamentos políticos ou fazem uma campanha de bolsa, mesmo que dessagrando alguns, incomodam. Não apenas no ambiente da política, que é formal e dominado pelo masculino, mas no ambiente da academia também. É uma pressão que a gente vê em vários lugares, por isso que é tão importante que tenhamos cada vez mais mulheres falando de política com liberdade ou falando de filosofia e fazendo uma campanha de bolsa ou de brinco ou de batom, porque nossa existência tem que ser livre. Existir com liberdade, para uma mulher, é uma manifestação política fortíssima e importante.
O POVO – Há uma crise instalada entre Judiciário, Executivo e Legislativo. Que saídas enxerga para esse problema? Acredita que o STF possa ter exorbitado suas funções e passado do ponto, como no caso do inquérito das fake news e dessas decisões mais recentes de Alexandre de Moraes?
Prioli – Acho que prefiro falar dessa crise de maneira mais ampla. Eu fui uma pessoa que, quando o inquérito das fake news foi instaurado, fiz algumas ressalvas em relação a ele. Meus posicionamentos são públicos. Mas chega um momento em que, se a democracia não se proteger contra iniciativas antidemocráticas, ela vai erodir por dentro. A gente precisa que exista algum tipo de freio para ataques deliberados, consistentes e reiterados à democracia. Mas manter esse clima de crise pode ser interessante também para quem, eleito para ocupar a cadeira de presidente da República, não conseguiu fazer nada, entregou o inverso do que prometeu para o seu eleitorado e precisa de uma desculpa para ter falhado de forma tão ululante. Insistir nessa retórica é também estratégia. Esticar o tempo todo a corda é também estratégia. Permite que muitas vezes o chefe do Executivo seja fortalecido pela dinâmica das redes sociais num momento em que ele se encontra extremamente fragilizado. Toda vez que um presidente, que tem 54% de pessoas que o consideram ruim ou péssimo, é colocado como alguém que possivelmente vai dar um golpe, de fraco ele passa automaticamente a forte. Essa dinâmica de continuar esticando a corda pode ser boa para a narrativa. Por isso falo que a gente precisa tomar muito cuidado ao comentar essas iniciativas e a crise entre os poderes. Antes do desfile dos blindados em Brasília, eu falei que isso era um grito de uma pessoa fragilizada, fraca, mas, no dia anterior nas redes, ele parece forte. Esse é o cuidado que a gente precisa tomar. Eu sei que muita gente fica o tempo todo com temor de golpe, mas eu acho que a gente precisa pensar que talvez a nossa democracia sobreviva não pelas melhores razões. A gente pode tentar pensar como quem ocupa o poder em vez de como quem está submetido a ele. Os grupos que desempenham e usufruem desse poder há anos no Brasil – para eles, a nossa democracia estava ruim? Não me parece. Por que trocar a estabilidade da nossa democracia, estruturada como ela está, por um poder concentrado nas mãos de uma pessoa volúvel e que não hesita em trair os seus antigos aliados? Não me parece uma boa decisão. Então a nossa democracia parece que tem mais força para sobreviver talvez não pelos bons motivos. E aí, depois de passada essa crise, a gente precisa começar a pensar em quão democrática realmente é a nossa democracia para aprimorar aquilo que a gente tem.
O POVO – Enxerga alguma possibilidade de resposta autoritária, que fuja à Constituição ou que esteja “fora das quatro linhas”, pensando nos próximos dias, mas também em 2022?
Prioli – Não acho que Bolsonaro tenha poder para isso, eu não acho que as forças armadas estejam todas cooptadas por essa mentalidade golpista. Vejo com alguma preocupação a militarização das polícias e a cooptação das forças de segurança, mas, embora tenhamos de permanecer preocupados, insistir nisso como assunto principal só fortalece quem quer mostrar a possibilidade de golpe como algo viável. Por isso eu meço as minhas palavras sobre o assunto para não ser instrumentalizada por interesses que não são os meus.
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