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Muniz Sodré: "O intolerante não pode ser tolerado"
Reportagem Seriada

Muniz Sodré: "O intolerante não pode ser tolerado"

Pesquisador, jornalista e sociólogo, Muniz Sodré reflete sobre a cadeia do ódio no Brasil e como esse afeto atravessa a comunicação e a política atuais
Episódio 50

Muniz Sodré: "O intolerante não pode ser tolerado"

Pesquisador, jornalista e sociólogo, Muniz Sodré reflete sobre a cadeia do ódio no Brasil e como esse afeto atravessa a comunicação e a política atuais
Episódio 50
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Aos 80 anos, o jornalista e sociólogo Muniz Sodré avalia que o Brasil passa por um processo de incivilidade que se espraia por âmbitos diversos, mas cujo combustível é o fluxo de ódio, substrato das redes sociais e dos afetos políticos que atravessam as disputas eleitorais.

Em conversa com O POVO por videoconferência diretamente do Rio de Janeiro, onde vive e trabalha como professor universitário na UFRJ, o pesquisador traça um diagnóstico sobre como plataformas como Facebook, Instagram e Twitter têm atuado no sequestro da fala.

Na entrevista, Sodré também reflete sobre liberdade de expressão a partir do caso do youtuber “Monark”, suspenso da rede após advogar o direito de criação de um partido nazista no Brasil.

Para o professor, que acaba de lançar o livro “A sociedade incivil” (editora Vozes), a ideia é emblemática da “forma social de ignorância” que se estabeleceu no país com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, mas que não se limita a ele. Sodré argumenta que a liberdade de expressão é um direito civil e tem “um mecanismo lógico a que ela obedece”.

“Então expressar-se não é liberdade de dizer qualquer coisa. É liberdade de dizer alguma coisa dentro das regras canônicas pactuadas dentro da sociedade civil. Significa que há limites dentro da liberdade de expressão. Você não pode tolerar o intolerante. Se tolera o intolerante, está, no limite, destruindo o jogo da tolerância”, expõe o entrevistado.

Na entrevista, o jornalista baiano radicado no Rio trata ainda do papel da comunicação num mundo mediado pelas redes e na resistência das formas de organização comunitária, como os coletivos e a religiosidade negra.

Assista à entrevista de Muniz Sodré

O POVO – Quero começar tratando de um tema que repercutiu, que foi o caso envolvendo o “Monark”, suspenso do Youtube depois de fazer a defesa de criação de um partido nazista. Como avalia o debate sobre liberdade de expressão nos ambientes virtuais?

Muniz Sodré – Uma coisa é liberdade de fala, outra coisa é liberdade de expressão. Todo mundo está naturalmente aparelhado para falar, está capacitado e livre para fazer funcionar o seu aparelho fonador. Mas a liberdade de expressão não é isso, é um direito civil, que foi conquistado inclusive modernamente a partir da revolução francesa. Está lá no segundo artigo dos Direitos do Homem e do Cidadão, sobre manifestar-se livremente. Sendo uma conquista civil, ela tem um mecanismo lógico a que ela obedece, então expressar-se não é liberdade de dizer qualquer coisa. É liberdade de dizer alguma coisa dentro das regras canônicas pactuadas dentro da sociedade civil. Significa que há limites dentro da liberdade de expressão. Você não pode tolerar o intolerante. Se tolera o intolerante, está, no limite, destruindo o jogo da tolerância, porque vai ter um ponto cego e o sistema vai desabar. O intolerante não pode ser tolerado, assim como a dúvida não pode ser posta e encenada na questão metódica de Descartes. Toda e qualquer expressão encontra o seu limite, mas que limite seria esse?

No caso do nazismo, pactuou-se – praticamente o mundo todo no Ocidente depois da guerra – que o nazismo é inaceitável. O nazismo viola de saída uma regra lógica de respeito ao interesse e à condição humana. É uma monstruosidade desde o holocausto e os mortos da grande guerra. Embora essas mortes tenham sido depois repetidas por americanos e russos aqui e ali, não foram erigidas em princípio, como o nazismo erigiu. O nazismo é inaceitável dentro da regra histórica de tolerância, porque esse princípio é de edificação e exaltação do gênero humano, da diversidade humana, enquanto o nazismo é o limite disso, a contradição disso. Assim como você não pode fazer um partido de estupradores, de linchadores, de pedófilos, você não pode fazer um de nazistas. Se fosse possível, faríamos um partido de milicianos, aí poríamos a família Bolsonaro. Um partido de exterminadores, que teria vários candidatos aqui no Rio. O Queiroz, por exemplo.

