Aos 70 anos completados em junho, a chargista e cartunista Laerte Coutinho espera que o período de azar brasileiro chegue ao fim em 31 de dezembro deste ano. Sete anos atrás, ela brinca, o Brasil perdia a Copa do Mundo de futebol e quebrava um espelho, inaugurando uma etapa de “desgraças sucessivas”.
Autora de tiras icônicas e personagens que se inscreveram na história das artes brasileiras, como os “Piratas do Tietê” e outros, Laerte desabafa: “Parece um pesadelo o que estamos vivendo”. Ela se refere aos anos de governo Bolsonaro e à Covid – a artista esteve doente durante a pandemia.
“Um sujeito que é o presidente da República vir a público dizer que a vacina dá Aids, que não adianta se vacinar porque vai pegar o vírus de qualquer jeito. O cara não é só um desinformado, um truculento, um imbecil total, ele é um mal-intencionado mesmo. Esse sujeito tinha que estar impedido de se dirigir à nação, de exercer esse cargo”, critica a cartunista.
Em conversa com O POVO pelo Zoom, Laerte evita falar sobre o futuro, mas tenta encontrar respostas para entender o caldo político e cultural que conduziu o país até aqui.
Na conversa, ela também reflete sobre saúde, a relação com o próprio corpo e a transição de gênero, iniciada em 2010 e ainda não concluída. Sobre isso, Laerte diz que hoje é muito mais tranquila: “Eu sei que eu sou uma mulher”.
O POVO – É estranho falar de futuro neste momento em que a gente começou a imaginar que poderia sair da pandemia e, de repente, aparece uma variante e coloca tudo em questão novamente. Mas como projeta o futuro imediato do Brasil?
Laerte Coutinho – Eu não faço a menor ideia (risos). O Gregório Duvivier, numa das colunas dele, esboçou uma teoria interessante. Disse que o futebol é uma espécie de espelho do país, e quando a gente – a gente que eu digo é a seleção brasileira – perdeu de 7 a 1 da seleção da Alemanha, foi como se o país tivesse quebrado o espelho.
OP – Acha que a gente era assim e não sabia?
Laerte – Não sei, não sei dizer. A quantidade de crueldade, de demência, de injustiça que se acumula na história do Brasil, de opressão, de exploração. Talvez a gente não faça ideia do quanto isso nos afeta mesmo, o que isso é capaz de construir em termos de um grande monstro.
OP – Como uma chargista que fala de política, você se obriga a acompanhar o noticiário todo dia? A realidade não é de fácil de digestão.
Laerte – É, mas a realidade não é uma coisa pra gente se alimentar e digerir, fazer o quilo e depois tirar uma sesta (risos). A realidade é a realidade, a gente está vivendo com isso, não é que eu me obrigue. Eu procuro estar informada sobre o que acontece mesmo que não estivesse fazendo charges, é o modo como eu vivo. E eu nem sou tão informada assim, sinto grandes lacunas na minha informação. Muitas vezes passam-se coisas que eu desconheço, sobre as quais eu não tenho muita ideia. Então procuro ir atrás, algumas são difíceis de entender, demandam um pouco de paciência também.
OP – Por exemplo.
Laerte – Por exemplo, essa PEC de precatórios, esses assuntos todos de economia. Em que medida isso atende ou não os interesses de quem? Quais são os grupos que estão por trás disso? Entender o tamanho da destruição que está sendo conduzida no Brasil não é tão simples. Não é uma coisa de se falar assim: Bolsonaro é um fascista que quer destruir o Brasil. De fato é e quer, mas como ele trabalha isso é mais complexo, não é uma coisa simples. Eu gosto de estar entendendo o melhor possível cada coisa que vem.
OP – Acha que sair dessa situação em que nos encontramos agora vai demandar muita energia?
Laerte – O que está consumindo nossa energia é ficar nisso, o país estar submetido a esse descalabro todo suga todas as nossas energias, e a gente está numa espécie de sentimento geral. Estou cansada, não aguento mais, a gente ouve isso assim o tempo todo. E não é só a pandemia. É a pandemia no contexto de um governo que quer nos ver mortas, todas. É uma coisa assustadora. Parece um pesadelo o que estamos vivendo. Um sujeito que é o presidente da República vir a público dizer que a vacina dá Aids, que não adianta se vacinar porque vai pegar o vírus de qualquer jeito. O cara não é só um desinformado, um truculento, um imbecil total, ele é um mal-intencionado mesmo.
