Nascido em 28 de fevereiro de 1964 no território indígena Munduruku em Belém do Pará, o escritor e professor Daniel Munduruku é autor de mais de 50 livros infanto-juvenis. Em 2021, foi indicado ao Prêmio Jabuti e fez uma elogiada campanha à Academia Brasileira de Letras, apesar de acabar não tendo sido eleito para a instituição.
Ainda que até os nove anos não soubesse ler da maneira tradicional, ele destaca que desde sempre esteve envolto na literatura — tanto pela presença da oralidade, ao ouvir narrativas compartilhadas pelos pais e avós, quanto pela leitura da natureza que empreendia.
Quando aprendeu a leitura tradicional e seguiu uma importante trajetória formativa — que inclui graduação em Filosofia, Psicologia e História e pós-graduações em Educação e Linguística —, Daniel encontrou na escrita uma forma de alcançar corações e imaginários, especialmente de crianças, partindo para uma atuação literária que é também política ao buscar a visibilidade de pautas indígenas.
Crítico do governo Bolsonaro — “é como se nós tivéssemos voltado 50 anos no tempo, só que com um requinte de crueldade maior”, diz comparando com o período da ditadura militar (1964-1985) —, o escritor aposta no gesto democrático do voto como ferramenta de concretização de mudança.
No ano eleitoral, ele apoia o presidenciável Ciro Gomes, mas especialmente planeja se candidataro a deputado estadual em São Paulo, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). “A política institucional precisa ter a presença muito mais efetiva das populações originárias, da população afro-brasileira”, defende.
O POVO - Até os nove anos, você não frequentava a escola tradicional, mas sim aprendia junto aos seus o que a cultura Munduruku oferecia. De que forma, nessa época, a literatura e as narrativas se revelavam para você?
Daniel Munduruku - Nasci em 1964 dentro de um povo originário e tradicional, os Munduruku, que já tinha um contato antigo com a sociedade, mas a gente estava em uma época de política que os povos indígenas não tinham dignidade nenhuma. Não havia muita educação, formação. Por conta disso, cresci dentro de uma comunidade onde a gente não tinha acesso a livros. Portanto, meu aprendizado e contato eram pela oralidade. Os pais e avós contavam histórias e a gente aprendia a essência, a base do nosso povo, a partir dessas narrativas. Só fui ter acesso a livros, mesmo, nos meus nove anos, quando fui para a escola, num contexto urbano.
Claro, já conhecia, na aldeia tinha presença de pessoas não-indígenas, também, e por isso a gente tinha contato com o objeto livro, mas não eram voltados para educação, eram tipo a Bíblia. Tive esse contato, mas não tinha hábito da leitura porque não sabia ler, mas eu tinha a leitura da narrativa indígena, a leitura da natureza. Meu primeiro contato até os sete anos foi exatamente um aprendizado de “escutatória”, escutando e vendo as coisas fazendo sentido. Certamente devo ter desenvolvido assim alguma capacidade de ouvir, ver e escrever.
O POVO - Em uma entrevista ao O POVO em 2019, você afirmou que só começou a gostar de ler na faculdade de Filosofia. Depois dela, você se tornou mestre e doutor. Como você engrenou nessa trajetória formativa?
Daniel Munduruku - Foi um caminho mais ou menos natural. Quando terminei meu ensino fundamental, a tendência era que eu voltasse para a aldeia e ficasse por lá, ou não voltasse e ficasse na cidade trabalhando como “peão” — o que era, na verdade, o que o estado militar queria naquele momento; que a gente se tornasse “brasileiro legítimo”, ou seja, exercesse uma profissão dentro da sociedade. Acontece que eu estudava em uma escola salesiana e, depois dos estudos e de uma conversa com meus pais, decidi entrar no seminário. Era uma ideia que me ocorreu naquele momento para poder continuar os estudos. Foi isso que me levou a fazer ensino médio, dentro da igreja, e depois a faculdade de Filosofia.
Quando terminei a graduação, saí do seminário e fui fazer faculdade, continuar. Já tinha a formação (do seminário), mas descobri que o diploma que havia recebido não tinha validade acadêmica, porque era uma faculdade para formação de sacerdotes e não era reconhecida pelo Ministério da Educação. Isso acabou me fazendo vir para São Paulo, cidade de Lorena, onde estou até hoje. A partir do começo dos anos 1990, fui para a capital e, lá, entrei em contato tanto com o movimento indígena que estava ali estruturado, quanto com a Universidade de São Paulo.
