Ao longo de mais de três décadas de carreira, a atriz Denise Fraga seguiu firme no propósito de nortear seu ofício pela liberdade de criar. Sucesso no humor com obras como "Retrato Falado" e "O Auto da Compadecida", a artista chegou a abrir mão de estar na TV para continuar produzindo seus espetáculos no teatro, fiel ao olho no olho com a plateia. Aos 57 anos, está de volta às novelas em "Um lugar ao Sol", com personagem que equilibra dores e gargalhadas.
Apesar das dificuldades no segmento cultural aprofundadas com a pandemia de Covid-19 e o governo Bolsonaro, Denise afirma não abrir mão das temporadas cênicas Brasil afora e já está de volta ao teatro. Para a atriz, é nesse trânsito entre regiões do País que ela reafirma que o Brasil vale a pena. Em entrevista ao O POVO, Denise fala sobre os prejuízos do esvaziamento da lei Rouanet, a relação com o próprio corpo diante do passar dos anos e a esperança de reconstrução política do País.
O POVO - A Denise Fraga que o Brasil conhece equilibra comédia e drama. Como essa criação entre o choro e o riso constrói você enquanto artista?
Denise Fraga - Esse virou meu terreno preferido, né? É quase como se hoje, quando eu pego uma coisa completamente cômica, eu vou caçar o drama dela. Mas depende, tem texto que não dá para você fazer isso. Eu sempre acho que a comédia e o drama, quando caminham juntos, geram um terreno muito fértil. A comédia te chama para a inteligência. Você ri daquilo que você entende. É como se a comédia fosse ligada ao cérebro e o drama ao coração. Você não consegue identificar direito por que você se emociona. A comédia é mais matemática, mas certeira. Você sabe o que te fez rir. O elogio que eu mais gosto de receber é "eu não sabia se eu ia ou se eu chorava" com alguma cena. É quando a pessoa está nesse lugar que é a própria vida. Quando você tem a felicidade de encarar as coisas com humor, você sofre com certa racionalidade. As pessoas que têm humor conseguem estar atentas quando estão sofrendo. Quando você sofre atento, você tem mais chances de aprender com o teu sofrimento. Sempre que estou passando por adversidades, eu digo "fica atenta, Denise". Muitas vezes, eu estou chorando, reclamando e, no meio do drama, eu faço uma piada, que já é, talvez, até um calo de ofício (risos).
O POVO - Essa característica de unir opostos tem relação, em alguma medida, com sua família, sua infância?
Denise - Eu sinto que muito da atriz que eu sou se deve ao lugar de onde eu vim, da minha família. Cresci com muita gente, numa casa muito grande, com muitas tias. Eu passava o dia na casa da minha bisavó, que era quem tomava conta de todos nós para as nossas mães trabalharem. Era uma casa muito cheia de gente e meu tio-avô tinha uma loja. Era uma casa que sempre chegava alguém para almoçar, aí vinha uma vizinha. Era um trânsito de tias, primos, gentes. Eu, quando criança, era muito tímida, muito silenciosa. Eu era muito observadora disso tudo. Eu desenhava, eu escrevia.
Essa capacidade eu acho que eu tinha já muito pequena. Isso, sem dúvida nenhuma, é um ingrediente poderoso nessa hora de você misturar o drama e a comédia. É como se o drama que você está passando não te cegasse para você conseguir ver o humor da coisa. As minhas tias também tinham isso e a minha avó. Eu me lembro de elas contando casos da vizinhança. Não é que tinha prazer com o sentimento alheio, mas tinha uma capacidade de observar o sofrimento. Minha família nunca escondeu o sofrimento. Sempre chorou muito junta. Eu lembro que, quando pequena, tinha a confusão na minha cabeça se aquele choro que eu via na minha casa era bom ou não. Às vezes tinha discussão e tinha abraço. Eu ficava meio confusa querendo saber se estava tudo bem.
OP - O quadro "Retrato Falado", no Fantástico, trouxe histórias reais para dentro da casa dos telespectadores aos domingos no início dos anos 2000. O cotidiano ainda tem muito potencial inexplorado?
Denise - O "Retrato Falado" tinha um ingrediente muito bom que é não ter ainda os reality shows. Então você ter alguém completamente anônimo na televisão contando uma história que não era jornalística, era uma historinha cotidiana, banal muitas vezes. Pincelada pela arte, ela ganhava um lugar no poético. Aliás, a minha peça atual é feita em cima de histórias reais, o "Eu de você". Nós recebemos 300 histórias. Não é o "Retrato falado", pois ela pega pequenos pedaços de vida. E eu até pensei que as pessoas fossem me escrever histórias pitorescas, engraçadinhas, mas o foi contrário: nós tivemos uma grande mostra melancólica de um tempo em que as pessoas estão precisando contar histórias não postáveis. Uma mãe com Alzheimer, uma professora que não consegue lidar com o aluno, histórias de relacionamentos… Coisas muito comuns a todos nós. A gente trança com poesia, literatura, música e faz as próprias pessoas olharem sua história com beleza.
