A história do gaúcho Marcelo Boeck poderia ganhar as páginas de um livro. Nascido em Vera Cruz, interior do Rio Grande do Sul, começou a jogar futebol na escolinha do clube que o pai presidia, ganhou oportunidade no Internacional-RS, rumou cedo para o futebol europeu e voltou ao Brasil para construir história na terra natal, o que foi um divisor de águas: estava na Chapecoense-SC na época do trágico acidente aéreo e, na sequência da carreira, tornou-se ídolo do Fortaleza.
A longa trajetória do arqueiro de 37 anos carrega glórias e cicatrizes. Conquistou Libertadores e Mundial pelo Inter, clube que o revelou, mas pouco atuou; fez história em Portugal, sobretudo no Sporting, com títulos e marcas pessoais de destaque; retornou ao Brasil com esperança de se firmar na Chape, mas perdeu espaço e conviveu com o trauma de perder dezenas de companheiros.
No Pici desde 2017, o camisa 1 celebrou três títulos do Campeonato Cearense (2019, 2020 e 2021), um da Copa do Nordeste (2019) e um da Série B (2018), além do histórico acesso da Série C e as classificações inéditas pra Sul-Americana e Libertadores. Superou o período de ostracismo que amargou em 2020, ganhou vida nova em 2021 e voltou a ser titular. Boeck já faz cursos pensando no futuro, mas mantém o foco no presente e quer escrever novas páginas da história no Tricolor.
O POVO - Como foi a infância no Sul? Já gostava de jogar futebol?
Marcelo Boeck - Eu sou de uma cidade chamada Vera Cruz, lá no Rio Grande do Sul, bem no centro do Estado. Um cidade pequena, de 30 mil habitantes, onde todo mundo conhecia todo mundo, e a minha família toda, do meu pai - e a minha mãe metida mais no vôlei -, sempre no esporte. Meu pai, meus três tios sempre jogavam nas equipes que jogavam Municipal ou Regional por lá. Minha mãe fala que em toda a gestação dela, quando eu estava na barriga dela, ela estava na beira do campo olhando meu pai e meus tios jogarem, os irmãos dela. Então sempre fui envolvido nisso, desde pequeno a gente é criado dessa maneira.
Eu lembro que, em 1993, meu pai foi presidente do clube lá da cidade e reabriu o departamento de escolinhas, fez o primeiro quadro, segundo quadro, veteranos... E aí eu comecei a ir na escolinha do clube. Quando tinham os jogos, eu ia para a beira do campo. Era filho do presidente, podia ter acesso a tudo. Ia para a beira do campo e pedia para os caras chutarem a bola para mim, então, desde pequeno, fui envolvido com futebol, quebrei alguns vidros lá em casa. Eu sou filho único, o único filho único da família, então quebrei alguns vidros chutando bola contra a parede, contra as portas. Sempre fui muito voltado ao futebol e voltado a cair no chão, defender bola também. Desde o começo, seja na escolinha, seja na rua, fui criado dessa maneira de ter o futebol já muito no sangue.
OP - Você lembra quando despertou a possibilidade de seguir carreira no futebol?
Boeck - Em 1993, quando eu tinha 9 anos, foi quando o pai abriu as escolinhas e a gente começou. Com 11 anos, eu jogava no Vera Cruz e no Juventude, de Caxias. Eram dois campeonatos diferentes. Os clubes mais renomados do Rio Grande do Sul disputavam a Copa Melita, e os clubes do interior, menos renomados, jogavam o Gauchão Esperança. Eram dois campeonatos paralelos, então em um final de semana eu jogava pelo Vera Cruz e, no outro final de semana, jogava pelo Juventude. Quando o jogo do Vera Cruz era no sábado, eu poderia jogar no domingo pelo Juventude ou vice-versa. Com o Juventude, eu pude jogar contra Grêmio, Inter, Caxias, esses times. Isso chamou a atenção, por isso com 12 para 13 anos eu fui para o Internacional. Aí é onde começa, mas eu lembro que com 9, 10 anos já estava muito vivo por causa das escolinhas da minha cidade. A gente disputava esse Gauchão Esperança, depois fez uma campanha muito boa, acabamos indo para um Sul-Americano. Como estavam vindo também os resultados, eu comecei a me apegar ainda mais ao futebol.