O POVO - Você costuma apontar que a cultura indígena é ensinada de forma equivocada no Brasil e, imagino, você deve ter sido o único indígena nas turmas ao longo dos cursos. Como foi essa questão para você?
Daniel Munduruku - Foi muito complicado. A Universidade, primeiro, não foi feita para gente pobre, gente da periferia, para os excluídos. Eu venho de uma sociedade que é completamente excluída. Mas, no começo dos anos 1990 — com a sociedade brasileira tendo passado pelo golpe militar, pela nova constituição (1988) —, as populações indígenas começaram a ter uma visibilidade maior. Isso fez com que as universidades se abrissem mais para recebê-las, naquela ocasião houve um princípio de compreensão de que indígenas tinham esse direito.
Mas fui dos primeiros, sim, na graduação que fiz em Manaus, depois em Lorena, na própria USP, e houve pessoas que achavam que eu não tinha que estar lá. Houve uma luta e isso acabou sendo impactante em mim porque eu tinha que me esforçar mais do que os outros. Os outros, se estudassem ou não, já eram privilegiados. Eu, se não estudasse, não conseguiria entender o que eles estavam falando. Então tive que me esforçar um pouco mais do que a média e, talvez por conta disso, aperfeiçoei meu olhar sobre vários temas e, sobretudo, tentei fazer a costura entre os saberes indígenas e os saberes ocidentais. Não sei se deu certo, mas o fato é que conquistei um espaço dentro da universidade que foi muito bacana.
O POVO - Você escreve, em especial, para o público infanto-juvenil e a sua obra age em prol dessa “costura”. De que forma todo esse seu percurso te ajudou a conseguir produzir para esse público?
Daniel Munduruku - Sou educador de formação. Por conta disso, a ideia que sempre me acompanhou foi a de procurar fazer uma aproximação, porque a gente vinha — vem — de uma sociedade que aprende de forma muito equivocada informações a respeito das populações indígenas e isso foi sendo reproduzido na cabeça das crianças. Fui percebendo que eu era um bom contador de histórias e isso me levou naturalmente a buscar, na contação, um caminho. Quando descobri que, para além de um bom contador de histórias, eu era, ou podia ser, um bom escritor, podia usar a literatura como ferramenta, entendi que o público melhor para esse trabalho pedagógico e de informação eram justamente as crianças.
Eu não quis fazer uma atuação, vamos dizer, a partir da questão política, eu queria pegar pela fantasia, pela magia, porque é pela magia que eu alcançaria o coração das pessoas, das crianças em especial, e conseguiria fazer essa aproximação. A disputa política é sempre muito árdua e lida com interesses que são muito arraigados. Quando a gente lida com criança, a gente está trabalhando com o imaginário, e ele permite que a gente possa ir introduzindo algumas informações e conhecimentos nas crianças e, assim, que elas entendam mais esse outro universo. A literatura é sempre muito mágica. É nesse sentido que acabei optando, digamos assim, pela literatura infanto-juvenil.
O POVO - Você se candidatou em novembro para a Academia Brasileira de Letras e, quando conversamos naquele contexto, disse que isso era uma forma de destacar as pautas da luta indígena para além da demarcação de terras. Apesar de não ter sido eleito, sua campanha foi bem recebida. Em outros circuitos, como o Prêmio Jabuti, você também tem colhido indicações. O que esses reconhecimentos significam para você e para a sua luta por alargar as compreensões sobre a realidade indígena?
Daniel Munduruku - Tem muito mais a ver com uma luta política, uma questão ligada às nossas conquistas enquanto movimento. É uma representação que se cria e ela tem um alcance, isso altera, e muito, o modo como as pessoas olham para as nossas populações, nossa gente, nossa cultura, tudo aquilo que nós somos e que sempre foi mostrado de forma equivocada. Participar dessas disputas é, na verdade, uma tentativa de trazer à tona tudo aquilo que a sociedade brasileira tem ocultado dela mesma e mostrar que a gente pode ajudá-la a pensar sobre si mesma.
Do ponto de vista individual, não mudaria nada pra mim. Do ponto de vista do coletivo, acho que mudaria muito, porque traz uma representatividade. Como você falou, fui bem recebido, a crítica é receptiva a mim, e isso é justamente porque há uma boa parte da cultura brasileira que não se sente representada. Se o movimento negro, que é mais de 50% da população brasileira, não se sente representado, imagine a população indígena, que é 0,3% Ela se sente muito menos representada.
