Politizar o luto e fazer da memória uma forma de intervenção no espaço público. Em seu novo trabalho, a filósofa Carla Rodrigues formula uma teoria política do luto. O tema é tristemente oportuno num país cujas mortes por Covid-19 somam mais de 600 mil – uma parte delas evitáveis, segundo projeções de especialistas.
Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rodrigues é uma teórica feminista especializada na obra de Derrida e de Butler, a partir de quem escreve livro o mais recente: “O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero”, publicado pela editora Autêntica.
Em conversa com O POVO, a pesquisadora traça um panorama breve do luto no Brasil: da ditadura à pandemia, dos mortos na periferia às ações da PM, da morte real de corpos matáveis à morte simbólica da democracia. Para ela, o luto não se completa como processo social.
Esse pensamento tenta rastrear as coordenadas de um movimento que faz desse luto uma contraofensiva, a exemplo do que houve com a morte de Marielle Franco, mas, antes dela, de Zumbi dos Palmares.
Entre os temas discutidos por Carla Rodrigues, estão ainda as políticas adotadas na gestão Bolsonaro e o papel da mulher na reflexão fisolófica.
O POVO – Luto e memória têm importância fundamental para entender o Brasil de hoje. Como essas duas categorias estão relacionadas?
Carla Rodrigues – Acredito que, num país como o Brasil, a gente possa com certa facilidade articular luto e memória porque nós temos uma longa tradição de falta de memória, no sentido de apagamento da história das nossas perdas. De tal modo que não fizemos certos lutos por perdas recentes, como as de pessoas que morreram por Covid-19, luto aqui no sentido de reconhecimento público por essas perdas coletivas; e também, não tão recente mas contemporâneo, o luto pelas vidas perdidas para a ditadura militar, todas as pessoas assassinadas e torturadas.
Mas também posso dizer que a gente nunca fez luto por todos os indígenas exterminados no início da colonização ou por todas as pessoas negras, escravizadas e mortas durante o período colonial, assim como não fizemos para as vidas perdidas para a violência da Polícia Militar. Como alguém que vive no Rio de Janeiro e acorda todo dia com tiroteio matando pessoas, me parece que a gente tem uma longa tradição, tanto no tempo quanto no espaço, que se espalha por muitos lugares, de ausência de luto, de ausência de uma política de reconhecimento para a vida daquelas pessoas que morreram e que seriam dignas e merecedoras de uma política de memória. Temos uma destruição da memória, seja individual, seja da coletiva, como a gente viu no incêndio da Cinemateca de São Paulo ou no incêndio do Museu Nacional três anos atrás. A gente não faz a nossa própria história.
O POVO – Esse processo de luto pessoal e coletivo é sistematicamente interrompido, não realizado?
Carla Rodrigues – É isso, e um exemplo importante nesse momento que a gente vive é o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que começa muitas décadas depois da Lei da Anistia. Essa lei tinha a intenção justamente de apagar da nossa memória o que tinha nos acontecido durante a ditadura militar. Foi só no início dos anos 2000 que a gente conseguiu reverter isso, ou seja, mais de 20 anos depois a gente vai lutar para constituir uma comissão da verdade que, enfim, num documento publicado em 2014, consegue enumerar o nome de mais de 300 torturadores das forças armadas. Esse documento tem o poder de reunir luto e memória. Mas olha quanto tempo levou para ele acontecer?
"Temos uma destruição da memória, seja individual, seja da coletiva, como a gente viu no incêndio da Cinemateca de São Paulo ou no incêndio do Museu Nacional três anos atrás. A gente não faz a nossa própria história"
O POVO – No seu livro mais recente, a senhora propõe uma teoria política do luto. Pode falar um pouco sobre isso?
Carla Rodrigues – Eu me valho de Judith Butler para tomar, a partir do pensamento dela, o luto como um operador central para a gente pensar essa distinção contemporânea entre vidas vividas e vidas matáveis; entre, falando como (Giorgio) Agamben, vida nua e vida qualificada; entre quem pode viver e quem vai ser abandonado à própria morte, também se quiser falar como (Michel) Foucault ou Achille Mbembe. De forma que eu encontro, numa discussão da Butler, a ideia do que ela vai chamar de condição do enlutável.