"Retrato Falado" chegou na televisão numa época em que a história comum não estava na mídia. Hoje você tem o Big Brother Brasil e tem a rede social que virou a fama de todo mundo com suas histórias banais, mas o que falta é o poético. De nada vale você colocar a sua história pura e simplesmente exibida publicamente e midiaticamente se você não vai dar a ela a condição de arte. No "Retrato Falado", foram 176 histórias, 176 mulheres que me ensinaram muito. Foi um tempo da vida, nove anos ao todo no Fantástico, que a gente aprendeu muito lidando com as histórias comuns.
OP - Seu novo espetáculo, "Eu de Você", levanta a bandeira da alteridade. Diante de um Brasil polarizado, não desanima falar de encontros e diálogos?
Denise - Não. É mais urgente ainda. É mais urgente esse encontro, essa abertura, essa curiosidade pelo outro. Eu como artista me proponho a isso muito fortemente. Aliás, a peça que estou fazendo agora, uma das questões que eu sempre colocava era: o que cabe dentro de nós todos? o que todo mundo tem? o que é comum a todos? A gente trata de coisas cotidianas. Dois irmãos que não se dão, um relacionamento abusivo, um filho ingrato… Todo mundo, direita e esquerda, todo mundo sabe reconhecer isso na sua vida quando tem. Isso não tem lado. Com as 300 histórias que compõem essa peça nas mãos, foi muito difícil escolher. De repente, tudo era bom. O que a gente queria era reunir pedaços de vida e que aquele pedaço de vida fosse emblemático, que fosse aquele verso do Roberto Carlos que todos cantam. Não é uma questão de ser comum e pouco profundo. É questão de buscar coisas que todo mundo passou. Nos debates com essa peça, uma vez uma moça chegou e falou assim: "Vocês fizeram uma colcha de retalhos que cobre a nós todos".
As pessoas estão cada vez se desentendendo mais. Cada um com seu código sem decodificar o outro. Apesar de não saber qual é a saída, eu sinto que passa pela disponibilidade, pela paciência, pela escuta e pela curiosidade. Isso sem ir mais longe e falar de um exercício real de afeto. E não falo "ah, a nossa saída é o amor" como essas frases de internet. A nossa saída é o amor, mas só com exercício de afeto. A capacidade de reinaugurar-se, se atentar para o nosso comportamento, já que viramos todos atores na internet, nessa vida instagramer. Acho que todo mundo deveria prestar atenção em si e na sua evolução pessoal. A gente está muito estragado. E a gente tem falado tanto a palavra "empatia" que eu estou com medo de as pessoas perderem empatia pela palavra "empatia", porque empatia não é se colocar no lugar do outro, ninguém tem essa capacidade. A empatia passa pela racionalidade, por você estudar o outro, compreender realmente o outro. Não é exercer a empatia pensando "se fosse eu no lugar dele". Não. Não é você no lugar dele. É no lugar dele só. É com aquele background, aquela criação, nascido naquele lugar. Empatia é essa abertura para essa pessoa.
OP - A Lei Rouanet é uma ferramenta que passou pela sua vida no financiamento dos espetáculos teatrais. Quais prejuízos do esvaziamento desse modelo de fomento já estão sendo sentidos pela classe artística?
Denise - Teve prejuízos enormes. Quando eu vi o marido da minha prima falando da Rouanet num almoço de família com certo escárnio, eu pensei no perigo ao que a gente foi reduzido. Na verdade, está tudo num site. As contas do Ministério da Cultura, a gente tinha que fazer na ponta do lápis. É um negócio muito criterioso. Desde 2006, eu viajo esse Brasil com as peças dando emprego para um monte de gente, diretamente na produção da peça e indiretamente em cada cidade que a gente passa. É uma coisa que movimenta muito dinheiro. Eu não vou chover no molhado sobre o valor que tem a indústria cultural. O número, para as pessoas que querem número, é 1 para 1,6. Cada R$ 1 recebido é dado para o Governo R$ 1,6. Essa história de que artista pega o dinheiro do governo é uma balela, uma falácia absurda.
