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Adriana Negreiros: Silenciar protege o agressor e a cultura do estupro no País
Reportagem Seriada

Adriana Negreiros: Silenciar protege o agressor e a cultura do estupro no País

Jornalista e pesquisadora Adriana Negreiros lança "A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil" (2021), visceral relato sobre estupro sofrido em 2003 e a cultura da violência contra a mulher no País
Episódio 31

Adriana Negreiros: Silenciar protege o agressor e a cultura do estupro no País

Jornalista e pesquisadora Adriana Negreiros lança "A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil" (2021), visceral relato sobre estupro sofrido em 2003 e a cultura da violência contra a mulher no País
Episódio 31
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"Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado", inicia a escritora norte-americana Audre Lorde (1934-1992) no ensaio "A transformação do silêncio em linguagem e em ação". Feminista, negra e lésbica, Lorde lutava contra um possível diagnóstico de câncer e a "a sensação, provavelmente uma consciência corporal, de que a vida nunca mais seria a mesma...". No dia 24 de maio de 2003, Adriana Negreiros foi estuprada. No dia 18 de outubro de 2021, a jornalista, pesquisadora e escritora lançou o livro "A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil" — uma obra visceral sobre a violência sexual que oito mulheres sofrem a cada minuto no País.

 


O POVO: Em maio de 2012, você afirmou à Revista Entrevista — do então curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará — que "sempre quis ser jornalista, desde sempre. Nunca me ocorreu fazer outra coisa que não ser jornalista". Como nasceu o interesse pela profissão?

Adriana Negreiros: Eu sempre gostei muito de escrever, desde pequenininha… Minha matéria preferida sempre foi Português, eu sempre gostava de fazer redação, inventar histórias. Eu tinha decidido que iria trabalhar com algo que envolvesse a escrita, mas eu não sabia exatamente com o quê. Quando eu era muito pequena, o meu irmão mais velho tinha aquele Guia do Estudante que era publicado pela Editora Abril e tinha ali a relação das faculdades e cursos de graduação que você poderia fazer dependendo das suas habilidades ou vontades. Eu vi ali que, escrevendo, eu poderia fazer Letras ou Comunicação Social, então esses caminhos possíveis ficaram no meu horizonte.

Quando cheguei por volta da sexta série, atual sétimo ano, comecei a ler uma coleção chamada “Para gostar de ler” e um deles era de crônicas. Fiquei completamente enlouquecida — ali notei que era um estilo que eu gostava mais ainda que contos, foi um gênero que me encantou naquela época e decidi que queria escrever daquele jeito, então foi assim que eu decidi muito cedo que queria ser jornalista. Fui a primeira jornalista da família.

OP: Sua família é de origem potiguar, mas você nasceu em São Paulo e cresceu em Fortaleza. Como foi esse movimento de retorno ao Nordeste?

Adriana: Eu nasci em São Paulo por acaso. Meus pais são do Rio Grande do Norte: papai é de Caicó, mamãe é de Mossoró, mas eles viviam em Mossoró e meus quatro irmãos nasceram lá. Nos anos 1970, como todo nordestino típico, meu pai resolveu tentar a vida em São Paulo. Ele tinha um emprego no banco em Mossoró, mas ele foi demitido e ficou desempregado com quatro filhos, então o El Dorado na época era São Paulo. Ele tinha alguns irmãos que tinham ido morar em São Paulo, um irmão que tinha ido trabalhar como mecânico, uma irmã que já tinha ido, todo mundo nesse processo de tentar a vida no sudeste... Em 1974 eu nasci, mas nasci realmente por acaso, não sou de uma família paulistana. Vivi lá até 1980, até que minha família resolveu voltar para o Nordeste, mas papai resolveu não voltar para Mossoró porque era uma cidade muito pequena à época e ele queria que nós fizéssemos faculdade e achou que Fortaleza era uma opção melhor, por isso que a gente foi bater no Ceará no começo dos anos 1980. Fiz Comunicação na UFC.