O que é essa condição de enlutável? Aquilo que faz com que uma vida seja cuidada desde o início da vida porque, se ela for perdida, vai merecer ser enlutada. Quando a vida, desde o início, não vem carregada dessa condição de enlutável, ela não vai ser cuidada. Quando Butler diz isso, quando traz para o início da vida essa condição, não está trazendo apenas para a responsabilidade individual ou de uma família cuidar dos seus filhos ou de suas crianças. Está chamando atenção para o fato de que há aí uma política no sentido de que cada vida que não está carregada dessa condição de enlutável não vai ser cuidada também pelas políticas públicas, de saúde, moradia, alimentação e toda uma rede de cuidados de que todas as vidas dependem e precisam.
A partir disso, é possível ir marcando as vidas como matáveis desde o começo. Em algum momento, essas vidas podem ser perdidas, seja pelo assassinato da PM, seja por falta de saneamento básico ou por falta de vacina, como a gente viu tão recentemente no caso da pandemia, um crescimento imenso no número de mortos, apesar de já existir vacina. Ou seja, esse crescimento diz respeito a uma ausência de política pública de adotar o quanto antes a vacinação e ampliá-la também. Esse exemplo da pandemia mostra que, mesmo com toda a quantidade de dinheiro ou de poder possível, existem formas de cuidado que não dependem da vontade individual, que são dependentes de uma infraestrutura que permita que esse cuidado aconteça.
"Acredito que talvez o luto que a gente ainda não fez seja o luto pela nossa democracia, que não chegou ainda a ser completamente implementada quando começou a ser destruída"
O POVO – A pandemia explicitou essa política na qual alguns corpos são mais matáveis do que outros?
Carla Rodrigues – Sim, explicitou, principalmente se a gente considerar, por exemplo, que a pandemia pode ser vista como uma lente de aumento para certas desigualdades já existentes no Brasil. Somos um país que tem a terceira maior população carcerária do mundo, mas também somos um país que, quando a pandemia começou, recusou fazer qualquer tipo de proteção em relação a essa população. Por quê? Porque normalmente essas pessoas estão ali esperando morrer mesmo, morrer de doença, morrer de violência dentro da cadeia, enfim. Isso agudiza alguma coisa que é do nosso cotidiano.
A mesma coisa em relação à ausência de tratamento de pessoas indígenas. Um outro elemento que também se explicitou na pandemia foi a situação de vulnerabilidade das pessoas de periferias e favelas, que tiveram que se organizar elas mesmas para encontrar formas de cuidado, porque essas formas de cuidado não vieram via política pública. Acho que, se a gente quiser levar mais adiante, todo o discurso oficial de que só os idosos iriam morrer, e que, portanto, não era assim tão terrível, é algo coerente com um governo que faz uma reforma da Previdência em que há um abandono dos idosos no sentido de que, a partir do momento em que deixam de ser força produtiva, são também deixados de lado, numa situação assim. A pandemia então explicita o que a gente vive como política oficial, de formas de fazer morrer e deixar morrer.
O POVO – A morte esteve muito presente no discurso oficial do governo.
Carla Rodrigues – Já andei pensando numa coisa que parece meio inútil, que é a seguinte: e se? E se não houvesse a pandemia, o que seria do governo? Ele foi capturado pela pandemia pouco mais de um ano depois de chegar ao poder, de maneira que praticamente todo o seu mandato ou mais de dois terços transcorreu assim, dependendo do desdobramento disso ano que vem, com novas variantes e as consequências todas de dois anos de exceção na vida rotineira...
Mas acho que a gente pode pensar que o projeto do governo já era de destruição e de extermínio. E aí vem um vírus que, de alguma forma, ajuda o governo. Porque, passivamente, sem fazer o que ele devia ter feito, morreram 600 mil pessoas, políticas culturais não foram implementadas, políticas sociais não foram implementadas. Quantas perdas a gente teve no conjunto da vida social que foram resultado exclusivamente da falta de ação? Bastou o governo não fazer nada, bastou cruzar os braços, não precisou nem agir contra.
O POVO – A gente fala de luto e morte do corpo, mas nunca se falou tanto da morte da democracia como agora. Essas duas mortes estão relacionadas?
