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Marta Aurélia: "O meu chão é a arte"
Reportagem Seriada

Marta Aurélia: "O meu chão é a arte"

Aos 60 anos de idade, cantora, atriz, compositora, poeta, produtora Marta Aurélia celebra quatro décadas dedicadas à cultura no Ceará
Episódio 36

Marta Aurélia: "O meu chão é a arte"

Aos 60 anos de idade, cantora, atriz, compositora, poeta, produtora Marta Aurélia celebra quatro décadas dedicadas à cultura no Ceará
Episódio 36
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"Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo?", questiona-nos o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak na obra "Ideias para adiar o fim do mundo"(2019). "A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos", sugere.

Num caleidoscópio multicolorido, Marta Aurélia borda seus paraquedas com as linhas da vida. Carrega no sangue que irriga seu coração a cosmovisão indígena: vive, conta histórias, canta, viaja, conversa, aprende, ensina. Não elimina a queda — inventa estratégias para aproveitar o voo livre.

Graduada em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará e especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem também pela UFC, Aurélia atuou por 30 anos na Rádio Universitária FM como locutora e produtora de programas musicais e jornalísticos. Artista multidisciplinar, é cantora, atriz, compositora, poeta, produtora e apaixonada pelo exercício do movimento.

 Assista à entrevista de Marta Aurélia à jornalista Bruna Forte

Premiada em cinema (melhor atriz coadjuvante no Festival Internacional de Cinema de Brasília e atriz revelação no Festival de Cinema de Cuiabá), rádio (Prêmio Mulher e Paz no Terceiro Milênio com edição especial do Programa Por Uma Cultura de Paz, que apresentou e produziu em parceria com Marília Rabelo na Rádio Universitária FM), música (Festival de Cajazeiras/Pb e indicações em outros festivais) e teatro (indicação por Minha Irmã no Festival de Teatro de São José dos Campos; destaque do Balaio por Qorpo Santo - O Tango e Braseiro; prêmio conjunto com o Grupo Bagaceira de Teatro com a peça A Mão na Face no Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga), Aurélia é acesa por dentro. Aproxima-se cada vez mais do happening, a investigação do acontecer sem roteiros, sem mapas.

Filha de Wilson Bezerra e Maria do Socorro, a primogênita de sete filhos nasceu no município cearense de Banabuiú em 1961 — nos estudos de Tomás Pompeu de Sousa Brasil, "banabuiú" significa rio que tem muitas voltas. É feito Aurélia, que aos 60 anos segue a trilha do vento.

 

 

OP: A casa dos seus pais, no Mondubim, foi o local escolhido para a nossa conversa. Como se construiu sua relação com Fortaleza e também com as cidades interioranas que permeiam sua vida?

Marta Aurélia: Eu nasci em Banabuiú, município de Quixadá, mas vim criança ainda para Fortaleza com meus pais, irmãos e irmãs. Somos sete, eu sou a primogênita dos filhos. A minha relação com Banabuiú foi ainda na primeira infância, até uns nove anos, mas me marca para sempre. Nessas memórias do vivido, eu lembro que eu me sentia muito antiga quando criança — à medida que o tempo passa, essa sensação vai ficando um pouco diferente. Mas só recentemente eu me dei conta de que a minha ancestralidade não se concentra no Banabuiú, mas sim no Cariri: toda a minha linhagem materna é do Cariri e meu bisavô era indígena. Eu já tive muitas lembranças do meu bisavô mesmo sem tê-lo conhecido, porque quando eu nasci ele já havia morrido há muito tempo, mas eu comecei a ficar interessada nessa história.

Ele era filho de indígenas de aldeia, mas vivia na cidade e se casou com minha avó, uma mulher branca. A configuração indígena pulsa em mim cada vez mais e eu sempre senti muita atração pela trajetória dele. O Cariri me chama há muito tempo… Comecei a cantar os cantos indígenas tremembés após ter uma intuição sobre quem eu sou. Nunca gostei de ser chamada de parda, nunca. Todas as vezes que eu tive que informar minha raça, eu não sabia dizer, mas não me sentia ali porque nós temos nossas histórias muito apagadas. Cantar nas línguas originárias me trouxe informações que explodiram na minha cabeça. Quanto mais a gente tem esses sons circulando, mais a gente pode acessar essa fonte ancestral. Sinto uma forte ligação espiritual com esse lugar.

OP - A arte está nesse lugar de descoberta da sua ancestralidade, da sua espiritualidade?