A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.

OP: Seu nome é referência em veículos nacionais como Veja, Playboy e Claudia. O início da sua trajetória acadêmica e profissional, no entanto, foi no Ceará...

Adriana: Eu comecei a minha carreira como jornalista de política no Diário do Nordeste com o Edson Silva e era engraçado porque ele não queria trabalhar com mulheres, só tinha repórter homem na política. Ele dizia sem escrúpulos: “Eu não gosto de trabalhar com mulher, mulher engravida” — eu falei que não tinha a menor pretensão de engravidar tão cedo, tinha 21 anos. Depois eu fui pra Veja, comecei a fazer uma carreira ali na Editora Abril, mas em determinado momento eu fiquei meio em crise com o jornalismo e comecei a achar tudo muito superficial, ainda mais porque trabalhava na Abril em revista, então sempre tinha crise com a superficialidade do jornalismo. Eu tinha muita vontade de fazer reportagens extensas, mais aprofundadas, mas eu sempre esbarrava nas limitações de espaço, tempo e as próprias revistas que eu trabalhava não tinham vocação para isso.

 

"Até a minha postura na academia é de repórter, uma postura muito crítica porque o jornalismo tem que ser crítico por essência." Adriana Negreiros, ao comentar a decisão voltar à academia. Atualmente faz doutorado em Coimbra

 

OP: Hoje você cursa Doutorado em Portugal. O que te motivou a voltar para a universidade? Quais os desafios em conciliar jornalismo e pesquisa?

Adriana: Nessa crise eu decidi voltar a estudar, pensando numa carreira acadêmica. Eu queria estudar Filosofia e queria entrar na USP, mas imaginei que não conseguiria entrar no Mestrado por não ter base suficiente pra isso, então decidi fazer a graduação, estudar os quatro anos e depois eu fazer a pós. Fiz o vestibular para Filosofia e voltei a estudar assim. Mas claro que as coisas não foram bem como eu imaginava porque eu não consegui terminar a faculdade, tive que abandonar, teve um momento em que eu não consegui mais ir para as aulas, abandonei o curso, voltei muito tempo depois e finalmente concluí. Por essa época, eu vim para Portugal e aqui comecei a fazer um Mestrado em Filosofia Política, fiz todas as disciplinas, mas antes de escrever a dissertação eu entrei num Doutorado em Estudos Feministas na Universidade de Coimbra.

Eu tô na academia não para fazer uma carreira acadêmica. Eu descobri que, no fundo, eu sou jornalista e sempre serei e por mais que eu entre nesses outros universos, eu jamais vou conseguir me comportar ou agir só como acadêmica porque eu sempre vou ter o olhar de repórter. Isso é inevitável. Até a minha postura na academia é de repórter, uma postura muito crítica porque o jornalismo tem que ser crítico por essência. Eu estou na academia mais para aprender, abrir os horizontes, pensar em algumas possibilidades, iluminar minha atuação como jornalista, é para isso que estou na academia — e não para ser uma acadêmica.

 

" Geralmente, o que interessava sobre o Nordeste para os editores de São Paulo era o Nordeste que correspondia às expectativas sudestinas." Adriana Negreiros, sobre as escolhas em torno da personagem Maria Bonita que lhe rendeu o primeiro livro

 

OP: O seu livro "Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço" (2018) aborda o corpo feminino no canganço e a rotina de opressão e violência que cangaceiras eram submetidas. Como foi o processo de pesquisa para escrever a obra? Por que o interesse pelo tema?