OP - Você chegou ao Internacional-RS ainda muito jovem. Essa formação em um clube grande foi importante na sua carreira?
Boeck - Eu sempre tive o Taffarel, que veio do Inter, como o goleiro da seleção, como aquele espelho. E tinha um goleiro da região que se chamava André, que também foi goleiro de seleção, jogou no Inter e no Cruzeiro. E por ser da minha região, acabava que ele me apadrinhava: dava dicas, chuteiras, luvas. Acabava tendo esse convívio. Quando eu vou para o Inter é uma mudança brusca, porque eu saio de uma cidade de 30 mil habitantes para uma cidade de 1,5 milhão. No primeiro ano, eu fui assaltado três vezes, então eu queria ir embora. 'Não, isso não é para mim. Lá na minha cidade eu conheço todo mundo'. Aí foi quando meu pai e minha mãe falaram: 'Não, nós vamos ficar, vamos investir nisso. Quanto mais a gente puder ir visitar, a gente vai. Fica firme que vai dar certo'.
Você sair do clube Vera Cruz e ir para o clube Internacional é um mundo completamente diferente. Tu também acaba virando homem (adulto) mais rápido, ainda na adolescência, porque vai para um alojamento onde tem 100 pessoas, do Brasil todo, com várias culturas, várias maneiras, e você tem que se virar. Nas duas primeiras semanas, eu perdi sete quilos. Eu não era acostumado a treinar todo dia e lá tinha que treinar todo dia. É uma outra cultura. Meu primeiro jogo foi Gre-Nal. Aquele sonho de criança, de ver Grêmio x Inter só pela televisão, já foi meu primeiro jogo. É um mundo completamente diferente, mas que te dá perspectivas completamente diferentes.
É mais tempo no futebol do que de vida na minha cidade. Virou uma profissão, em que eu tenho paixão, um amor muito grande, que fez tudo na minha vida. Hoje, poder olhar essa história para trás, de tudo que a gente passou... No meu último ano antes do profissional, o Inter quase caiu de divisão. Viver uma quase queda para uma reformulação total, em que você fez parte dessa reformulação, também foi muito importante para a minha construção como homem, como profissional. Até como líder e capitão, porque tive o privilégio de andar com pessoas que realmente eram os capitães dos clubes. Tudo isso contribuiu para a minha formação.
OP - Com pouco tempo como profissional, você foi jogar em Portugal. Como surgiu essa possibilidade?
Boeck - Deus preparou toda uma trajetória e uma formação, não só de um atleta, mas de um homem, de um pai. A minha estreia no Inter foi em 2005, em uma final de Gauchão. Entrei no meio do jogo, fiz uma defesa importante, e a gente conseguiu o título. Já fui credenciado com o título gaúcho, depois joguei Copa do Brasil, em alguns jogos da Libertadores que a gente ganhou (em 2006), depois Campeonato Brasileiro. Vivemos o título da Libertadores e do Mundial, da Recopa Sul-Americana no ano seguinte, e chegou um momento que eu precisava voar, jogar um pouco mais. O Clemer estava lá ainda, tinha o Renan, que no ano seguinte jogou e foi vendido para o Valencia. Era uma disputa muito grande, não tinha esse revezamento que tem hoje de todos poderem jogar. Eu lembro que dois jogadores que foram campeões da Libertadores e do Mundial com a gente foram emprestados para o Marítimo, em Portugal, e, um dia, o empresário que levou eles estava lá no pátio do Beira-Rio e falou: 'Eles estão precisando de um goleiro. Tu quer ir?'. E aí eu disse: 'Se der certo, eu vou'.
Fui para o Marítimo, fiquei quatro anos. No meu último ano de contrato, fui vendido para o Sporting e aí, sim, realizo aquele sonho de jogar uma Champions League, Liga Europa, lutar por títulos europeus. Só que no meio desse caminho, entre Marítimo e Sporting, chegou um momento em que eu falei: 'Deveria ter ficado mais tempo no Inter'. Porque quando a gente está no Inter, vivendo o que nós vivemos, acha que só o Inter é bom, nosso universo no futebol é só o Inter. Essa ida para a Europa me abriu muito os olhos. Não existe só o Inter, o Marítimo ou o Sporting. Lá eu tive meu primeiro filho, minha filha também, foi meu início de casamento.