A pessoa não compreende e fica repetindo. O grande mal da internet é o discurso emprestado do outro sem a vivência. Um monte de papagaio repetindo discursos alheios. Eles acham que concordam com algo, mas eles não sabem explicar direito. "Ah, perdeu a mamata da Rouanet", "Tá chorando pois não está mamando mais na teta Rouanet", esses comentários de Instagram… Eu tenho vontade de ligar para a pessoa e pedir para ela me explicar por que ela acha isso. A pessoa não entende que eu faço um projeto pois acho que é importante, penso como vai ser, quem será o diretor, quem estará comigo no elenco. Aí vou, mando esse projeto para o Ministério da Cultura, que avalia e me dá um certificado. Com esse certificado na mão, eu vou passando pires nas empresas. Ninguém me dá dinheiro. Eu que vou na empresa explicar o meu projeto e perguntar se a empresa não quer usar o dinheiro do imposto, o percentualzinho do dinheiro do imposto com a cultura. Agora, com essa turnê, a gente está esperando há dois anos, o ex-ministério, agora secretaria ou sei lá o que é mais, dar o tal do documento para tentar conseguir algum o dinheiro para viajar o Brasil com a peça. Eles não acabaram com a Rouanet, eles simplesmente não te dão o certificado, fica lá uma pilha de papéis.
OP - Politicamente falando, você consegue ter um olhar otimista para 2023? Esse dano que foi causado pode ser revertido?
Denise - Acredito que sim. A gente está arregaçando as nossas mangas, nos fortalecendo para uma reconstrução. Em 2022, eu espero tirar a tampa para começar o fim da barbárie. Vem eleição aí. Eu tenho muita esperança que o Bolsonaro não seja eleito e eu tenho muita esperança que o Lula seja eleito. Não porque eu sou Lula de carteirinha, mas eu acho que foi o melhor presidente que a gente teve. Ele vai vir para acertar. Ele vem pra reconstruir. Quando você vê esse homem falando, você vê o quanto que ele é construtor. Qual é a grande diferença, a primeira que você vê gritante? É um construtor. É um cara que quer construir e a gente teve um governo nesses quatro anos de destruição. A gente não teve nada construído, só destruído. Bolsonaro só veio para dizer o que ele não quer, mas ele não fez nada. Muito terrível. A gente tem que se preparar para a reconstrução e eu acho que está na mão de cada um de nós, mas tenho muita esperança nessa eleição. Se eu tiver que dar um recado aqui é: estude já, comece já a pensar em quem você vai votar. Persegue a pessoa, o Instagram está aí, os planos de governo estão sendo escritos. Escolha seu deputado e saiba em quem você está votando. Conheça e reconheça, saiba os problemas do seu país. Leia sobre o Brasil. Escute as notícias, os podcasts, está cheio de informação. Não perca tanto tempo com influenciadores que você não sabe direito de onde que eles vêm. Se você quer seguir um influenciador, pesquisa sobre ele, tenta entender quem é esse cara e quais são as ideias dele. Não se desperdice. Cada um de nós é uma força muito potente de mudança. Eu acredito muito nisso. A gente pode pôr a mão na massa da história. A história é feita por nós. O teatro é um lugar que ele te abre muito essa visão. Eu acredito no teatro como esse lugar de reflexão.
OP - Você voltou às novelas agora com "Um Lugar ao Sol" e a sua personagem, a Júlia, levanta muitos debates. Um deles é o fracasso dessa artista, que é alcóolatra. Como você, Denise, lida com o fracasso?
Denise - Eu achei muito engraçado quando eu lia agora algumas matérias que saíram "Denise Fraga é lembrada depois de tanto tempo" (risos). Como se eu tivesse ficado todo esse tempo chorando na minha casa porque eu não tinha um papel na televisão (risos). Na verdade, eu tive muitos convites durante todo esse tempo que eu não pude aceitar porque eu estava no meio de uma turnê de teatro. A televisão começou a ter pouca disponibilidade para atores que, de sexta a domingo, não podem gravar pois estão fazendo teatro. Isso determinou muito. Antes todos nós fazíamos teatro e TV. Eu me lembro do avião que nós pegávamos à noite em São Paulo. Vinha Marília Pêra, Marco Nanini, Diogo Vilela, Suely Franco… Um monte de gente que ia gravar na segunda-feira e estava em São Paulo fazendo teatro. É engraçado como mudou essa coisa do ator que faz teatro e TV simultaneamente, que era uma coisa muito comum. Como eu faço teatro e fiz muito teatro nesse tempo todo, muitas vezes, eu não pude aceitar convites que eram realmente muito sedutores. Mas eu tinha uma equipe de 12, 15 pessoas, com uma turnê e contrato, como eu falo para as pessoas: "Ah, eu vou parar porque vou fazer novela". Não tem cabimento. Nesse tempo todo eu estive fazendo teatro de 2006 até agora, de dois em dois anos, eu estava com peça nova. Foi uma peça atrás da outra. A gente tem um repertório. Para mim, é uma trajetória de completo sucesso. Para muita gente, eu estava esquecida. Está sendo muito legal voltar para a TV numa novela, numa coisa que passa todos os dias e com o privilégio de ser um texto da Lícia Manzo com direção do Maurício Farias. Isso foi fundamental. A novela é super bem cuidada, sofisticada. Júlia, para mim, é uma personagem muito importante. Quando eu comecei a ler o que a Lícia tinha escrito, eu achei incrível. Ela é uma personagem que poderia ficar monotemática, só na bebida. Quando eles associam essa coisa à música e essa carreira que não vai e essa pessoa que se desgarrou de casa e não conseguiu ser mãe. São tantas camadas. Eu estou muito feliz. A gente gravou no meio da loucura. Eram sete equipes e a gente era apresentado a pessoas que conhecia só pelos olhos durante os nove meses de gravação, mas sobrevivemos e muito bem. Eu fiquei muito impressionado com o resultado da novela, que foi feita completamente no esquema guerrilha de protocolo. Só tiramos a máscara na hora do "ação". Cada ator tinha camarim individual, se maquiava, se arrumava. A gente ensaiava de longe, de máscara.