Adriana: Em 2013, eu saí das redações naquele processo de crise porque eu achava que o que eu fazia não era muito jornalismo… Eu continuava com muito desejo de fazer as tais grandes reportagens, tinha uma certa obsessão por isso, e achei que um caminho para fazer isso que eu tinha vontade era escrever livros. A ideia de escrever livros, então, foi muito mais para ter um espaço onde eu pudesse colocar aquilo que eu queria como uma grande reportagem. Não foi exatamente um "vou me tornar escritora" e eu até nem me classifico como escritora, porque eu acho que sou uma autora de não-ficção, uma jornalista que publica suas reportagens em livros. Quando eu comecei a pensar em escrever um livro, imaginei um tema que me atraísse, e nas redações em São Paulo eu sempre enfrentava um problema: os meus interesses mais genuínos, aqueles assuntos que diziam respeito ao Nordeste, não interessavam aos meus editores. Na época, havia um olhar muito paulista sobre tudo, o velho problema de colocar o Nordeste na periferia, um olhar caricato… Geralmente, o que interessava sobre o Nordeste para os editores de São Paulo era o Nordeste que correspondia às expectativas sudestinas.

Quando eu pensei no tema do livro, decidi escolher um tema para tratar ao meu modo, à minha subjetividade. Escolhi o cangaço porque era um tema que tinha muito a ver com a minha família, que minha avó tinha muito medo do Lampião. Quando o bando de Lampião invadiu Mossoró ela tinha 14 anos e ficou com muito medo de ser sequestrada, ela passou a vida inteira contando isso. Eu tinha isso no meu imaginário e achei que podia ser uma escrever sobre o cangaço, mas eu não queria escrever sobre Lampião porque muita gente já escreveu sobre ele e também porque eu já estava começando a ler teóricas feministas — nisso a academia ajudou a repórter.

Usualmente, só contamos as histórias dos homens, e onde estavam as mulheres no cangaço? Qual o papel delas? Será que esse papel não foi silenciado? Comecei a pesquisar sobre a Maria Bonita e ao longo da pesquisa fui constatando, de fato, que esse espaço das mulheres no cangaço tinha sido muito obscurecido, quase apagado. Esse processo de pesquisa foi muito exaustivo no sentido de procurar pistas que me levassem a montar um quebra-cabeças coerente já que havia pouquíssimas informações sobre a Maria Bonita e demais cangaceiras. E a minha ideia original, que era fazer uma biografia da Maria Bonita convencional — com começo, meio e fim — logo se mostrou impossível de ser realizada porque não havia informações a respeito dela. A minha solução foi contar a história da Maria Bonita a partir também da história das outras mulheres do cangaço. Se juntou a repórter e a neo-pesquisadora do feminismo.

A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.

OP: Maria Bonita, Dadá, Durvinha, Otília e outras dezenas de mulheres sofreram abusos dos cangaceiros, mas existe um imaginário que cultua a companheira de Lampião como revolucionária. Como o corpo feminino era realmente visto dentro do cangaço?

Adriana: Quando eu tive a ideia de biografar a Maria Bonita, eu tinha a expectativa de apresentar uma personagem rebelde, uma espécie de Joana D'Arc da caatinga. Eu imaginava a Maria Bonita como uma mulher muito mais transgressora porque há toda uma construção das cangaceiras como líderes revolucionárias e feministas, mas ao longo da pesquisa eu fui percebendo que elas eram mulheres completamente subjugadas. Existia um imaginário que, no cangaço, as mulheres tinham uma condição quase igualitária em relação aos homens, mas ao longo da pesquisa eu observei que isso era uma grande falácia — dentro do cangaço, as mulheres eram tidas como propriedade privada dos homens.

 

"O mais estarrecedor para mim, ao longo desse processo, foi perceber que quando essas mulheres contavam suas histórias, geralmente as pessoas riam e achavam engraçado, como se elas estivessem contando piadas " Adriana, ao comentar a violência sofrida pelas mulheres no cangaço

 

No fundo, o que elas faziam no interior do bando era muito parecido com o que as mulheres faziam nas casas convencionais do sertão ou mesmo na cidade grande, como cuidar da intimidade da casa enquanto os homens saíam para ocupar os espaços públicos. As cangaceiras não participavam das guerras e dos combates, elas ficavam geralmente nas tendas, tinham uma vida muito privada. Elas eram efetivamente consideradas posses desses homens. Quando elas engravidavam, por exemplo, elas eram obrigadas a abrir mão dos filhos assim que nasciam; se tivesse desconfiança de traição, elas podiam ser assassinadas brutalmente por adultério.