Aurélia - Sim.Quando eu me encontrei com a Maria de Araújo (beata que Marta Aurélia interpretou no filme "Milagre em Juazeiro", de Wolney Oliveira, lançado em 1999), eu fui buscar espiritualidades e observei a relação de fé muito católica que minha avó tinha. Então me apareceu uma outra personagem, a Francisca Carla, do filme "Fca Carla" (2011) de Natal Portela gravado em Tianguá.

Na década de 1940, ela chega ao Ceará fugindo da seca no Piauí e em um dado momento um médico identifica que ela estava com lepra — e, naquela época, a pessoa era isolada instantaneamente. Ela foi jogada na mata do Tianguá. Assim como a Maria de Araújo, a Francisca Carla recebe pedidos de graça, de milagres. Como não tem muitas imagens delas, a minha imagem se associou às duas… O filme do Wolney foi exibido em praça pública, para os milhares de romeiros, e eu fui de vestida de collant vermelho… Quando eu desci do palco, era um monte de gente pedindo a bênção mesmo assim (risos). Essa experiência de fé é muito forte no Cariri.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 28.11.2021: Páginas azuis com Marta Aurélia, atriz.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA FORTALEZA,CE, BRASIL, 28.11.2021: Páginas azuis com Marta Aurélia, atriz. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

OP - Como nasceu seu interesse em trabalhar com comunicação?

Aurélia - Foi por causa da Rádio Universitária. Desde criança eu ouvia rádio porque minha mãe sempre escutou muito, ela gostava de acompanhar radionovela, era fã do Ary Sherlock, sempre estava cantando maravilhosamente bem, o rádio era uma presença forte na nossa casa. Eu passei no vestibular e entrei no curso de Letras em 1981 — nessa turma estavam Eleuda de Carvalho, Franzé Rodrigues, Nonato Lima, várias pessoas que já estavam na rádio.

Como eu escutava demais rádio, eu vivi uma formação musical intensa, ouvia muitos programas legais. Pedi as coordenadas ao Nonato para ingressar na Rádio Universitária, fiz a inscrição e passei numa bolsa. Comecei a produzir um programa musical com poesia chamado "É preciso cantar". Um dia, a diretora artística me chamou para a locução, eu fiquei um pouco assustada, mas fui. A música me conduziu, mas o fato de estar naquele cotidiano, muito movida por aquele universo, me levou ao jornalismo. Esse povo todo entrou na Letras e migrou para a Comunicação. O Franzé e eu começamos a apresentar o noticiário, fui me familiarizando com essa coisa da notícia, da informação. Entre em 1982, 1983, eu já estava chegando junto na Rádio Universitária e no final dos anos 1980 eu transferi o curso.

OP - A Rádio Universitária foi muito presente em sua trajetória profissional — ao longo de três décadas, você atuou nesse espaço como locutora e produtora de programas musicais e jornalísticos. Como conciliar a artista e a jornalista?

Aurélia - Foi sim, eu precisei me afastar da Rádio Universitária! (risos). Na real, eu sei que sou uma artista. Isso é uma coisa que não dá para abrir mão. Eu acho que a comunicação me ajudou, de certo modo, ao me trazer mais confiança na diversidade. Na arte, muitas vezes existe essa divisão: você é cantora, é atriz, é bailarina… Mas a gente enquanto jornalista se arrisca em tudo, então a comunicação está a serviço de tudo. A comunicação tem uma participação muito importante na minha vida, mas o meu chão é a arte.

 

O Franzé e eu fizemos tanto esse exercício de ler a notícia que já identificávamos o texto sem nem mesmo ver a assinatura, gostávamos de revisar. Essa dinâmica de ler na condição de revisora e locutora foi me dando essa possibilidade de migrar da Letras para a Comunicação, de compor, de criar, de ser uma voz que lê com uma certa propriedade. As coisas são conectadas, prestar atenção na ligação que essas coisas têm me dá prazer. Eu gosto muito do que está por trás dos panos, daquilo que está nas entrelinhas. Às vezes, eu passo mais tempo no miudinho das coisas do que aquilo que está no aparente.

Conheci o Harbans Arora, professor de física da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador da Universidade Holística Internacional da Paz do Ceará (Unipaz), e ele foi muito importante para essa minha noção mais holística da vida. Comecei a sentir a artista querendo se expandir mais a partir desse olhar e foi muito fundamental porque, por mais bacana que a Rádio fosse, as minhas necessidades e demandas artísticas sempre são muito grandes e eu preciso dar muita atenção para isso, sabe?