 

"Se tolera o intolerante, está, no limite, destruindo o jogo da tolerância, porque vai ter um ponto cego e o sistema vai desabar"

 

O POVO – Há uma confusão sobre liberdade de expressão nas redes. Essa confusão é deliberada?

Muniz Sodré – É ignorância. Nós estamos mergulhados numa forma social de ignorância. Há formas bárbaras de ignorância. O Aiatolá Khomeini chegou ao Irã, que era um país razoavelmente modernizado, e em poucos dias todo o castelo da modernidade do Irã caiu. Por quê? Porque havia uma forma social de ignorância, que se chamava paradoxalmente o “povo do livro”, que eram os muçulmanos fundamentalistas. Não tinha nada mais ignorante e estúpido do que aquilo, ao mesmo tempo em que o Irã era um país bastante avançado e é até hoje, desde a medicina até a tecnologia de fissão nuclear. Mas a ignorância, o desconhecimento da argumentação do contraditório, o desconhecimento da lógica, da dialética, é forte. Veja os votos do Trump nos Estados Unidos. É um país onde a força da ignorância é maior ao lado de universidades que são as melhores do mundo, com grandes intelectuais e grandes publicações.

Nós estamos com uma forma dessa aqui no Brasil. Uma forma que viceja, que tem vigor. Resta saber de onde ela veio, como apareceu, como emergiu. Mas é claro que estava aí, sempre. Eu suspeito que um dos canais sejam os neopentecostalistas, mas também uma classe política que emergiu depois dos anos de 1980, que não é uma classe patrimonialista tradicional, mas que veio do comércio informal, da periferia das grandes cidades, de matadores. Essa forma social é uma forma social de ignorância, nesse sentido. A ignorância tem efeitos políticos, e é isso que está aí. A eleição de Bolsonaro foi por acaso, mas entrou nesse buraco, nesse movimento.

Para o jornalista e sociólogo Muniz Sodré, o Brasil atravessa um processo de incivilidade cujo combustível é o fluxo de ódio, substrato das redes sociais e dos afetos políticos que atravessam as disputas eleitorais(Foto: Lucas Seixas/FolhaPress)
Foto: Lucas Seixas/FolhaPress Para o jornalista e sociólogo Muniz Sodré, o Brasil atravessa um processo de incivilidade cujo combustível é o fluxo de ódio, substrato das redes sociais e dos afetos políticos que atravessam as disputas eleitorais

O POVO – O senhor lançou há pouco “A sociedade incivil” (editora Vozes). Como a categoria da incivilidade entra nesse debate e como ela ajuda a pensar o Brasil de hoje?

Muniz Sodré – A sociedade incivil é a sociedade civil posta de cabeça pra baixo, de ponta-cabeça. Essa categoria ajudou todo mundo a pensar no século XX. Começa com Hegel, vai para Lenin, e é Gramsci efetivamente quem dá a ela um grande alcance. A categoria é efetiva. É possível medir o grau de ocidentalização de um país a partir da composição da sua sociedade civil, que no Brasil era razoavelmente forte. Saiu-se da ditadura com uma sociedade civil razoavelmente forte, tanto que houve partidos políticos. Ela é desigual no mundo inteiro, mas é ela que efetivamente assegura uma estabilidade institucional, uma estabilidade democrática. Ora, mas o que acontece é que, no ocidente inteiro, principalmente na América Latina, desde os anos do final da guerra essa sociedade civil vem se esvaziando, com uma tendência de retração da representatividade parlamentar.

Ou seja, a democracia parlamentar está em declínio, e esse declínio é visível porque os partidos não representam mais nada. Essa democracia se sustenta constitucionalmente por leis e por certa força da sociedade civil. Esse esvaziamento da representação deu no que deu, um parlamento voltado para si mesmo, em função de verbas partidárias. É um escândalo. Esse orçamento secreto é escandaloso, maior que qualquer mensalão, mas operando de acordo com a lei. Não é ilegal, é simplesmente imoral, é apolítico. A sociedade incivil se instala no âmago da sociedade civil de modos diferentes de acordo com cada país. Aqui eu diria que ela se aproveitou do momento em que o Brasil sem dúvida nenhuma estava se fortalecendo em certas áreas industriais, com formas corruptas, mas estava se fortalecendo.