OP - Viver em outro país e conviver com outras culturas e jogadores de várias nacionalidades ajudou a desenvolver o perfil de liderança?
Boeck - Na verdade, começou no Inter. Eu fiquei muito tempo no quarto (na concentração) com o André, que era capitão, e depois com o Fernandão, que é o grande capitão do Inter. Eu lembro de reuniões que não tinha por que eu estar lá presente, para falar sobre premiações, reuniões entre diretoria e jogadores, só com 'cobras criadas', os velhos, e o Fernandão falou: 'Vamos junto'. Eu perguntei: 'Mas o que eu vou fazer lá? Já vão me olhar atravessado', aí ele explicou: 'Tu vai escutar para que um dia tu seja o cara que representa o clube'. Depois, quando chega no Sporting... No meu primeiro ano, tinha americano, holandês, marroquino, croata... Diversas nacionalidades. A gente acha que por ter ido para Portugal, pela língua ser parecida, é fácil. Só que chega nesse momento de um grande clube que você tem que se virar, é o modo 'survivor' de falar inglês. Você tem que saber falar o mínimo do inglês para falar com os caras lá. E existe a barreira cultural de como eles enxergam os brasileiros, que não tem essa imagem lá. O brasileiro vai para lá e não é tratado dessa maneira, com esse profissionalismo, essa seriedade.
OP - Após o período da Europa, você voltou para defender a Chapecoense-SC. Era um desejo seu construir uma história no Brasil?
Boeck - A Chape já tinha feito uma consulta no primeiro ano de Série A, em 2013, se eu não me engano. Na época, eu até conversei com o André, que depois se tornou auxiliar fixo do Inter, ele passou um pouco da experiência, e eu resolvi ficar mais tempo na Europa. Como eu saí com 22 anos do Brasil, muito cedo, o futebol mudou muito, os clubes mudaram muito. Os goleiros começaram a jogar muito cedo, como o Alisson, por exemplo. Lá em Portugal, há um tempo, existia uma miniférias de Natal e Ano Novo, um recesso, e a gente vinha para o Brasil. Em um desses, já voltando para Portugal, quando a gente estava fechando as malas, meu filho sentou em cima de uma e falou assim: 'Eu quero ficar mais perto dos meus avós, dos meus tios, meus primos, quero poder estar aqui perto da minha família'. A gente já estava há nove anos em Portugal, só que ainda tinha dois anos e meio de contrato ainda.
Eu sempre tinha o sonho de voltar para o Brasil e terminar a carreira aqui, até para construir uma história. No dia seguinte, quando a gente pegou o voo, as crianças dormiram, e eu e a minha esposa começamos a conversar sobre isso, essa possibilidade, que, no Brasil, geralmente é em janeiro, quando começa a temporada. Se tivesse essa oportunidade, se fosse por aqueles valores, que teria que baixar para se enquadrar no Brasil, a gente voltaria. Aí, começaram algumas consultas. Tiveram três times, só que a Chape realmente veio e falou: 'A gente quer para agora'. E eu tinha um acerto com o presidente do clube, com quem eu me dava muito bem: 'Eu quero ficar em Portugal, mas se tiver um clube do Brasil que me chame a atenção e eu queira ir, eu gostaria que o senhor me liberasse'. Eu tinha esse acordo com ele e foi o que aconteceu. A gente estava no meio da temporada. Durante esse período da negociação com a Chape, eu tive que jogar uma Liga Europa lá na Rússia; o Rui Patrício, que é o goleiro da seleção, foi expulso em um jogo e eu tive que jogar a Liga (de Portugal); no outro jogo, que eu ia ser liberado, o terceiro goleiro se lesiona, então não tinha goleiro para levar e tive que ir para o jogo de novo. A Chape chegou e falou: 'Se tu não estiver até tal dia aqui no Brasil, não vai dar'. Eu joguei um jogo em um domingo à noite, voltamos de ônibus, cheguei às 3h30min da manhã, minha esposa estava fazendo as malas e às 7 horas eu comecei a levar as malas para o aeroporto, com as crianças, para que às 10 horas a gente saísse e chegasse na data certa em Chapecó. Eu ia voltar com 31 para 32 anos e ia dar para jogar um tempo aqui no Brasil e fazer uma história.