Muitas dessas mulheres foram raptadas de suas casas ainda crianças e severamente violentadas sexualmente pelos cangaceiros. Era uma vida terrível mesmo. O mais estarrecedor para mim, ao longo desse processo, foi perceber que quando essas mulheres contavam suas histórias, geralmente as pessoas riam e achavam engraçado, como se elas estivessem contando piadas — tratavam como exagero, loucura… No caso específico da Maria Bonita, ela tinha uma transgressão no sentido de ser uma mulher que vivia no sertão casada e tinha uma vida infeliz, então resolveu largar tudo para acompanhar o homem mais procurado pela polícia no Brasil naquela época. Uma vez que ela entrou no bando, ela se tornou mulher do Lampião.

 

OP: Você contou histórias de mulheres subjugadas no cangaço e, no último mês de outubro, lançou "A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil"— a narrativa do estupro que você sofreu e histórias de outras mulheres também subjugadas. O que mobilizou sua escrita agora, quase 20 anos depois do crime?

Adriana: São muitos motivos... Essa é uma questão que me acompanha: desde que tudo aconteceu, não há um 24 de maio que eu não recorde dos eventos porque efetivamente essa história está sempre comigo. Em alguns momentos, eu pensei que talvez eu pudesse escrever a respeito, escrever sobre essa experiência, transformar essa dor em alguma coisa — afinal de contas é o que eu faço, escrever é minha forma de expressão… Mas era uma ideia que ia e vinha, eu não sabia exatamente o que fazer com isso. Quando escrevi o "Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço", pensei que poderia escrever sobre violência sexual, já que é um tema que me mobiliza, já que eu queria entender melhor o que aconteceu porque a gente fica sempre nesse espanto. Achei que seria também uma forma de investigar esse assunto e apreendê-lo como algo macro, não como algo que diz respeito só à minha individualidade.

 

"Já que foi uma experiência que me provoca tanta dor, tanta angústia, tanta vergonha, que eu transformasse isso em algo que me desse satisfação. " Adriana, ao falar sobre transformar a experiência do estupro na obra que lança agora

 

Logo na sequência, assinei um contrato para fazer a (biografia de) Dercy Gonçalves e uma das minhas primeiras descobertas sobre a artista é que ela também sofreu violência sexual, mais de uma vez. Eu olho para isso de uma forma muito mais atenta, com as cangaceiras essas violências me chamaram muito mais atenção. Durante a pandemia, eu fiquei impossibilitada de viajar para o Brasil e seguir nas pesquisas, então decidi escrever "A vida nunca mais será a mesma". Conversei com meu marido (o escritor Lira Neto) porque ele seria um personagem e ele me apoiou, então comecei a escrever ainda meio na dúvida.

Essa é uma das muitas versões do que me motivou a escrever, a versão mais pragmática. Do ponto de vista mais íntimo, eu acho que eu tinha que resolver isso de alguma forma, finalmente lidar. Logo na época que aconteceu, eu falei para a minha irmã, que é psicanalista, que eu tinha guardado essa história numa gaveta e jogado a chave fora… Ela me disse: "Não adianta, Adriana, uma hora essa gaveta vai explodir". Por mais que eu tentasse trancar e guardar, nada resolvia… Era uma tentativa barata de resolver um grande problema.

O livro é também uma forma de abrir essa gaveta. Já que foi uma experiência que me provoca tanta dor, tanta angústia, tanta vergonha, que eu transformasse isso em algo que me desse satisfação. O livro foi uma forma de transformar uma experiência desagradável em uma satisfação, porque de fato é uma satisfação escrever.