O POVO - Você mencionou que nasceu e cresceu impactado pela Ditadura Militar, regime que é apoiado pelo presidente Bolsonaro, que desde 2018 vem construindo um governo com muitos militares. Nessa gestão, as populações indígenas têm sido alvos de ataques virtuais e factuais, do próprio presidente e de seus apoiadores. Que paralelos você vê entre os dois contextos?
Daniel Munduruku - Eu diria que é a mesma coisa. Mudaram-se as moscas, mas a porcaria está ali do mesmo jeito. Na verdade, nem as moscas mudaram muito. Se a gente pensar, houve mais retrocesso do que avanço. É como se nós tivéssemos voltado 40, 50 anos no tempo, só que com um requinte de crueldade maior. Ao mesmo tempo, também uma maior visibilidade, porque se naquele tempo os militares podiam esconder as coisas que faziam, com a corrupção correndo solta, hoje em dia isso é mais difícil.
No entanto, eles usam a prerrogativa da Constituição para manter de certa maneira escondidas as suas falcatruas. Eu era criança no grosso da ditadura, era uma vítima passiva, mas olhando historicamente a gente vê que está acontecendo exatamente a mesma coisa, inclusive no discurso. Nem criatividade eles tiveram para fazer um diferente, continuam reproduzindo a ideia do “índio” atrasado, do “índio” selvagem, fora da realidade — e aqui estou usando o termo bem pejorativo — , para desqualificar os indígenas. Eles só ficaram mais cruéis, utilizando o instrumento das redes sociais, inventando fake news e detonando todas as conquistas que as populações indígenas foram alcançando durante os últimos anos.
A avaliação que eu faço é, obviamente, muito negativa dos pontos de vista histórico, sociológico, antropológico, humanitário, da saúde pública. E pensar que o Brasil estava em um caminho um pouco mais interessante de reconhecimento de suas identidades e diversidades cultural, linguística... Hoje a gente não vê nenhuma política pública favorável aos povos indígenas, estamos vendo um bombardeio absoluto sobre os direitos indígenas. A entrada de congregações religiosas e missionários evangélicos em território indígena é uma afronta ao estado laico. A liberação do uso de armas faz essas armas irem para as mãos justamente daqueles que invadem terras indígenas. Eles vão matar as pessoas legalmente. Se você dá o uso legal de arma, você dá o uso legal para as pessoas usarem a arma.
O POVO - Uma das principais pautas de 2021 foi a discussão do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), que ao mesmo tempo que mostrou o tamanho da força de mobilização dos povos indígenas contra ele, também mostrou a falta de priorização do tema nos âmbitos do poder, já que a decisão ficou para 2022. O que o fato da decisão sobre a tese ter sido adiada revela?
Daniel Munduruku - O que nós já sabemos: que a nossa justiça funciona em função de interesses de uma categoria que tem muito mais a ganhar com a aprovação do tal do marco temporal do que a perder. Por outro lado, se nós tivéssemos uma justiça de fato que estivesse disposta a defender o que está escrito na Constituição, isso seria muito mais importante para os indígenas do que para empresários, sobretudo do agronegócio, que são os principais interessados nessas terras. Isso revela que o Brasil é um país que ainda não cresceu, no sentido emocional, intelectual, identitário. O Brasil é um país adolescente e, por ser adolescente, está numa guerra de identidade. Pensa como criança, mas quer se tornar adulto e acha que tomando certas atitudes vira adulto.
O POVO - Falando de poder, você chegou a se candidatar à prefeitura de Lorena pelo PDT em 2020 e, agora, 2022 é ano eleitoral. De que forma você aposta na política institucional para essa mudança que você cita como necessária?
Daniel Munduruku - Estou apostando muito na possibilidade da gente ter um governo novo, um governo brasileiro de fato. A política institucional precisa ter a presença muito mais efetiva das populações originárias, da população afro-brasileira. Aposto muito na institucionalidade, sou uma pessoa que a defende muito. A instituição é muito importante na construção de políticas públicas. Para isso, é peciso haver pessoas que possam representar o conjunto de interesses e demandas que a própria sociedade tem.
Nesse sentido, acredito muito na capacidade do povo brasileiro fazer essas mudanças acontecerem. Eu mesmo pretendo me candidatar a deputado federal pelo estado de São Paulo por acreditar exatamente que não dá para a gente ficar alheio a essas questões, porque se não a gente corre o risco de ser governado novamente por pessoas que não tem compromisso com as nossas demandas. Estou esperançoso.