Foi um capítulo para a nossa experiência, para a gente entender e dar valor às coisas mais simples. Na correria do dia a dia, a gente acaba deixando de lado. Lá em Chapecó, eu poderia levar meus filhos a pé para a escola, porque tudo era perto. São coisas que jamais faria em outro lugar. São coisas que me marcaram, me fizeram repensar muitas coisas. Para mim também foi importante para o aprendizado, crescimento.
OP - Como lidou psicologicamente com o trauma do acidente da Chapecoense e a necessidade de retomar a carreira?
Boeck - Quando eu falo que 2016, na Chape, foi o maior aprendizado foi também pela parte psicológica. Por quê? A volta para o Brasil muito motivado para jogar acabou, no final, meio que me decepcionando. Tinha dois anos e meio de contrato lá em Portugal e voltei só para jogar no Brasil. Cheguei em um momento, em setembro ou outubro, que não queria mais jogar futebol, queria ir para casa, já estava frustrado. Dez dias antes do acidente, o Enio Mourão, o César Sampaio e o Carlos Bonfim, aqui do Fortaleza, ligaram. Eu nunca vou esquecer a cena: a Dayane está na cozinha do nosso apartamento, em Chapecó, o Enio liga e fala: 'O Fortaleza queria te contratar'. Eu falei: 'Então beleza, vamos começar a falar'. Só que eu falei de uma maneira só para não dizer um 'não' na hora, porque não era a minha vontade. Na época, eu tinha um plano na minha carreira que era sempre Série A. E sair da Série A direto para a Série C não existia na minha cabeça, por mais que nos anos em Portugal eu acompanhei quase todos os jogos do acesso, porque passavam os jogos do Brasil, e sabia da grandeza que era o Fortaleza. Só que eu, pessoalmente, não tinha essa motivação, até pela frustração que eu estava e não tinha essa ideia. Quando eu desliguei o telefone e larguei em cima da bancada, a Dayane estava de costas para mim e perguntou: 'Quem foi que ligou?', aí eu falei: 'O pessoal do Fortaleza, mas eu não estou a fim'. Aí ela virou e falou: 'Mas não descarta, porque eu estou sentindo algo diferente disso aí'. 'Mas tu está louca, sair de uma Série A para uma Série C?', aí ela falou: 'Só não descarta'.
Antes do fatídico voo da Chape, a gente jogou uma semifinal e tinha um lateral-direito que a gente 'apadrinhou' ele e a esposa. Sem querer, ele botou um áudio do empresário dele no grupo dos jogadores. Para não ser inconveniente, eu apertei em cima para deletar, só que eu pressionei e começou a falar. O empresário falava assim: 'Cara, valoriza onde tu está, está indo jogar uma semifinal de Sul-Americana, vocês estão fazendo uma campanha fantástica no Brasileiro', porque ele estava com medo de um antigo lateral de muito renome lá na Chape que iria voltar, e o empresário falava para ele acreditar mais em si. Isso me chamou a atenção. Eu chamei esse lateral e falei assim: 'Toma muito cuidado porque nem todo mundo vai entender da maneira que eu entendi e esse áudio pode ser usado da maneira que for. E valoriza o empresário que tu tem'. No dia seguinte, o empresário me liga: 'Meu nome é fulano de tal, eu quero te agradecer pelas palavras que tu falou para o meu jogador. O quão difícil é meu jogador reconhecer, quanto mais uma pessoa que tu não me conhece. O que tu precisar, pode contar comigo. Não precisa assinar nada, mas conta comigo para tudo'. Quem foi o empresário que fez minha negociação com o Fortaleza? Esse cara.
OP - Depois da Chape, você acerta com o Fortaleza e encara um início difícil até conseguir o acesso na Série C, né?