 

"Em alguns momentos no livro, eu escrevi quase jogando intuitivamente porque fui descobrindo na própria escrita. Descobri, principalmente, os medos." Adriana, sobre o processo da escrita

 

OP: O processo de revisitar e-mails, anotações na agenda, registros policiais e hospitalares, matérias na imprensa, lembrar da música que escutava no dia e da roupa que vestia para escrever o livro, para elaborar e dar palavra — tudo isso foi transformador para você?

Adriana: Com certeza. À medida que fui escrevendo, muitas fichas foram caindo... Foi quase um processo psicanalítico, muita coisa eu lembrei enquanto escrevia. Muitas coisas começaram a fazer sentido depois que escrevi: uma insegurança que passou a me acompanhar depois do estupro, uma timidez que não era uma característica minha e desenvolvi, uma introversão, um fechamento para o mundo; tudo isso que eu atribuí à uma personalidade inata, no ato de escrita percebi que havia um processo construído a partir de um trauma. Em alguns momentos no livro, eu escrevi quase jogando intuitivamente porque fui descobrindo na própria escrita. Descobri, principalmente, os medos. Quando eu escrevi, consegui dar sentido e isso contribuiu com meu processo de autoconhecimento.

 

 

"Estupro como desejo de controle" 

 

OP: Uma preocupação muito evidente no seu livro é dimensionar o estupro não apenas como um crime individual, mas como parte de uma cultura inteira que silencia e relativiza a violência contra a mulher. Qual é a importância de compreender o estupro também nesse aspecto?

Adriana: A minha grande preocupação, desde o começo, foi não individualizar, não parecer que eu estava contando uma história exótica e deslocada no tempo e no espaço. Por isso, eu fiz muita questão de contar outras histórias; mostrar as histórias mais distintas, incluindo casos que aos olhos de muitos talvez não seja estupro, como estupro marital. Eu fiz questão de mostrar casos diversos… Do ponto de vista pessoal, quando se é vítima de uma violência dessas, a primeira coisa que se pergunta é: “O que diabos eu fiz para provocar essa situação? O que eu poderia ter feito diferente?”. Esse é um processo longo, doloroso, que demora a se compreender porque na verdade fui eu, mas poderia ter sido outras 1.800 pessoas de acordo com as estatísticas, como efetivamente foram. Não foi nada que eu tenha feito para provocar aquilo: foi porque eu vivia, na época, num País que o estupro é muito naturalizado. É muito importante a gente compreender que o que leva ao estupro não é o desejo do homem, mas sim o desejo de controle…

OP: O estupro é uma manifestação de poder...

Adriana: Exatamente, é uma manifestação evidente de poder. “Você, mulher, me pertence e eu faço com você o que eu quiser, independente da sua vontade. Você não tem vontade. Não importa o que você quer, se você está com vontade ou não, se esse é o lugar, a ocasião propícia — a única vontade que vale aqui é a minha”. O estupro é isso levado ao limite, mas se a gente observar os pequenos atos do dia a dia com relação às mulheres, é a mesma lógica. Por exemplo, uma coisa que muita gente não entendia na época foi a campanha “Chega de fiu fiu”. Lembro que colunistas de jornais escreviam “mas é tão gostoso andar na rua e ouvir um fiu fiu”. Isso diz respeito a uma mulher ser tratada como posse de um cara que olhou para ela, sentiu algo a respeito dela e se sentiu no direito de dizer. O corpo feminino é lido como pertencente a qualquer pessoa — é objetificação completa daquilo. É como se passasse um carro e falassem “uau, que carro bonito”, passa uma mulher e falam “uau, que mulher gostosa”, tratam as duas coisas como objeto.