 

"Esse esvaziamento da representação deu no que deu, um parlamento voltado para si mesmo, em função de verbas partidárias. É um escândalo"

 

O POVO – Qual o papel da comunicação na articulação dessa incivilidade no país? No livro o senhor se refere a ela como um “phármakon”.

Muniz Sodré – “Phármakon” é um nome grego para remédio e veneno. Todo remédio tem um lado de veneno. O impulso da comunicação a partir dos anos 1940 era um impulso farmacológico. A comunicação viria para promover a comunicação mundial. O lado de veneno é a neutralização, pelo dispositivo da comunicação, da livre troca social, a neutralização do potencial comunitário da sociedade, que é pouco estudado. Nesses instantes de crise é que se vê o quanto potencial comunitário é grande e forte. Durante toda a pandemia a alimentação nas favelas aqui foi feita por coletivos. Não se fala disso. Se não fosse o coletivo, tinha muita gente morrendo de fome.

Petrópolis, um desastre terrível. Quem está efetivamente socorrendo a população da cidade são os coletivos, não é o governo. Para uma verba chegar, o governo anuncia e vai chegar tempos depois, fica nas mãos do governador, que tinha verba estocada lá e não aplicou em contenção de encostas. Esses coletivos, que representam o potencial da comunidade, não têm nada a ver com a comunicação hegemônica, de cima para baixo, com seu discurso de bom-mocismo, de cooperativismo, mas é só fala, só discurso. O que a comunicação faz como veneno? É neutralizar o potencial político e cívico das comunidades. Isso numa primeira etapa, que foi a etapa das televisões. Em segundo, a etapa das redes eletrônicas, que têm o seu lado farmacológico bom, nós estamos aqui conversando por redes sem que você que tenha que vir ao Rio nem eu ter que ir ao Ceará.

Mas, ao mesmo tempo, sabemos que as redes criaram uma realidade e nessa realidade a linguagem fundamental delas não é essa que estamos tendo agora, é a linguagem dos algoritmos. É a criptolinguagem, que está criando uma outra realidade, e nós não sabemos ainda quais são as consequências dessa outra porque leva pelo menos 40 ou 50 anos para se avaliar direito uma mídia, como agora estamos podendo avaliar a televisão. A pedagogia e a forma cultural que a televisão nos ensinou durante 50 anos. A TV é pornográfica. Não é pornográfica de costume, de sexo, é “porno” no sentido que, em grego, é o verbo vender. Eu vendo, vale; pode ser vendido, não tem qualidade humana. E agora, com as redes, isso vem numa velocidade gigantesca, de modo que os critérios de verdade foram abalados pelo “eu vendo”. Não importa o que é verdade, importa o que me satisfaz. E é por isso que Bolsonaro, que dizem que está desmilinguindo nas pesquisas, mas desmilinguindo com 20% dos votantes ainda estáveis, fiéis, pode aumentar na medida em que dinheiro vá ser despejado daqui para outubro.

As redes criaram uma realidade que nós não controlamos mais porque não sabemos mais o que está acontecendo no entorno. Não sabemos mais dizer a verdade, dizer alguma verdade. Ninguém vive o tempo inteiro em função da verdade no seu cotidiano. Nós mentimos, nós inventamos, edulcoramos o mundo da realidade, mas nós não fazemos isso como princípio deliberado e sistemático. Isso pode se dar oportunamente, mas aí a comunidade nos desmente, e isso não dura. Mas agora, não. Estamos sendo submetidos a um princípio sistemático de desinformação, de inverdade, que quer ter o nome de liberdade de expressão. Não pode, não pode. Isso está prosperando porque o grande enunciador não tem nenhuma responsabilidade social, que é a rede eletrônica. A televisão ainda tem.

 

"Estamos sendo submetidos a um princípio sistemático de desinformação, de inverdade, que quer ter o nome de liberdade de expressão"

 

O POVO – O senhor fala que a TV é institucionalizada e as redes não teriam responsabilidade. Que tipo de resposta a sociedade civil poderia dar para isso?