Carla Rodrigues – Acredito que talvez o luto que a gente ainda não fez seja o luto pela nossa democracia, que não chegou ainda a ser completamente implementada quando começou a ser destruída. Tem um capítulo que se chama “Desdemocratizações” no livro (“O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero”, da editora Autêntica) em que a gente pode pensar que esse termo é de difícil aplicação no caso brasileiro porque a gente ainda não tinha alcançado uma democracia plena. A gente ainda estaria, desde o processo da nova República e do fim da ditadura civil-militar, numa construção democrática.
Em que pesem os esforços da Constituinte de 1988 e dos movimentos sociais, uma grande parcela da população estava fora do radar disso que a gente considera como sistema democrático. Para essa população que estava fora, não é cabível falar em “desdemocratização” porque há uma grande massa de pessoas que nunca sequer viu a própria democratização do país e que, ao contrário, só vê, das forças e dos ditos três Poderes, a cara do poder violento que o estado apresenta. Eu acredito que talvez, nesse processo de destruição do pouco de democracia que a gente tinha e que é feito por dentro, por um governo que pode argumentar que foi eleito pela via democrática, embora já tenha chegado fazendo ruir as estruturas democráticas nas quais a gente acreditava (não participou de debates, não cumpriu regras eleitorais e sequer foi devidamente punido, além do recurso às fake news) – tudo isso são formas de a gente perceber que esse governo foi eleito por uma via de descredibilização da própria democracia.
Ele desacredita a democracia, aposta contra, para ser eleito na democracia. Por que pode não comparecer a debates e fraudar leis eleitorais vigentes, e isso não foi considerado? Uma hipótese a se levar em conta é justamente o fato de que, para uma quantidade importante de pessoas no país, essa democracia ainda era uma ficção. Não se estava perdendo um sistema democrático. Para alguns, sim. Para quem estava prestando atenção, sim, mas, para a grande maioria, o Brasil ainda é um país do vale-tudo, e foi o que ele fez, ganhou na base do vale-tudo.
"... se a gente quiser levar mais adiante, todo o discurso oficial de que só os idosos iriam morrer, e que, portanto, não era assim tão terrível, é algo coerente com um governo que faz uma reforma da Previdência em que há um abandono dos idosos "
O POVO – É preciso perguntar para quem a democracia está morrendo.
Carla Rodrigues – Exatamente. Não dá pra achar que a democracia está morrendo pra todo mundo porque, pra muita gente, ela sequer começou. Então é um discurso meio importado dos Estados Unidos. Por mais que a gente possa comparar Bolsonaro em alguma medida com Trump, não dá pra importar a análise da desdemocratização dos EUA para o caso brasileiro, são sociedades de contextos históricos, coloniais e políticos muito diferentes. E o nosso contexto colonial é muito favorável à eleição de um capitão.
Temos uma espécie de capitão do mato no poder, do tempo da escravidão, aquele que ia atrás dos escravos fugitivos em nome do senhor. Tenho a impressão de que a gente está sendo governado por alguém que não é a elite dominante. Ele é o cara da rachadinha, da fraude, da milícia, dos pequenos golpes, no sentido de que não é o grande empresário, o grande representante do poder. Isso é parte ainda desse processo do vale-tudo. Ele chegou aonde chegou na base do vale-tudo porque fez toda sua carreira política na base do vale-tudo. Vale tudo pra ganhar dinheiro, ficar no poder, ganhar mais um mandato etc.
Eu diria que ele representa a maior margem de pessoas excluídas desse sistema democrático que talvez a gente nunca tenha visto buscar um representante. E encontrou. As razões históricas pelas quais encontrou seria tema para outra entrevista, mas, sem dúvida nenhuma, essa massa de pessoas que ainda o apoia parece ser uma massa que nunca chegou a ser alcançada pela chamada democracia brasileira, ao contrário, sempre foram pessoas que estiveram à margem disso e que querem reivindicar que chegou sua vez. Tenho a impressão de que não temos – nós na academia, intelectuais, grande imprensa, que vivemos nesse âmbito das instituições que funcionam para nós – a dimensão ainda completa do que é viver num país no qual as instituições, não é que elas abandonem você, elas funcionam contra você.
