Logo O POVO+
"Chega de matar nossos filhos", cobra mãe de adolescente morto por PMs em chacina
Reportagem Seriada

"Chega de matar nossos filhos", cobra mãe de adolescente morto por PMs em chacina

Tem mãe na periferia de Fortaleza e em outras cidades cearenses que não aguenta mais chorar por filhos mortos por policiais militares. Caso do coletivo Mães do Curió que há seis anos espera pelo julgamento dos acusados
Episódio 32

"Chega de matar nossos filhos", cobra mãe de adolescente morto por PMs em chacina

Tem mãe na periferia de Fortaleza e em outras cidades cearenses que não aguenta mais chorar por filhos mortos por policiais militares. Caso do coletivo Mães do Curió que há seis anos espera pelo julgamento dos acusados
Episódio 32
Tipo Notícia Por

  

.

O Estado tem de parar de “matar jovens e adolescentes na periferia” de Fortaleza e de outros municípios do Ceará. O apelo é de Edna Carla Souza Cavalcante, 50, mãe de uma das vítimas da Chacina do Curió. Há seis anos, a cuidadora de idosos ficava “órfã do filho” Álef Souza Cavalcante, 17 anos. Ele foi assassinado, no dia 12 de novembro de 2015, numa matança que terminou com 11 pessoas executadas sumariamente por policiais militares.

De lá para cá, reforça Edna Carla, o assassinato de jovens da periferia por policiais militares não teve trégua. Tanto que o grupo Mães do Curió – liderado por ela e outras mulheres – ajudou a fundar a organização não governamental Mães da Periferia. Outro coletivo feminino que engrossou a luta pela preservação da vida dos filhos dos bairros estigmatizados pela violência urbana.

Mais mães que se juntaram para cobrar do Estado um pedido de desculpas pelas mortes dos filhos e a prisão de policiais despreparados para proteger a vida em qualquer bairro. É reivindicação de Edna Carla e das mães da periferia o direito de serem protegidas com os filhos pela “mesma polícia que atua na Beira Mar e na Aldeota”. Agora, a luta também “é para manter outros jovens vivos”.

Confira a seguir, a conversa com Edna Carla e saiba também sobre o livro “Onze” que traz narrativas sobre as vítimas da Chacina do Curió.

 



O POVO – A senhora tinha dois filhos até a Chacina do Curió, quando policiais militares mataram um?
Edna Carla – Eu tenho dois filhos, minha filha Dálete Souza Cavalcante, que tem 25 anos, e meu filho Álef Souza Cavalcante. Ele existe e sempre existirá. Hoje, eu cuido da luta como se ele estivesse vivo, como se eu lutasse por ele. O Estado pode ter matado a carne dele, mas o Álef existe, o Álef é uma pessoa. Ele veio para esse mundo para viver e vou continuar fazendo o meu filho existir no meio das pessoas. Ele vai existir até o dia em que eu estiver nessa terra, o meu filho só vai deixar de viver quando eu deixar de viver também.


OP – A senhora luta pelo que ele deixou de viver?
Edna Carla – Luto pela memória dele. Para que ele nunca seja esquecido. Luto por todas as vítimas do Curió, que os crimes nunca sejam esquecidos e que esse caso tenha uma solução. Luto para trazer eles de volta? Claro que não. É fazer o Estado se responsabilizar por cada vida retirada, trazer a condenação e exoneração dos culpados. Também luto para que o Estado mantenha outras vidas, mantenha os jovens vivos. Esse genocídio da nossa juventude na nossa periferia tem de acabar. Não se pode acabar com a periferia, tem que acabar com as mortes, cessar as execuções. Chega de matar nossos filhos. Não aceitamos mais mães em cima do caixão, enterrando seus filhos. Temos de deixar de ir aos cortejos dos próprios filhos de 13, 17, 12 e 14 anos. Não sigo só na luta por meu filho, mas pelas onze vítimas do Curió. Luto com as mães da periferia por justiça, luto para que mantenham os jovens vivos. Para que eles não entrem em um cemitério para ser enterrado e, sim, numa faculdade para se formar.

 

"Eu pensava como a maioria das pessoas ainda hoje pensa, que existem os ‘matáveis’. Pessoas que têm que morrer mesmo. Infelizmente, eu tinha essa concepção."