Isso a gente vê desde essas pequenas “gracinhas” do dia a dia até a construção que se faz da mulher na mídia. O que eu conto no livro que acontecia nos programas de humor, que sempre havia uma “gostosona” de biquíni sendo tratada unicamente como objeto, completamente desumanizada, à serviço de um espetáculo masculino, do olhar, do desejo e da posse masculinas. Tudo isso faz com que se tenha a impressão que o corpo da mulher não pertence a elas e você pode fazer com ele o que você bem entender, inclusive estuprar. É por isso que é tão importante a gente compreender a cultura do estudo não como algo “ah, o sujeito viu uma mulher não conseguiu se controlar” e sim a esse controle mesmo. O que isso diz em relação ao homem que comete essa violência? Que ele, no fundo, quer colocar a mulher no lugar que ele acha que ela deve ficar. Se uma mulher está na rua e é violentada, o recado é: “Se você estivesse em casa, se você não estivesse andando na rua essa hora, isso não teria acontecido. O seu lugar é escondido”. É um argumento que não faz o menor sentido sob nenhum aspecto porque nos lares é que se dão boa parte dos estupros.

A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação A escritora e jornalista Adriana Negreiros nasceu em São Paulo, em 1974, e mora atualmente no Porto, em Portugal.


OP: Existe o estereótipo do estuprador como um monstro, o desconhecido que sequestra e estupra mulheres na rua. No entanto, quase quase 70% dos casos de violência sexual acontecem no ambiente doméstico: os estupradores são pais, padrastos, avôs, irmãos, maridos, tios, vizinhos... Como ampliar a compreensão do que é tido como estupro para, assim, combater esse crime?

Adriana: Essa é uma outra fantasia que se tem do estuprador como um monstro. Durante muito tempo, se tratou dessa figura do estuprador como sendo um monstro. Os primeiros estudos feministas sobre a violência sexual reforçavam muito ainda esse imaginário e isso foi alvo de denúncia das próprias feministas, inclusive feministas negras como Angela Davis que dizia que isso só reforçava o mito do estuprador negro. Isso é um mito que tem que ser combatido porque, na realidade, a maioria dos casos de estupro acontece dentro de casa, com figuras de confiança das vítimas. A figura do desconhecido monstruoso que pega uma mulher num beco tem incidência muito menor que o estuprador que a vítima conhece, que ela confia, que é alguém que tem uma vida convencional, que trabalha, que estuda, que produz. Isso é muito importante e acho que as discussões que se dão sobre violência pessoal mais recente são muito importantes nesse sentido de tornar evidente a natureza desse crime. Se a gente teve durante muito tempo novelas, filmes e livros que reforçam essa figura do estuprador monstruoso, a gente tem por outro lado hoje um movimento no sentido contrário, de mostrar as diversas facetas desse estuprador.

A gente tem que ficar muito atento às múltiplas violências que se dão e que foram durante muito tempo silenciadas em nome dessa imagem do estuprador clássico que pega mulher na rua. Não à toa, essa é a imagem desse estuprador que pega mulher na rua mais popularizada porque é muito mais conveniente, é muito mais conveniente dizer que uma mulher foi estuprada porque estava na rua. Se a gente for pensar que a gente vive uma sociedade liberal que defende que esse espaço doméstico é o espaço da autonomia, da individualidade, do livre arbítrio e das liberdades individuais, a gente tem que considerar que é o espaço das liberdades individuais e autonomias desse ser dito universal que é o homem. Mas, para a mulher, o espaço privado pode ser um espaço de múltiplas opressões. Isso derruba esse mito de que o espaço privado é o espaço da segurança.

OP: Gisele, Tatu, Paula — os nomes são nomes fictícios, mas as histórias contadas em "A vida nunca mais será a mesma" são reais e dolorosas como a sua. Como foi o processo de pesquisa, entrevista e escuta com essas outras mulheres?