Muniz Sodré – Eu acho que as redes têm que ser reguladas. A televisão também mentia, distorcida, mas ainda tinha retificação possível, contraditório possível. As redes têm um pé transnacional. Veja o Telegram, por exemplo, que se recusou a uma convocação do STF. Já se sabe que tem representante aqui, mas por que faz isso? Porque, para se deslocar, é muito fácil. Essas redes não querem ter um assento nacional, portanto elas contrariam o princípio do estado-nação. São incivis, para mim. A civilidade é exercer uma regulação e controle.

Eu acho que a regulamentação da internet tem que ser aplicada. Essas redes têm que prestar conta à opinião pública. Elas não escapam. Elas não querem ser mídia, dizem que são plataforma. Isso é mentira. Aquilo é mídia. Eles controlam seus próprios conteúdos, orientam algoritmos na direção de captar a atenção da gente, porque é essa a mercadoria que se tornou hoje o público. Já era assim com a televisão, já era com o jornal, mas a mercadoria da rede é a atenção, que é a mercadoria mais valiosa que nós temos a oferecer. Não é a opinião, não é nada. A atenção de quem entra no Google, na rede, e está sendo ali antropologicamente mapeado como consumidor, e isso vale dinheiro.

Para o jornalista e sociólogo Muniz Sodré, o Brasil atravessa um processo de incivilidade cujo combustível é o fluxo de ódio, substrato das redes sociais e dos afetos políticos que atravessam as disputas eleitorais(Foto: Lucas Seixas/FolhaPress)
Foto: Lucas Seixas/FolhaPress Para o jornalista e sociólogo Muniz Sodré, o Brasil atravessa um processo de incivilidade cujo combustível é o fluxo de ódio, substrato das redes sociais e dos afetos políticos que atravessam as disputas eleitorais

O POVO – Por que as redes promovem o “sequestro da fala”, como o senhor argumenta?

Muniz Sodré – Essa expressão foi uma espécie de contraponto, de adiantamento de uma ideia de um livro meu de muito tempo atrás, que se chama “O monopólio da fala” (editora Vozes), em que minha ideia era a da televisão monopolizando o discurso e impedindo o público de responder a ela, portanto negando a resposta. Resposta num sentido forte, num sentido simbólico, que é poder intervir sobre o discurso do outro. Não é resposta de instituto de sondagem, da pesquisa, em que se colhe o que se quer, o sim ou o não. Claro que as redes permitem uma retroatividade técnica que é a interatividade. Por outro lado, o controle se deslocou para outro lugar, se deslocou para a rede, e na rede você não intervém.

Ou seja, a rede eletrônica é o centro mundial que efetivamente controla a fala, controla algoritmicamente. A linguagem dos algoritmos é secreta, são uma criptolinguagem. O que está sequestrado aí é a fala livre, fala idiomática, a sua fala está sendo progressivamente sequestrada por robôs, que estão tomando o lugar e, junto com a tomada do lugar, a tomada da fala, tomada do discurso. O discurso humano livre está sendo expropriado pela máquina. É isso que eu chamo de sequestro. É por isso que, para o sistema, não importa muito qualquer merda que se diga. O cara pode dizer que quer um partido nazista, nada disso importa. A verdadeira fala é controlada pela criptolinguagem. Mas, nacionalmente, considerando o regime político, aquela besteira importa.

 

"A civilidade é exercer uma regulação e controle. Eu acho que a regulamentação da internet tem que ser aplicada. Essas redes têm que prestar conta à opinião pública"

 

O POVO – Qual é o papel do ódio nessa sociedade incivil? A gente viu há algumas semanas o espancamento de um jovem negro no Rio, um jovem estrangeiro.

Muniz Sodré – Essa sociedade incivil funciona à base da velocidade, dos fluxos velozes, portanto não tem pausa para argumentação ou reflexão. O ódio é uma afecção básica que facilita as passagens, o trânsito. O amor demora para se consolidar e para se expressar. E o amor não gera conflito para o outro. Pode gerar para quem sente amor: será que eu sinto mesmo o amor? Pode gerar um conflito interno, a dois. Mas o ódio é gerador de conflitos, e essa máquina incivil precisa da velocidade dos fluxos, portanto precisa do ódio. O ódio é combustão, gasolina que inflama as paixões e movimentações. Não é a raiva, porque a raiva não é fundamental como o ódio.