OP A senhora só percebeu que o Estado mata muitos jovens e adolescentes na periferia quando executaram o Álef?
Edna Carla – Infelizmente, sim. Jamais tinha percebido. E ainda mais porque o Álef era neto de um policial militar (José Cavalcante), o avô paterno. Meu filho nasceu em 1998 e meu sogro morreu em 1999. Ele dizia que o Álef iria ser policial militar e eu dizia que ele iria servir o Exército. Então, para uma mãe que tem o sonho do filho servir o Exército, ela jamais vai achar que a polícia mata porque a vítima é pobre, negro e vive na periferia. Jamais vai imaginar. Eu pensava como a maioria das pessoas ainda hoje pensa, que existem os ‘matáveis’. Pessoas que têm que morrer mesmo. Infelizmente, eu tinha essa concepção.

 

"A farda da polícia, infelizmente, está manchada de sangue. De sangue de jovens da periferia, jovens que querem se formar"


OP – É o senso comum de que “vagabundo” tem de morrer?
Edna Carla – Exatamente, como a maior parte da sociedade pensa. Eu achava que só morria quem devia morrer. E, na verdade, a realidade não é assim, não é para sair matando ninguém. Infelizmente, ainda tem muita gente com os olhos vendados e que não enxerga a realidade. A Chacina, infelizmente, abriu meus olhos. Ninguém ali era vagabundo e mesmo se fosse, o Estado não pode sair matando.

OP – Como foi o dia depois da senhora enterrar o Álef?
Edna Carla – Depois que você sabe que seu filho morreu, antes mesmo do enterro, você perde o chão, perde o rumo, perde o equilíbrio, você perde tudo. Então, não sei o que foi pior. Saber da notícia da morte do meu filho ou eu levar o meu filho para o cemitério ou eu deixar o meu filho dentro de uma tumba fria (ela chora e silencia)... eu voltar para casa e fechar a porta e, pela primeira vez, meu filho não poder entrar! Não sei se foi servir o café da manhã pela primeira vez sem ele. O aniversário dele, o meu aniversário, final de ano... então, tudo perdeu o sentido. Tudo isso foi enterrado com o meu filho. Por quê? Hoje já estamos com seis anos (da chacina) e eu comemoro, sim, Natal, Ano Novo, comemoro sim meu aniversário, o aniversário da minha filha, mas porque tenho uma filha e não posso enterrá-la junto com o Álef. Ela existe.

OP – Durante esses seis anos, como a senhora trabalhou a ausência do filho?
Edna Carla – Eu tenho de cuidar da minha mente para que eu possa cuidar de outras mães. Mas, eu digo com toda sinceridade, não tem sentido. A metade você sorrir porque está do lado de sua filha e a outra metade dentro de você chora (ela chora). Dentro de você não há prazer de ver uma mesa arrumada e a cadeira vazia, saber que aquela cadeira nunca mais será ocupada. Qualquer pessoa poderá se sentar naquele lugar, mas não será a mesma coisa. Não é o Álef, não são as outras vítimas ou os filhos que estão faltando para as outras mães.

 Edna Carla, mãe do adolescente Alef, teve seu filho morto na Chacina do Curió e atualmente faz parte do grupo Mães do Curió(Foto: Fernanda Barros)
Foto: Fernanda Barros Edna Carla, mãe do adolescente Alef, teve seu filho morto na Chacina do Curió e atualmente faz parte do grupo Mães do Curió

OP – São quantas mães?
Edna Carla – Do Curió são 11 mães. De duas eu não sei o nome porque nunca nos comunicamos. Na bandeira das vítimas do Curió estão nove pessoas. As mães são a Maria de Jesus que é mãe do Renayson Girão da Silva, 17; a Suderli é mãe do Jardel Lima dos Santos, 17; a Catarina é mãe do Pedro Alcântara Barroso, 18; a Netinha ou Francisca é mãe do Patrício João Pinho Leite, 16. A Ana Cláudia é a mãe do Marcelo da Silva Pereira, 17, é do interior do Ceará (Itapipoca). A Francilúcia criou Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17, desde que ele nasceu, a mãe dele morreu de câncer quando ele era pequeno. Tem a Jane que é mãe do Jandson Alexandre de Sousa, 19, e a Ana Lúcia que é esposa do Gilvan. E tem o Francisco Enildo Pereira Chagas, 41, e o Valmir Ferreira da Conceição, 37, que não estão na bandeira, mas nós lutamos por eles porque são vítimas também.