OP – Você contraiu a Covid durante a pandemia. Isso mudou a percepção daquele momento? Como é olhar para essa experiência depois de ter se recuperado?
Laerte – Foi assustador enquanto estar doente e próxima de uma situação de risco realmente grande e, ao mesmo tempo, é um conforto saber que existem instituições, estruturas, forças e pessoas que são capazes de produzir campanhas de vacinação, apesar do governo. Que são capazes de produzir um atendimento pra população, que são capazes de produzir ainda uma quantidade grande de providências que, em resumo, são o que está nos salvando. Se a média móvel de mortes e de contaminações vem caindo, se deve unicamente a esse tipo de esforço, que é o esforço de municípios, estados, instituições e estruturas que o Bolsonaro não conseguiu destruir, não conseguiu anular, porque, pela vontade do governo, estaríamos todos e todas mortas.
OP – Como artista, o fato de ter estado internada e doente alterou de alguma forma seu ponto de vista?
Laerte – Você está falando de sequelas cognitivas (risos)?
OP – Não apenas.
Laerte – Diz que tem, eu não consegui perceber ainda se eu tive qualquer sequela cognitiva do ponto de vista de memória, de capacidade de fazer ilações e tudo. Eu tô achando que eu tô mais ou menos igual. Estou um pouco mais dispersiva, mas não chega a ser uma grande surpresa. Eu tenho sequelas respiratórias, parece que é difícil de superar mesmo.
OP – Não sei se você recorda, mas, no início da pandemia, havia aquela crença de que a gente atravessaria esse período e sairia melhor do outro lado, algo baseado não se sabe em quê. Acha que houve algum tipo de lição que a gente extraiu?
Laerte – Não sei, o país não é exatamente uma pessoa ou uma personagem de fábula que aprende lições. Um país é uma estrutura quase incompreensível. Há inúmeros modos de tentar se entender e atuar na realidade, mas, de modo geral, eu não sei dizer se o país aprendeu a lidar com isso ou aquilo... Eu não sei se aprendeu, sabe?
OP – Ano passado se completaram dez anos desde que você começou sua transição de gênero. Como vê aquele momento agora?
Laerte – Eu estou mais tranquila (risos). É o tipo de movimento que eu jamais me arrependi de fazer. Em nenhum momento desses dez anos eu tive uma dúvida do tipo “meu Deus, será que estou indo no caminho certo?”. Eu não sei aonde vou chegar, eu não me tornei uma mulher modelo, assim como não era um homem modelo. Existem formas de gradientes nessa caminhada que nem me autorizam a pensar num ponto final. Eu sei que estou indo, estou modificando minha existência dentro do quadro de gêneros que existe. E acho que estou fazendo o bem. Era isso o que eu queria fazer mesmo, estou caminhando no sentido do que eu queria, estou indo.
OP – Você já se definiu como uma mulher possível.
Laerte – Isso, uma mulher possível, uma mulher categoria “aspirante” (risos). É porque é isso, eu não acredito que exista a mulher modelar e o homem modelar, e que essas são categorias absolutas e que ou você está ali ou você não está. Eu acho que todos esses pontos fazem parte de trajetórias diferentes. É evidente que existe a referência da mulher, existe a mulher enquanto ser histórico, existe a mulher enquanto ser dotado de direitos, que faz parte de uma problemática que é reconhecida e tal, assim como a problemática e a questão transgênero também vêm sendo cada vez mais reconhecidas e se tornando uma coisa palpável. Mas, eu não fico me preocupando assim, será que eu sou uma mulher de verdade, será que vou me tornar uma mulher de verdade, e se eu colocar seios, e se eu construir uma “neovagina”... Não tô preocupada com isso, não tô. Eu sei que eu sou uma mulher.