Me parece que são essas as pessoas que apoiaram o bolsonarismo. Acho que a gente pode dizer que já existia bolsonarismo antes do Bolsonaro, no sentido de que já existia uma grande quantidade de pessoas que, ficando excluídas de todo tipo de apoio político, social, cultural, institucional, queriam uma mudança, que aconteceu como mudança. Nada é mais radicalmente diferente dos governos anteriores, sejam os governos do PT, sejam os do PSDB, do que essa aventura bolsonarista que estamos vivendo.
"Quantas perdas a gente teve no conjunto da vida social que foram resultado exclusivamente da falta de ação? Bastou o governo não fazer nada, bastou cruzar os braços, não precisou nem agir contra"
O POVO – Professora, outro tema caro a seus trabalhos são as reflexões sobre feminismo. A partir de uma pesquisa recente que tratou disso, gostaria de saber como a senhora pensa o lugar da mulher hoje na filosofia e no campo acadêmico.
Carla Rodrigues – Está se referindo a uma pesquisa da professora Carolina Araújo, provavelmente. A primeira versão que tivemos desse trabalho tão importante da professora Carolina foi em 2016, e os resultados foram lançados num congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. Nesse momento, criamos um grupo de trabalho chamado Filosofia e Gênero. Dali em diante, foram surgindo diversas iniciativas muito importantes no campo filosófico.
Uma delas foi a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, iniciativa também da professora Carolina. E também surgiu outro grupo de trabalho chamado Mulheres na História da Filosofia, houve uma conferência internacional sobre a história das mulheres na filosofia realizada em 2019 na Uerj, enfim. Houve grandes marcos, eu diria, como esses que estou mencionando, e houve todo um trabalho cotidiano das mulheres filósofas de vir a público mostrar o que fazem, mostrar o que pensam, mostrar que trabalham no campo intelectual e que têm capacidade de intervenção pública e política. Nesse sentido, um dos grandes marcos é a edição de um livro organizado pela professora Juliana Aggio, da UFBA (Universidade Federal da Bahia), chamado “Filósofas”.
E é muito importante porque esse livro reúne trabalhos de muitas filósofas brasileiras e de certa forma se contrapõe a uma histórica coleção que a gente tem no Brasil chamada “Os pensadores”, que eram todos homens. E aí, finalmente, tantas décadas depois, lançamos um livro em que nós, filósofas brasileiras, estamos pensando com filósofas do mundo inteiro. Eu, particularmente, estou nesse livro com uma colega, professora Juliana de Moraes Monteiro, num capítulo sobre uma filosofa brasileira que foi a Lélia Gonzalez, que, durante muito tempo, não foi reconhecida nem como filósofa, nem como socióloga, porque era uma ativista negra e militante do movimento negro. E a academia tinha, digamos, pelo menos três motivos para não reconhecê-la: o fato de ela ser mulher, o fato de ela ser negra e o fato de ela ser ativista. A academia preferia que ela fosse homem, branca e não ficasse na rua fazendo protesto, não ficasse ocupando o espaço público e a arena pública reivindicando outra história da escravidão no Brasil, por exemplo. Ela foi, no Rio de Janeiro, uma militante do movimento negro unificado fundamental para a criação do Dia de Zumbi, para esse deslocamento histórico que me permitiria voltar a sua primeira pergunta, que é a associação entre luto e memória.
Quando o movimento negro unificado consegue homenagear Zumbi no dia 20 de novembro e deslocar o fim da escravidão de 13 de maio para 20 de novembro, o movimento negro consegue fazer uma outra memória da sua história fazendo o luto de Zumbi. Nós, feministas, sejam as negras ou as brancas, temos uma grande contribuição a dar nesse tema do luto e da memória porque são as mulheres da Praça de Maio que impulsionam as políticas de memória e de recuperação da história dos mortos da ditadura argentina. São as mulheres da periferia de São Paulo que vão para as ruas reivindicar o fim da violência da PM contra os seus filhos. São as mulheres das favelas cariocas que vão para as ruas também reivindicar o fim da violência da PM contra a população negra e favelada da cidade do Rio. A emancipação das mulheres e o tema do feminismo entram no livro de uma forma que pareceria não articulada ao tema principal, que é o luto como um operador ético-político na vida social, mas as mulheres são protagonistas das políticas de luto e memória.
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