OP - Um tema que também está presente em "Um Lugar ao Sol" é a busca pela juventude versus a negação do envelhecimento. A sua relação com o passar dos anos é harmoniosa?
Denise - Não é bom envelhecer, é chato pra caramba. Não é uma coisa que esteja me deixando louca não. Eu estou envelhecendo bem. Cuido da minha alimentação, faço exercício. A peça que eu faço agora é uma peça quase atlética. Eu me cuido, sou atriz e o teatro me exige muito corporalmente. Quero sempre um corpo disposto, faço pilates há muito anos e agora faço musculação. Acho que o humor também salva muito. Tento envelhecer com estratégias de alegria. Gosto de cantar samba, fazemos uma rodinha amadora de samba uma vez por mês. Adoro ter os amigos em casa. Sempre que eu vejo que estou ficando muito encruada, eu já arrumo motivo pra festa. Eu sempre acho que o outro te tira do lugar, te cria um ser social. A simpatia gera bem-estar. Conviver com quem não conhece direito é fundamental para despertar nosso ser social ou você começa a perder a cerimônia com você mesmo dentro de casa. A intimidade é corrosiva. Eu acho que você precisa ter estratégias de alegria.
Na novela, a personagem da Andrea Beltrão trata isso lindamente. É uma mulher que trabalhava como modelo, um padrão de beleza, e envelhecer é difícil. Acho que como eu fiz uma trajetória muito da comediante, talvez seja mais fácil para mim encarar minhas rugas, a minha flacidez. Mas as vezes eu fico pensando se devo fazer ou não alguma cirurgia plástica. Acho que até 40 anos está tudo bem, você vai descendo no rio, na correnteza, vai dando umas braçadas, nadando. Depois dos 40 anos, você nada contra essa correnteza, tudo mais difícil. Ainda mais nesses tempos tão velozes, a comunicação, a rede social, o mundo histérico do jeito que está. Se você não remar muito bem contra essa corrente, você acaba numa letargia ou doente. Eu não quero ficar nem doente e nem letárgica. Por isso, busco a alegria.
OP - Com seus espetáculos, você já correu o País inteiro. O que você descobriu sobre o Brasil e quer ressaltar para a gente não esquecer que o Brasil vale a pena?
Denise - Há anos, eu recebo o público na porta do teatro e isso foi fundamental para conhecer o País. De Fortaleza a Pelotas, conheci cidades que jamais conheceria sozinha. Cidades que eu não sabia que existiam. O que eu vejo é que a gente tem uma diversidade enorme e isso é uma riqueza imensa. Somos tantos em um. Somos um povo que tem em si uma disposição para a alegria, para o jogo com o outro. Eu sou uma otimista crônica, mas estou bem abatida, minha esperança foi danificada nesses tempos que a gente viveu na pandemia. Eu fiquei decepcionada. Quando começou a pandemia e surgiu toda a rede de ajuda, as empresas colocando dinheiro para aparecer no Jornal Nacional. Eu achei que a gente estava recebendo um chamado de uma coisa que estava acontecendo no mundo: a gente entendendo que tem que cuidar uns dos outros. Eu achei que a gente estava vivendo tudo isso, que a gente ia se reconhecer como cuidador uns dos outros. Toda hora eu entrava num novo método de ajuda. Mas agora eu sinto que é como se a gente tivesse recebido uma ordem parada que a gente não soube responder. Nós voltamos ao mapa da fome. Não entra na minha cabeça um país como esse com fome num cenário de tanto desmatamento para plantio de soja e gado. Os números de desmatamento são absurdo nesses dois anos. Eles realmente passaram a boiada.
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