OP – Muito da dor da perda a senhora registrou no Facebook?
Edna Carla – Tenho muito zelo pelas pessoas do Facebook. Porque quem conhece minhas madrugadas (depois da Chacina do Curió) são as pessoas do Facebook. Porque eu não vou ligar para as mães, todas elas têm problemas, todas elas estão sofrendo. Então, eu extravaso minha tristeza, minha dor, no Facebook. É tanto que quando se completaram os cinco anos, eu fiz a postagem de cada dia, de cada hora, cada segundo, de quantas vezes a comida ficou entalada na minha garganta, de quantas vezes a água não conseguiu descer, de quantas vezes eu tive de chorar debaixo do chuveiro. De quantas vezes, eu tive de descer lágrimas dentro do ônibus, e as pessoas olharem pra mim e não entenderem por que eu estava chorando dentro do ônibus.

OP – O Álef tinha qual sonho de profissão?
Edna Carla – Ele queria ir para o Exército, botei isso na cabeça dele. E, também, queria ser reconhecido como skatista. Meu filho e as outras vítimas não tiveram o direito de entrar na faculdade. Eles tinham que ter tido essa oportunidade, a nossa luta também é para que esses jovens parem de ser mortos e tenham essas oportunidades. Lutamos para que esses jovens tenham a oportunidade de se casar, de ter seus filhos. Uma criança de 13 anos não pode se casar, como foi o caso do Mizael Fernandes da Silva (morto por PMs enquanto dormia, em Chorozinho, em julho de 2020). Aos 13 anos, ele foi morto e foi tirado dele o direito de se casar e outras coisas normais da vida. As crianças de 13 anos, infelizmente, estão sendo mortas. O Juan Ferreira dos Santos (tinha 14 anos quando foi morto por um PM, no Vicente Pinzón, em setembro de 2019), O Estado está matando os jovens da periferia.

 

"Nós, mulheres da periferia, já temos o negacionismo de todas as formas. O pior foi quando o Estado veio e arrancou nossos filhos"



OP - A senhora vê diferença de abordagem da polícia que está na Aldeota, por exemplo, é a que atua na periferia de Fortaleza?
Edna Carla – Muita diferença. A polícia que nós pagamos, que é para trazer segurança para o povo, não está trazendo para centenas de famílias que tiveram filhos mortos por ela. A polícia, dentro da periferia, traz mortes. Ela traz segurança, sim, para onde tem o capitalismo, para onde se gera o capitalismo, nos bairros ricos. Nobres somos nós, mas nos bairros ricos, na Beira Mar por exemplo, onde circula o capitalismo e o turismo não tem morte, a exemplo do que se testemunha na periferia. E é para se matar na Beira Mar? Não. Mas queremos a mesma polícia que atua na Beira Mar. A mesma polícia que entra na Aldeota e diz boa noite, bom dia e boa tarde cidadão. Nós queremos essa mesma polícia. O dinheiro que nós pagamos tem o mesmo valor. Só que as nossas vidas e as vidas dos nossos filhos não têm o mesmo valor. Na periferia têm jovens que sonham também em ser médicos, advogados e juízes, mas esses sonhos foram enterrados com esses jovens dentro de uma sepultura fria.

OP – O Álef tinha acabado de concluir o ensino médio?
Edna Carla – Ele estava fazendo o EJA (Educação de Jovens e Adultos). Uma pneumonia o atrapalhou e ele tinha tido uma recaída. O Estado ceifa não só a vida de um jovem, mas toda a juventude, toda a beleza, os sonhos deles, os sonhos de suas mães de ver um filho entrando numa faculdade. Eu tenho vários certificados de várias faculdades onde fui debater esse assunto, agradeço a todas que nos deram muito apoio, mas você acha que é fácil para eu sentar atrás de uma mesa de uma universidade e falar para aqueles jovens universitários sobre a violência institucional? Sobre a violência do Estado? Sobre a violência dentro de nossas periferias? Não é fácil. Porque eu queria entrar numa universidade para a colação de grau do meu filho, meu filho se formando e não é isso. Na periferia você vê menos jovens se formando, menos jovens entrando numa faculdade. Por quê? Porque eles são interrompidos. (ela chora)

OP – Qual o estado de ânimo, hoje, das mães das vítimas da Chacina do Curió?
Edna Carla – Cada uma tem uma maneira de lidar com a situação. Acredito que eu, por ser cuidadora de idosos e trabalhar há muito tempo com pessoas com depressão, acabei tentando fazer o mesmo trabalho comigo. Trabalho na minha mente, todos os dias, faço o meu ritual matinal de dar o bom dia para o meu filho. Como se ele estivesse vivo. É falar com ele como se ele estivesse vivo. É pegar minha luta para o dia a dia como se ele estivesse vivo. Essa foi a maneira que eu escapei da depressão, todas tiveram problemas de depressão. Algumas já vinham de uma situação difícil e que foi agravada com as mortes.