Boeck - Foi muito rápido. Tive que arranjar apartamento pela internet, viajei no dia 1º de janeiro, comecei os exames e os trabalhos no dia 2. Nas duas primeiras semanas, um calor extremo. Sair do Sul para vir para Fortaleza, treinar de manhã, não é fácil. Quando a gente treinava de manhã e de tarde, na parte da tarde eu chegava ali no quintal do seu Manoelzinho e tive que vomitar várias vezes porque não estava aguentando, era um choque muito grande. No dia 15 de janeiro de 2017 foi a nossa estreia, contra o Ferroviário, nós empatamos esse jogo, no Castelão. Às 16 horas, parecia que tinha um dragão assoprando, não passava um vento. No final do jogo, a torcida já estava esperando na porta do vestiário, cobrando a gente. No jogo seguinte, nós ganhamos a Taça dos Campeões Cearenses do Guarani de Juazeiro, recebemos o troféu debaixo de vaias, e a torcida esperando na saída do vestiário. A nossa sorte foi que tivemos jogo contra o Ceará na terceira rodada e ganhamos, porque foram dias de alívio. Isso me marcou muito, por mais que eu goste disso, porque um clube como o Fortaleza, que tem a torcida apaixonada, tem que ter cobrança e o jogador que vem para cá tem que saber assimilar essa cobrança e fazer com que isso se torne uma motivação, um desafio para conquistar os objetivos.
O começo foi muito difícil, porque nós caímos na primeira fase da Copa do Brasil, primeira fase da Copa do Nordeste, nem chegamos na final do Cearense, tivemos salários atrasados, não só dos jogadores, mas dos funcionários. Há uma reformulação toda, muda a diretoria, vêm Luís Eduardo Girão, Marcelo Paz, (Sérgio) Papellin e começam a fazer toda uma reformulação. Vários jogadores são negociados, vários vêm, e a gente começa o trabalho todo de novo. No primeiro jogo, contra o Remo, lá no Pará, perdemos de 1 a 0. Quando a gente começa em casa, lá no nosso PV, começa a ganhar os jogos e retomar, fazer a caminhada, com muitos percalços, muita desconfiança. Nós fomos eleito o pior time da história do Fortaleza.
OP - A defesa no jogo contra o Tupi-MG, no mata-mata da Série C, foi a mais importante da sua carreira?
Boeck - O peso foi, né? Teve a do primeiro jogo. O Fortaleza nunca tinha ganho um jogo de mata-mata em Fortaleza. Ganhar em casa dá um suporte, dá aquele up. No próprio sábado do jogo, pais chorando com os filhos. Nós temos uma imagem aqui, no nosso muro, que é o pai abraçado com o filho, chorando, falando: 'Você vai ver o time na Série B'. É uma geração toda que nunca tinha visto o Fortaleza na Série B, o Fortaleza vitorioso no mata-mata. Tem uma defesa quando estava 0 a 0, no Castelão. Ganhar em casa já tira um peso, mas faltava o grande jogo, o grande dia, que era o que todo mundo queria. Aquela defesa não era só o Boeck que estava lá, eram milhões de torcedores nossos que estavam juntos e puderam tirar (a bola). Eu costumo sempre dizer que não tem festa que se compare a nossa volta do acesso. Não era só alegria, era desabafo, todo aquele martírio... Era amor à flor da pele na sua essência, as pessoas podendo botar para fora. No trajeto do aeroporto para o Castelão demoramos quase quatro horas. Isso já demonstra a grandeza e a paixão que é esse clube.
OP - Você se considera ídolo do Fortaleza?
Boeck - A minha referência de ídolo é muito alta. Existem heróis e existem ídolos. O herói é aquele de um jogo, um jogo muito importante, que vai ficar marcado eternamente. E existem os ídolos, que são aqueles que, dentro e fora de campo, jogando ou não jogando, vão se manter dentro de um profissionalismo e um respeito ao clube. O clube vai estar sempre em primeiro lugar. Você pode estar triste, com raiva, achar que é uma injustiça, mas o objetivo do clube tem que estar sempre acima do teu ego, do teu orgulho e do teu objetivo pessoal. Você tem que contribuir de alguma maneira. Esse patamar, para mim, é muito alto. Essa resposta eu deixo para a torcida responder. Eu quero ser um exemplo sempre. Quero que as pessoas possam olhar e ver o Fortaleza em mim, ser o Boeck do Fortaleza. Esse é o meu objetivo.
OP - Em 2020, você ficou um longo período sem jogar, às vezes até fora do banco de reservas. Foi o momento mais difícil no Fortaleza?