Costumo dizer que tenho a esperança como projeto. Quero crer que teremos um projeto nacional de desenvolvimento mais efetivo, com uma pessoa qualificada no cargo, porque o que nós temos hoje é um absurdo, e que nunca passou pelo executivo que será uma resposta efetiva aos dramas do Brasil. Nesse caso, estou falando de Ciro Gomes, que acredito que seja a pessoa ideal para capitanear essas mudanças que o Brasil precisa.
O POVO - Como você avalia a conjuntura da candidatura dele, frente à liderança de Lula, a manutenção da base de Bolsonaro e a figura do Sérgio Moro?
Daniel Munduruku - Quando você fala de elite, por exemplo a elite do esporte, é o que há de melhor. Da elite no sentido intelectual, da experiência, do passado limpo e comprometido com valores, Ciro Gomes faz parte. Mas ele não faz parte da elite política, econômica, que é a que governa o Brasil, então é claro que ele é pouco valorizado e desconsiderado por essa gente.
Quando Moro é apresentado como uma possibilidade, nós estamos falando de alguém que reza pela cartilha neoliberal, com os mesmos princípios econômicos que o atual mandatário também reza. Obviamente que não vai dar para essa elite hegemônica manter o Bolsonaro, porque ele é muito ruim para os negócios, vão tentar colocar outro. Talvez suportem que o Lula entre, mas aguentar o Ciro, com o discurso nacionalista, de direitos e de empoderar a sociedade que ele tem… Ele não cabe nessa lógica.
O POVO - Falamos, até aqui, sobre contextos desafiadores políticos, climáticos, econômicos, sanitários, e com toda a escalada desses problemas, se instaurou um sentimento global de falta de perspectiva, desesperança, como se o mundo estivesse acabando. Por outro lado, lideranças e artistas indígenas têm falado muito sobre o jeito muito próprio de encarar as questões e sobre sua resistência que é, afinal, de milhares de anos. O que as cosmologias indígenas podem ensinar neste sentido?
Daniel Munduruku - O discurso que nos foi oferecido por esse atual governante é de que tudo iria mudar, e para melhor. As pessoas não percebem isso, mas esse discurso vem sendo propagado já há muito tempo porque tem muito a ver com a nossa formação judaico-cristã, com a perspectiva de um futuro paraíso onde um dia nós iremos nos deliciar. Por conta disso, a gente foi engabelado. Não queria dizer para as pessoas que o discurso ou a cosmologia indígena é melhor do que as outras cosmologias. Ela é também uma narrativa, que faz sentido para aqueles povos que a entendem. Ela não serve em geral.
As narrativas ancestrais trazem tanto elementos positivos, de que nós vamos superar as dificuldades, quanto o aspecto do fim do mundo. Em se tratando das populações indígenas, que dependem intrinsecamente da natureza para sobreviver, uma vez que nós estamos vendo a natureza sendo depredada, degradada, vilipendiada, comercializada, a gente diz: “Nosso mundo já era, não tem mais o que fazer”. São mais de 305 povos no Brasil, mais de 305 cosmologias diferentes, todas calcadas na permanência da natureza como princípio vital. Com esse princípio vital nos sendo tirado, obviamente que as nossas culturas e existências perdem um pouco de sentido, então o mundo acaba.
Agora, os povos indígenas nunca foram de desistir, então não é que exista um receio do mundo acabar. Ele acaba para todas as pessoas que morrem, mas as culturas permanecem e precisam se reinventar. Para o Brasil se reinventar, ele tem que olhar para essa outra visão cosmológica, para tirar alguma mensagem e poder dar um passo. O Brasil, para seguir adiante, precisa ganhar impulso e, para isso, precisa se reconciliar com a sua história, com a sua memória, com seus ancestrais. Porque ele foi construído sob um cemitério, como diz Ailton Krenak, e algo construído assim acaba enterrando fantasmas que, mais cedo ou mais tarde, aparecem para infernizar a vida da gente.
O Brasil foi construído sob o cemitério de muitos povos indígenas, sob os corpos de muitos negros africanos escravizados que foram trazidos para cá, e então ele precisa olhar essa história, se reconciliar e prosear com ela, valorizar o esforço que essas populações fizeram, para poder dar um impulso para, então, dar o salto para o futuro. Se vai acontecer ou não, isso é outra narrativa.
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