Adriana: Essa foi a parte mais difícil. A minha história eu conheço, já lido com ela há muito tempo… Claro que foi doloroso, mas é uma história com a qual eu já lido. Mas ouvir outras mulheres foi dureza. Muitas delas também falaram sobre o caso pela primeira vez, então para muitas foi um processo muito difícil de contar o que aconteceu. Como aconteceu comigo, muitas tentaram entrar na gaveta e jogar a chave fora até perceberem que não iam conseguir. Esses dias que eu conversava com as mulheres eram os piores para mim… Por causa da Maria Bonita, eu conheci muita gente que fazia grupos de leituras de mulheres, porque essa é uma cena muito interessante, mulheres que se reúnem para ler livros e discuti-los — e, para além de discutir os livros, elas tratam de suas questões individuais, acaba virando uma grande sessão de análise.

Às vezes, o tema puxa uma experiência pessoal e você fala muito sobre isso. Conversei com algumas dessas minhas conhecidas de clubes de leituras para pedir que elas colocassem isso na roda, que eu iria escrever um livro sobre violência sexual, e se houvesse alguém disposta a contar a história para mim, eu gostaria muito de ouvi-la anonimamente. Algumas personagens eu consegui pelas redes sociais, porque logo que comecei a escrever eu fiz um post no Facebook perguntando sobre mulheres que tinham sofrido esses crimes. Numa dessas, acabou se aproximando de mim uma pessoa que era do meu círculo de relações — a Tatu no livro — e me contou a história que mais me chocou por ser alguém que eu conhecia, por ser o próprio pai… Era um processo de entrevista, mas que era uma posição diferente porque eu não me colocava no lugar do repórter objetivo: eu dizia para elas que compartilhava da dor por também ter passado por isso. Isso estabeleceu trocas que eram além de entrevistas; eram trocas de impressões, de estratégias de sobrevivência. Foi um processo doloroso.

 

"Eu acho que mudar o conceito que a sociedade tem sobre o estupro vai ocorrer por meio da palavra: que a gente fale sobre isso, que a gente não silencie essa dor. Se a gente silenciar, a gente vai proteger o agressor. " Adriana Negreiros, sobre o silêncio como proteção do agressor

 

OP: A arte, o movimento feminista, a militância têm abordado cada vez mais a cultura da violência contra a mulher numa busca de transformar esse cenário. Qual é a importância da denúncia, da fala?

Adriana: A única estratégia, o único jeito, a única arma que a gente tem é a palavra. A única coisa que a gente pode fazer é falar sobre isso o máximo que a gente puder. Silenciar não vai nos ajudar em nada. Li um texto da Audre Lorde sobre o silêncio que me marcou: "A transformação do silêncio em linguagem e ação". Ela escreveu esse texto a propósito do câncer que descobriu e achou que ia morrer, então começou a pensar sobre os arrependimentos da vida dela, sobre o arrependimento do que silenciou. "Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você". O silêncio não protege ninguém, então ler Audre Lorde me levou também a compreender o que me levou a escrever sobre isso. Calar não vai mudar em nada — se a gente calar em relação às violências que sofre, não pode estabelecer o processo de transformação.

Eu acho que mudar o conceito que a sociedade tem sobre o estupro vai ocorrer por meio da palavra: que a gente fale sobre isso, que a gente não silencie essa dor, esses traumas, essas sequelas. Se a gente silenciar, a gente vai proteger o agressor. Por mais difícil que seja a gente vir a público e falar sobre isso, o silêncio não cura de nada. A única forma de transformação é por meio da palavra. "Do que é que eu tinha medo? Eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com as minhas crenças resultasse em dor ou morte. Mas todas somos feridas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor ou se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é o silêncio definitivo", continua Audre Lorde. Se a gente está viva, a gente tem que falar. Só vamos mudar essa concepção que temos sobre o que é a violência contra a mulher, já que isso precisa mudar para que a gente seja vista como um sujeito autônomo, por meio da palavra.

 

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