OP - Você integrou o Grupo Raça, na companhia de Artur Guedes, e depois tornou-se atriz independente com atuação em múltiplos projetos. O interesse pelo teatro surgiu do desejo de criação?

Aurélia - Tudo foi confluindo… Em 1988, eu conheci dois atores do Théâtre du Soleil. Na primeira vez que a companhia veio ao Brasil foi para o Ceará e eu fui selecionada para fazer uma oficina com eles. Foi um negócio muito intenso durante um mês inteiro. O Théâtre du Soleil foi fundado por uma mulher chamada Ariane Mnouchkine, uma das principais diretoras de teatro do mundo. Na época, eu estava numa crise com o jornalismo e essa experiência teatral simplesmente me virou pelo avesso — para entrar em cena, eu precisava estar inteira. Se eu entrasse em cena só com um dedinho, esse dedinho precisava estar integralmente ali.

 

Esse lugar da voz é cada vez mais presente para mim. Ser locutora de rádio é um certo lugar; ser locutora de rádio mulher nos anos 1980, num ambiente extremamente machista e narcisista, é um outro lugar. A gente foi rompendo com essas estruturas. Num dado momento, criamos uma cena da voz feminina do rádio no Ceará.

OP - A jornalista, então, também fomentou a artista...

Aurélia - Desde criança a arte estava sempre ali, mas eu não pensava diretamente nisso. Eu lia muito na adolescência e gostava muito de escrever contos, poesias. Amava ler Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa… Eu lia aqueles vários heterônimos e pensava: "Sou eu, sou normal, posso ser várias, é possível" (risos).

 

Se a gente fizesse isso mais vezes, ganharia muito. Nos condicionamos a determinados formatos enclausuradores e limitadores e respiramos menos. Criei um programa chamado "Por Uma Cultura de Paz" — que tem a ver com o Harbans Arora, a Unipaz, uma amiga jornalista chamada Marília Rabelo — que veio dessa crise com a minha presença na rádio; com o teatro, já que tinha saído do grupo que fazia parte… E o Harbans me lembrou que eu tinha condições de criar.

Fiz o piloto do programa, juntei gente do papoco, ouvi falar sobre transdisciplinaridade. Isso foi costurando as minhas vivências artísticas com a comunicação, me trouxe um gás danado. A gente entrou no ar e o programa ainda não existia enquanto materialidade, nos lançamos nesse caminho para descobrir junto com as pessoas. Todos vivem o desconhecido e eu colocava isso diariamente no programa. E se a gente tornar essa grade de programação redonda, como a Terra?

OP - Essa potência de improviso também se destaca no seu fazer musical. Como esse movimento dos "hapennings" (termo utilizado pela primeira vez por Allan Kaprow durante a década de 1950) se manifesta?

 

 

OP - Você já foi premiada no cinema como melhor atriz coadjuvante no Festival Internacional de Cinema de Brasília e atriz revelação no Festival de Cinema de Cuiabá. O que marcou o início da sua atuação no audiovisual?

Aurélia - Minha entrada no cinema foi também nos anos 1990 e coincide com um movimento que estava começando a rolar por aqui, uma galera que estava iniciando exercícios no audiovisual. O Wolney Oliveira, por exemplo, era documentarista e tinha ido para a Escola de Cuba. Essa coisa de outras possibilidades de cinema estavam chegando. Eu gravei muitos vídeos institucionais como locutora, mas eu tinha uma presença híbrida e várias vezes interpretava. A dramaturgia foi essa entrada… Para ser sincera, eu não tenho uma quantidade grande nem no cinema e nem no teatro, mas sou muito ligada à experiência. Eu nunca gostei dessa coisa do "não tô fazendo nada, vou fazer teatro". Eu preciso de algo que venha de dentro, me mova. Eu me movo agora para fazer uma música, um show, uma peça… É muito subjetivo.

OP - O cineasta cearense Halder Gomes ("Cine Holliúdy", "Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral"; "O Shaolin do Sertão") e você receberam o Troféu Eusélio Oliveira das mãos do secretário da Cultura do Ceará Fabiano Piúba no Cineteatro São Luiz na abertura do 31º Cine Ceará - Festival Ibero-americano no sábado, 27 de novembro. O que representa essa homenagem?