Boeck - Foi, com certeza, o mais difícil. Fiquei um ano e quatro meses sem jogar uma partida, um ano e sete meses sem jogar uma partida de Série A. Depois de tudo que a gente viveu e fez dentro do Fortaleza, passar por isso não é fácil. Hoje, olhando, foi muito importante passar por tudo isso até para abrilhantar ainda mais a história. A gente sempre passa por dificuldades, momentos que nos fazem melhores, mais fortes. A pandemia também é isso, o que nos faz rever muitas coisas também. O momento de dificuldade e de provação nos faz sair melhores e mais fortes. Hoje eu posso dizer que se não fosse Deus, minha esposa e meus filhos, a gente não estaria mais aqui. As pessoas nem imaginam tudo que meus filhos escutaram na escola, o que eu e minha esposa escutávamos no dia a dia, onde a gente passava. Como as pessoas não têm todo o acesso - e nem devem ter também, tem coisas que têm que ficar no clube mesmo -, não imaginam. Você não poder se defender, porque às vezes o certo não era se defender, porque o clube tem que estar acima de tudo e não atrapalhar o ambiente, o dia a dia, o treinamento e os jogos é melhor para aquele momento.
OP - Você tem mágoa do Rogério Ceni?
Boeck - Não, não tenho. Primeiro porque ele é um pai de família. Eu não gostaria que ninguém falasse mal de mim, porque os meus filhos podem escutar, e eu jamais vou falar mal de um pai de família. Ele tem filhos que têm ele como exemplo, como alguém muito querido. Quem sou eu para falar ou julgar? Eu acho ele um bom treinador, sei separar as coisas. Jamais vou partir para algo pessoal ou particular. Tudo na vida tem um aprendizado. Eu aprendi e saí mais forte disso.
OP - Em 2021, você voltou a jogar e terminou a temporada como titular. Qual avaliação faz do ano?
Boeck - Foi um ano muito difícil. A gente começa a se questionar muito e, no futebol, confiança é tudo. Quem tem confiança e está se sentindo bem acaba fazendo melhor as coisas. Para mim, foi muito difícil porque eu tinha muita desconfiança em mim mesmo. Eu comecei a questionar a mim mesmo se eu tinha capacidade, qualidade. No meu primeiro jogo (em 2021), contra o Sampaio Corrêa, com o Enderson (Moreira) ainda, eu falei para o Marcelo Paz: 'Eu ainda sou bom, eu ainda presto'. Porque era a minha cobrança, o meu pensamento: 'Será que eu tenho condições ainda?'. Quando eu falo que foi um ano de ressurgimento, eu sei que não foi um ano perfeito, sei que tive falhas, mas também sei que fui muito importante.
OP - Há alguns anos, você afirmou que tinha o sonho de levar o Fortaleza à Libertadores. Qual o sentimento de concretizar isso?
Boeck - A gente botou um patamar muito alto, né? Uma régua muito alta, até de cobrança, por um sonho que a gente realizou. Foi um ano diferente. Teve um casamento muito importante, que é o Vojvoda com o Fortaleza. Por mais extremamente feliz que a gente possa estar com o quarto lugar e ido para a Libertadores, a gente não tem a real noção do que fizemos ainda. Nós só ficamos atrás de Atlético-MG, Flamengo-RJ e Palmeiras-SP. Em um comparativo muito rápido, o clube, desses três, que menos paga uma folha salarial mensal paga R$ 15 milhões. R$ 15 milhões para a do Fortaleza... Nós só ficamos atrás deles. Fomos a uma semifinal de Copa do Brasil. Nós não vamos para uma pré-Libertadores, vamos para a Libertadores, credenciados pelo quarto lugar no Brasileiro, onde existem forças que ficaram atrás da gente. Isso é muito grande, se a gente parar para pensar. Só que a gente não tem tempo para parar para pensar. Nós temos que renovar mais uma história nesse ano de 2022. Então, daqui a cinco, dez anos, nós vamos olhar para trás e falar: 'Aquele ano foi algo muito grande'. Só que esse é o nosso maior objetivo esse ano: fazer com que a régua esteja aqui (no topo) ainda. Se nós vamos conseguir ou não, cabe a nós, no dia a dia e nos jogos, fazer. Mas que a régua agora ficou muito alta e os jogadores que ficaram aqui e que chegaram têm que ter essa noção. A nossa torcida e o nosso clube exigem esse patamar, jogadores que venham compromissados para que isso se mantenha. Não adianta em um ano ir para a Libertadores e, no outro, lutar para não cair. Isso não dá para o Fortaleza. Tem que ser um clube equilibrado e cada vez evoluindo mais. No meu caso, poder viver isso, passar um filme desde a Série C, poder estar no jogo que decidiu (a vaga) a Libertadores, decidiu o G-4, ganhar de grandes potências do nosso país, fazer parte daquela linda festa contra o Bahia... É algo que só aqui, no Fortaleza, você pode fazer. Você pode passar por outros grandes clubes, com grandes torcidas, mas aquela festa é só aqui no Fortaleza.