 

"Nosso luto se transformou em luta, em resistência, em lutar para que não se percam mais vidas"



OP – Elas não foram acompanhadas por psicólogos depois das mortes dos filhos ou maridos?
Edna Carla – O Estado nunca deu nada. Nós fomos acompanhadas pelo Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), que colocou os psicólogos de lá para acompanhar. Eu sou acompanhado por um do Programa de Proteção de Vítimas da Violência, há quase um ano. Elas foram para os Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mas não tem acompanhamento contínuo como era para ser. Faltam profissionais, faltam remédios, há o sucateamento. Uma mãe que sofreu violência é tão desprezada quanto todas as mães que sofrem violência e precisam de um atendimento público de qualidade.

Nós mulheres da periferia sofremos todas as consequências ruins do mundo. A gente sofre quando engravida e não tem um médico, sempre, para acompanhar um pré-natal. Você vai não sei quantas vezes, de madrugada, para marcar uma consulta. Comigo foi assim nas duas vezes. Quando a criança nasce, depois de 45 dias, não tem médico para acompanhar. Nós, mulheres da periferia, já temos o negacionismo de todas as formas. O pior foi quando o Estado veio e arrancou nossos filhos.

OP – No Mães da Periferia vi que a senhora tenta trabalhar com o resgate da alta autoestima das mulheres.
Edna Carla – Como mãe e como mulher, fomos destruídas pelo Estado quando arrancou nossos filhos. Criamos o Dia da Beleza porque existem mulheres que não se consideram mais como mulheres por conta da perda, a depressão tomou de conta. Elas acham se fizeram alguma coisa como se embelezar, estão fazendo uma coisa errada porque o filho foi morto. Então, temos que lembrar que elas continuam sendo mulheres antes da gravidez, durante a gravidez, quando amamentaram, quando pariram, quando criaram os filhos e continuará mulher depois da morte. Por quê? Porque têm de lutar pelos filhos e só podem lutar se estiverem vivas. Porque contra o Estado ninguém vai vencer ajoelhada nem dopada, é isso que o Estado quer. O Estado não apresenta uma terapia ocupacional nem um tratamento psicológico com dignidade. Ele apresenta vários antidepressivos, os mais fortes possíveis. O Estado abre duas covas, uma do lado da outra. Ele abre a do seu filho e a sua fica aberta.

OP – Quando é preciso, o Estado tem de receitar o remédio. Não?
Edna Carla – Olhe, para a Leidiane (Rodrigues, mãe do Mizael Fernandes) não foi oferecido para ela uma terapia ocupacional, um psicólogo com assiduidade. Não. Foi oferecido internamento e ela permaneceria dopada. Dopar para calar. É essa a intenção do Estado, dopar as mães para se calar. Não aceito esse tipo de tratamento, conseguimos com a Unifor (Universidade de Fortaleza) uma terapia ocupacional. A gente consegue esse tratamento mais humanizado com o povo da militância que sede os seus psicólogos para as mães.

 

"Eu fui enterrada naquele momento do assassinato dele, mas eu tinha que sair daquele buraco e lutar pelo meu filho"



OP É possível transformar o luto em algo menos sofrido para as mães?
Edna Carla – Nosso luto se transformou em luta, em resistência, em lutar para que não se percam mais vidas. Em ver pessoas felizes, alegres. Pessoas que tenham também a oportunidade de entrar no Enem e não sejam assassinadas antes desse direito. Então, o luto se transformou no verbo lutar. Nós passamos a lutar contra esse sistema que quer as pessoas mortas ou encarceradas.

 

 

Mães do Curió e Mães da Periferia apoiam mulheres com filhos vítimas da violência policial 



OPDepois da chacina, foi criado o grupo “Mães do Curió”. Agora, há também o “Mães da Periferia”?
Edna Carla – Quando eu criei no Facebook as páginas “Transformei meu luto em luta” e o “Mães do Curió lutam por justiça”, um jovem da militância e aluno da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) – o Felipe Farias – me procura e pediu para irmos conversar com a dona Marciana ou dona Dinha. Ela é mãe do Everton Mesquita que foi morto pela polícia, em Redenção. Então, fomos eu e a Maria, mãe do Renayson, e participamos da palestra. A Dinha não falou, estava muito recente o assassinato, que foi em 2017. Quando cheguei lá, eu disse: “Dona Dinha eu vou segurar a senhora”. E não soltei mais. Então, toda ajuda humanitária que vinha para as Mães do Curió, eu destinava também para Redenção.