OP – Em algum momento teve receio, nesse período, de se colocar num lugar de vulnerabilidade social? Pra citar um exemplo, o estado do Ceará é um dos que mais matam pessoas trans no Brasil.
Laerte – É, onde mataram a Dandara.
OP – Isso. Essa variável passou pela sua cabeça?
OP – Aos 70 anos, recém-completados em junho agora... É geminiana, é isso?
Laerte – É (risos).
OP – Costuma ler sobre astrologia?
Laerte – Eu já li mais. Mas interesse eu tenho em tudo. Já fui mais leitora de astrologia, eu seguia uma astróloga que gosto muito que é a Barbara Abramo, uma amiga minha. Mas é por fases, atualmente não tenho me conectado muito.
OP – Como é sua relação com o próprio corpo?
Laerte – Com muito cuidado, principalmente por causa das sequelas da Covid. A Covid me deixou um pouco mais consciente em relação aos problemas do meu corpo, mas eu já vinha me cuidando. Eu procuro me cuidar porque, quanto mais idosa a pessoa se torna, certas fragilidades vão se apresentando de forma mais evidente, então é preciso ter cuidado.
OP – Sobre vestuário: você já falou uma vez que não gosta de comprar roupa pela internet. Como tem sido nesse período, que obrigou todo mundo a ficar confinado?
Laerte – Ah, eu gosto de experimentar. Eu tô com a mesma roupa do início da pandemia, não comprei praticamente nenhuma peça, a não ser algumas coisas cujo tamanho e feitio pra mim são absolutamente tranquilos, então pedi umas duas ou três. E uma camiseta que comprei numa saída que eu dei, passei na Hering e comprei. Mas não tenho ido em lojas, comprado roupas, saias, vestidos. Não tenho feito isso.
OP – Mas, de modo geral, o vestuário tem papel importante pra você?
Laerte – É mais importante do que era quando eu existia no masculino. Naquela época, eu realmente estava pouco me lixando, eu botava a primeira coisa que eu pegasse no armário e pronto. Agora, não, eu me preocupo com a relação do meu corpo com a roupa, o modo como eu gostaria, naquele momento e naquele dia, de ser percebida, de aparecer e tal. O meu corpo também vem se transformando. Eu não tenho mais aquela bundinha que já tive uma vez (risos). Então a roupa exige, da minha parte, alguma sabedoria na escolha.
OP – Em relação ao desejo, como você vive hoje isso e como foi nesse período de transição?
Laerte – Desejo? Quer dizer sexo?
OP – Também.
Laerte – Eu não sei. Do ponto de vista de desejo enquanto uma parte geral da gente, eu acho que a morte do meu filho me deixou um pouco embaçada, um pouco nublada nessa área.
OP – A morte dele foi em 2005, e você passou a se identificar no feminino a partir de 2010. Tem alguma relação com isso também?
Laerte – Eu já vinha, em 2004, planejando fazer um trabalho pessoal em relação ao gênero. A morte do Diogo, nesse sentido, me fez adiar passos e decisões que eu vinha pensando. No entanto, decisões na área do meu trabalho, por exemplo, eu me senti autorizada a fazer. Achei que a urgência de como a vida estava se colocando era compatível com as mudanças que eu queria fazer no meu trabalho. Eu produzi isso. Mas, na área de gênero, não, esperei mais uns quatro ou cinco anos.
OP – Seu trabalho de alguma maneira antecipou esse processo? Você já vinha experimentando isso no campo da linguagem?
Laerte – Vinha, vinha. Nas minhas tiras, eu vinha experimentando algumas coisas. Eu estava experimentando parar de desenhar personagens, por exemplo, ou fazer histórias que não tivessem tão claramente o objetivo de produzir risada, me desligar um pouco desse roteiro classicamente cômico. Vinha fazendo experiências nisso baseada num sentimento pessoal, de cansaço pessoal, em relação a minha linguagem e em coisas que eu via as pessoas discutindo ou formulando. Lembro de uma coluna em que o Chico Buarque falava sobre a música, e eu fiz uma espécie de transposição para a área dos quadrinhos. Isso me fez chegar em alguns pontos interessantes.
Grandes entrevistas