OP - Durante o período de negociação da renovação de contrato, o tema dividia opiniões na torcida. Como você lida com as críticas?
Boeck - Eu lembro dois, talvez três jogos que eu poderia, diretamente, ter feito mais. É que quando a gente atinge um patamar dentro do clube, existe o ônus e o bônus. Quando a fase não é boa, quando o time não está tão bem, qualquer gol é falha do goleiro, principalmente quando o goleiro é uma referência dentro do plantel e do clube. Eu tenho essa noção. Hoje, com a pandemia também, potencializou ainda mais as redes sociais, então a gente tem que ter muito cuidado. Chega um momento que a gente não olha mais tanto, porque sabe o que está sendo falado, tudo aquilo que envolve. O jogador de futebol hoje também tem esse peso. Se eu for fazer uma análise fria e calculista, tenho mais momentos positivos do que negativos, muito mais. E também por isso o clube veio e me chamou para renovar, por aquilo dentro de clube e por tudo profissional, tudo aquilo que a gente é fora do campo. O Fortaleza chegou em um nível agora que não adianta só ser bom jogador, tem que ser profissional, tem que ter respeito. Logicamente, quando o tema surge, existe um mix de emoções, mas a maioria da torcida sempre reconhece e é grata.
OP - Já pensa no futuro após se aposentar como jogador? Soube que você faz cursos na CBF...
Boeck - Nas nossas conversas, tanto com o Marcelo Paz como com o Alex Santiago, a gente sempre deixa para decidir no final do ano se vai (renovar) mais um ano, tanto eles quanto eu. Eu já tenho começado a fazer o curso (de técnico) da CBF, nível B, depois comecei a fazer o curso de gestão. Acho que é importante. Não é questão de exercer ou não, é uma questão de qualificação pessoal. Isso tudo faz parte de crescer como ser humano, como profissional. Se o clube, de repente, no futuro, achar que eu devo exercer, me achar capacitado para isso, logicamente que o Fortaleza vai ter sempre prioridade na minha vida. Minha família ama a cidade, nós já temos bens aqui, isso seria um processo natural, mas isso é depois que a gente decidir: 'Deu'. Eu tinha um projeto de jogar até os 38 (anos), era o meu primeiro objetivo. Mas agora, em uma conversa com a minha esposa e até com o Marcelo Paz e o Alex, aquilo que o corpo for dizendo, aquilo que eu for rendendo dentro de campo, vai dizer. Por isso que a gente tem tratado ano a ano. É uma questão muito minha e do clube. Me sinto agora, com 30 e poucos anos, melhor do que era com 20, porque a gente conhece melhor o corpo, se cuida. O futebol também evoluiu, a preparação física, e faz com que a gente tenha esse desenvolvimento, suplementos, tudo aquilo que o clube oferece, e também a posição de goleiro oferece uma longevidade em alto nível.
OP - O que o Fortaleza representa para você?
Boeck - Lá em casa, a gente nunca assumiu nenhum compromisso, nenhum desafio sem entrar de corpo e alma. Para nós, hoje, é muito difícil. E por isso que foi tão doloroso o período de maior dificuldade no Fortaleza, talvez isso tenha sido o que mais doeu. Às vezes, as pessoas podem chamar de marketeiro, que está fazendo média, mas, na verdade, é a nossa paixão, o nosso amor, a gente sente isso na pele mesmo.
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