OP – O Mães da Periferia se formou depois de mais execuções, após a Chacina do Curió?
Edna Carla – Sim. Aconteceu a morte do Juan, eu não fui logo lá. Com um mês, fui à missa na igreja da Saúde. Eu abri a bandeira e disse (à Tânia, mãe do Juan) que ela não estava só e a abracei. Depois me comuniquei com ela e, também, enviei ajuda humanitária a exemplo da dona Dinha. Ainda não existia o Mães da Periferia. Já tinha a Sandra Sales que estava na luta há mais tempo do que eu, desde 2013. Ela é a mãe da Ingrid Mayara, morta no Bairro Ellery por PMs. Também a família do Tico da Maraponga que recebia ajuda, também, do Curió. E aí, fiquei ajudando esse povo e infelizmente o número de assassinatos foi crescendo e veio a morte do cabeleireiro no Barroso, Audicélio Frazão. Depois veio a dona Regina, o filho foi morto há seis anos e a Leidiane, mãe do Mizael. Em abril de 2020, formamos o grupo Mãe da Periferia pelo WhatsApp. Muito rápido fizemos a bandeira com os filhos. E esse ano (fevereiro), infelizmente, teve a morte do Wesley de Souza Silva, 17, do Mondubim. Ele estava com uma bandeja de ovos e a polícia matou dizendo que ele estava armado. Hoje, temos o “Movimento Mães da Periferia de Vítima por Violência Policial do Estado do Ceará”. Sim, também tem a dona Margarida do Maracanaú. O filho dela, o frentista João Paulo, desapareceu nas mãos da polícia, em 2015.

 

"O Estado tem de responsabilizar pelos crimes que cometeu. Não só com as vítimas da Chacina do Curió, mas com todas que ele matou"



OP – A senhora disse que o grupo foi se formando e as mortes não pararam.
Edna Carla – Infelizmente, o Estado não parou de matar. Em 2016, a gente foi para as ruas pedir para que a polícia não matasse mais. A nossa vontade era essa, mas não é a vontade da polícia nem do Estado. Hoje, está aí, já tem mais Mães da Periferia do que do Curió. No Mães da Periferia já somos 12, mas há muito mais. Uma de Missão Velha não quis entrar e a gente não força.

OP – Um dos pedidos da Defensoria Pública é que o Estado peça desculpas pelas mortes. Isso basta?
Edna Carla – Olha, a desculpa não basta. Mas seria bom, o Estado pedir desculpas e seria bom, também, a Polícia Militar pedir desculpas. É um órgão que a gente paga e, então, seria justo, eles pedirem desculpas. O que basta para a gente é a condenação dos culpados. Não vai trazer nossos filhos de volta, mas é a condenação dos culpados. Também, que o Estado faça o memorial com todas as vítimas porque foram mortas injustamente dentro do Estado. Há duas ruas que levam o nome do Álef e do Jardel (no bairro São Cristóvão), mas não foram só duas vítimas que morreram. Foram onze. Então que essas onze vítimas sejam contempladas pelo Estado de todas as formas. O Estado tem de se responsabilizar pelos crimes que cometeu. Não só com as vítimas da Chacina do Curió, mas com todas as que ele matou.

Dona Edna Carla é mãe de um dos adolescentes mortos na Chacina do Curió(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Dona Edna Carla é mãe de um dos adolescentes mortos na Chacina do Curió


OP – O Álef e o Jardel moravam no bairro São Cristóvão e não no Curió?
Edna Carla – Infelizmente, o Jardel recebeu um convite de um primo que morava no Curió. Ninguém esperava que isso fosse acontecer. Ele e o Álef foram, não deviam nada a ninguém e podiam ir para onde quisessem. A polícia achou que eles deveriam ser mortos. Meu filho se estivesse andando de skate na Beira Mar, com certeza não seria morto. Como estava no Curió, é um lugar dos “matáveis”.