Há dois modos de ser fundamentais: amor e ódio, os dois que o cristianismo considera, pelo menos. Há outros que não considerei porque não é o lugar, eu sou de candomblé e há outros modos no candomblé. Mas esses modos fundamentais estão aí, e é em cima deles que se constituem a raiva, o nojo, o asco, que são emoções temporárias. Você não pode alimentar a raiva, mas pode alimentar o ódio. Ou alimentar o amor. Pode-se ensinar a amar ou a odiar, e as redes estão ensinando a odiar não por um diabo, uma maldade por detrás, mas porque elas funcionam na base da velocidade que o ódio propicia. É muito fácil a comunicação odienta. Não precisa perguntar por que, simplesmente odeia. Basta seguir o fluxo. O ódio é uma facilitação de afecções.

 

"Pode-se ensinar a amar ou a odiar, e as redes estão ensinando a odiar não por um diabo, uma maldade por detrás, mas porque elas funcionam na base da velocidade que o ódio propicia. É muito fácil a comunicação odienta"

 

O POVO – O que no Brasil de hoje resiste a essa incivilidade?

Muniz Sodré – Eu diria que as formações comunitárias resistentes. A comunidade. E comunidades pobres, porque essa incivilidade já chegou alto. Não há nada mais odiento do que um trabalhador da bolsa, do que um homem do mercado de ações. E ódio de quê? Ódio de pobre, de negro. Se for em São Paulo e Rio, ódio de nordestino, um ódio enorme. Eu acho que o trabalho é esse, de reconstruir a civilidade. É preciso, depois de outubro, saindo Bolsonaro, sair reconstruindo o Brasil, o país está pedindo uma reconstrução. Essa reconstrução é de civilidade. Agora, quem pode fazer isso? Eu, por exemplo, não tenho confiança no PT para fazer isso. Eu vou votar, mas não tenho confiança.

O POVO – O senhor é homem de terreiro, de candomblé. Acredita que a religiosidade, principalmente a religiosidade negra, é uma forma de resistência à incivilidade?

Muniz Sodré – Acho, sim, porque os negros sempre estiveram à margem do estado e à margem das trocas políticas dentro da sociedade civil, isso por exclusão. Mas, ao mesmo tempo, desenvolveram modos próprios de organização, e a religião está na frente, mas não é apenas isso. Me agrada muito o modo de vida que vislumbro ali nos terreiros. É outra coisa, não é nenhum paraíso, mas é outra coisa e essa outra coisa sempre me intrigou. Eu sou da hierarquia do candomblé na Bahia, sou Obá de Xangô de uma grande casa. Mas eu boto isso na conta do comunitário. Onde existe movimentação na direção do comum, aí eu acho que há uma resistência.

O POVO – O senhor contraiu Covid em 2020, esteve internado por mais de 30 dias...

Muniz Sodré – Quarenta e dois dias.

O POVO – Tem alguma intenção de escrever sobre essa experiência?

Muniz Sodré – Não, não tenho. Não foi uma experiência agradável, mas não escrevo só sobre o que é agradável. Mas também fiquei muito tempo intubado, sob remédios. Se eu quisesse fazer uma história pessoal das alucinações, eu faria. Porque alucinação foi constante. Você alucina, e não é com sonho. Eu sou totalmente careta. Até os 80 anos, eu sou aquele cara que nunca fumou maconha. Mas nunca fumou? Nunca fumei. Porque eu detesto fumaça na boca, nunca fumei tabaco, maconha. Nunca fumei droga nenhuma porque sou absolutamente lúcido e tenho minhas coisas, não preciso disso pra ver. Mas ali, aqueles remédios, é tanta alucinação que eu devo ter passado a vida inteira tomando drogas, ácido. Até programa de televisão coerente eu escrevi na minha cabeça. Eu escrevi um programa de duas horas, fazia sentido todo. A Rede Globo me encomendou um programa contra Bolsonaro e eu fiz, eu mesmo achava bacana, que cara engraçado que fez esse programa, e eu não sabia que era eu (risos). Foi interessante, mas deve ficar ali, no hospital.

 

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