Aurélia - Quando soube da homenagem, eu cheguei a pensar que gostaria de fazer mais cinema, talvez por não ter um volume de participação tão expressivo assim. Mas, a partir disso, olhei para minha própria trajetória e fui resgatando essas vivências. Como eu passo por outras dinâmicas e linguagens, às vezes eu perco um pouco a visão do que pode representar isso no próprio cinema, então eu fui entender essa relação. Um aspecto que eu acho extremamente importante é o encontro com a obra: o mundo do set não é tudo o que a gente vê a olho nu, ele tem muitas camadas, várias dimensões envolvidas.

 

OP - No seu discurso no Cine Ceará, você homenageou Verônica Guedes, jornalista, cineasta, produtora e diretora executiva do For Rainbow. São muitos os desafios para as mulheres no audiovisual?

Aurélia - Sim e isso é um reflexo do que a gente vivencia em todas as nossas relações nessa sociedade patriarcal e machista que ainda sustenta esse tipo de modelo. Mas nós estamos resistindo. Acho que esse exercício que a gente tem feito de resistência é também de criação de mundo — o grande barato é que a gente inventa, a gente cria, e isso é de uma força muito grande. Eu sempre tive, como a maioria de nós, esse desejo de colocar a minha própria voz nesse lugar de criação, de autoria. Nós sonhamos e queremos nos colocar na roda.

Antes, a gente não tinha muito esse espaço e precisava passar pelo sonho do outro, geralmente um homem, para poder ser co-autora de alguma forma. Agora a gente vive um momento muito bom, com muitas mulheres à frente e atrás das câmeras, que têm feito trabalhos maravilhosos. A Verônica Guedes tem sido a guerreira das guerreiras, sustentando há 15 anos um festival da diversidade sexual. Que força ela tem!

OP - Você afirmou que a arte é o seu chão...

Aurélia - Engraçado, né? Logo um lugar que não existe! (risos)

OP - Como você se observa no cenário artístico cearense?

Aurélia - Sabe, eu… (pausa) Eu acho que demoro muito a pensar sobre isso. Sempre tem esse lugar do olhar do outro — claro que eu quero saber também, que eu me olho, que eu me vejo criticamente. Mas eu deixo isso sempre muito para que os outros vejam, quero também me olhar a partir do olhar desse outro porque a minha visão sobre mim nunca é suficiente e pode me enganar bastante para o bem e para o mal. Eu não quero ficar pensando nisso o tempo, mas é inevitável pelo contexto que nós, artistas, vivemos.

Quando eu começo a pensar na minha história, como agora que estou aqui com você contando, eu vejo o tempo curtido e tudo o que eu vivi para olhar para essa trajetória. Eu acho que minha trajetória é interessante e sou muito feliz com ela. Claro que muitas coisas poderiam ter acontecido, muito ainda pode acontecer, principalmente para quem tem tantos desejos como eu tenho. Mas eu tenho esses desejos e gosto de fazer um exercício de desapego.

 

Essa linha da sobrevivência está muito difícil para todos nós só em a gente ter o Governo Federal que a gente tem. Eu percebi que, se eu me guiasse o tempo todo pela linha da sobrevivência, eu nunca faria as coisas que eu gostaria porque estaria sempre pensando na questão financeira. Eu resolvi pensar sempre "Marta Aurélia, confia, confia". Eu confio muito na minha intuição. Eu confio, sabe por quê? Porque tudo que eu faço é assim. A arte não existe, ela só existe se eu acreditar nela. A minha própria matéria-prima de trabalho, o próprio lugar que eu escolhi para estar é um lugar que só existe porque eu acredito nele. Se eu não tiver dentro de mim essa fé, essa crença, essa disposição para seguir um caminho que eu desconheço e fazer essa viagem, eu não viajo.

Eu opto por fazer arte, mesmo quando tudo diz que não é para a gente fazer. Sempre foi difícil. Hoje, ver meus pais, meus irmãos e meu filho com orgulho de mim é compreender que foi coisa por coisa, no miudinho, lidando com minha própria descrença, com o não saber nada, mas com a minha intuição dizendo "Vai, vai...". Não vai ser agora, com mais de 40 anos, que ela vai me enganar (risos). Todo esse meu trançado na arte, em seus desvios, trilhas, viagens, linhas e entrelinhas, se conectam em luz e sombra. Por baixo, por dentro, por cima, nas profundezas tem muito mais. Eu gosto de nunca esquecer disso.

 

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