OP – Como a senhora encara os policiais hoje?
Edna Carla – No começo, eu tinha muito ódio. Acredito que ainda existam policiais que trabalhem como é para ser. A gente precisa da polícia para investigar, para nos ajudar. Ainda acredito que na Corporação. Como em todo lugar, tem uma banda podre e uma banda boa. O que exijo é que a Corporação investigue internamente e retire os bandidos fardados, porque há muitos lá dentro. Esses bandidos fardados é que têm de sair. A Corporação era para ser mais respeitada pela população, mas falta eles não nos respeitarem. A farda da polícia, infelizmente, está manchada de sangue. De sangue de jovens da periferia, jovens que querem se formar.




"Eu não poderia deixar meu filho ser enterrado como alguém que a polícia matou e dizia que não era inocente. Os culpados são eles que o mataram"



OP – As mães do Curió escreveram um livro. Qual a narrativa?
Edna Carla – O livro se chama “Onze”. Será lançado no dia 11 de novembro. Era para ter sido lançado em 2020, mas a pandemia impediu. Eu sempre pensei em trazer à tona as histórias dos meninos. Até hoje, todo mundo sabe da inocência deles. Porém ninguém sabe quem eram eles, eles tinham uma história. Eles eram pessoas, tinham uma família, tinham endereços, estudavam, frequentavam um colégio, tinham amigos... Então, o livro vai mostrar quem era o Álef? Quem era o Jardel? Quem era o Alisson? O que eles faziam? Quais os sonhos que esses meninos tinham? Nem todo mundo sabe quem eram eles. O livro vai contar toda a dor por causa da chacina, mas contará a história deles. Os assassinatos deles não podem ser apenas uma estatística como eles dizem. Foram onze pessoas que tinham vida e eram inocentes, sim. É muito fácil julgar o que não se conhece, eu quero que a polícia leia para ver o que fizeram. A conta chegou e não há soma, a polícia diminuiu onze pessoas do convívio da gente e dos outros (chora).

OP – São as mães que escreveram?
Edna Carla – As mães contam as histórias e temos várias escritoras, que as faculdades liberaram para nos ajudar a escrever. Isso não era o sonho que eu tinha para o meu filho, está num escrito sobre uma chacina. Queria que ele tivesse em um livro que ele escreveu porque fez um doutorado, porque escreveu uma dissertação. Ele e outros filhos das mães do Curió. Infelizmente, hoje, o meu sonho é mostrar quem era o meu filho (chora). O meu sonho hoje é mostrar quem são as onze vítimas do Curió (chora). O meu sonho hoje é você folhear o livro Onze e ler sobre as histórias de cada vítima (chora). Você vê as lágrimas do livro. Eu postei que foi escrito debaixo de muitas lágrimas das mães, de quem ouviu e de quem escreveu. As escritoras choraram também. Não é fácil entregar um livro para alguém porque seu filho foi morto (chora). “Olhe, tá aqui a história do meu filho, leia quem era o meu filho” (chora, pausa).

 

"A conta chegou e não há soma, a polícia diminuiu onze pessoas do convívio da gente e dos outros"



OP – Como ficou a vida de sua filha?
Edna Carla – A minha filha ficou com muito medo, o pai dele também. Ela tinha medo de eu me expor, tinha medo do que a polícia poderia ainda fazer. E eu disse a ela que o meu medo foi enterrado com o meu filho. Eu tinha medo de perder ele. Eu não poderia deixar meu filho ser enterrado como alguém que a polícia matou e dizia que não era inocente. Os culpados são eles que o mataram. Meu filho não era conhecido no Curió, nunca tinha ido ao Curió. Ninguém conhecia aquele menino. Quem era aquele menino que chegou no Curió e mataram? Se eu tivesse me calado, o meu filho talvez tivesse sido carimbado de bandido. Ninguém o conhecia, eu tive a missão de trazer à tona para dizer quem era o meu filho. Eu lutei de todas as formas. Eu fui enterrada naquele momento do assassinato dele, mas eu tinha que sair daquele buraco e lutar pelo meu filho. Lutei por todas as vítimas. Eu tinha de mostrar que o Álef não era o culpado da polícia matá-lo covardemente.

ESPECIAL TRATOU DOS TRÊS ANOS DA CHACINA

 

 
 

 

LEIA MAIS SOBRE A CHACINA DO CURIÓ

Chacina do Curió: Justiça obriga Estado a dar assistência psicológica às mães das vítimas

Dois anos depois, Chacina da Grande Messejana está longe do desfecho

Justiça decide que 31 PMs da Chacina do Curió irão a júri popular

Em três dias, Ceará tem duas chacinas maiores que a da Candelária

Mães criam grupo contra a violência policial


O que você achou desse conteúdo?