Prestes a completar 296 anos e a quatro de se tornar uma cidade tricentenária, Fortaleza, que comemora aniversário nesta quarta-feira (13/4), tem desafios imensos pela frente. Um deles é a desigualdade, que se acentuou durante a pandemia de Covid-19.
Para a professora Geísa Mattos, do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), “uma cidade só é uma boa cidade quando é uma cidade para a maioria, quando a maioria dos moradores é incluída”.
A pesquisadora, no entanto, avalia que as marcas de exclusão na capital cearense demonstram que a metrópole está distante ainda de solucionar parte do problema. “Quando a gente compara o IDH dos bairros e nota essa imensa disparidade”, aponta a professora, “a gente encontra uma realidade que está longe de ser inclusiva”.
Em conversa com O POVO, a estudiosa do tema da branquitude traçou um panorama da formação recente de Fortaleza, da composição de suas elites, de seus valores e simbolismos e do papel do racismo nas relações cotidianas.
De acordo com ela, “ser branco é dominar uma linguagem de poder na cidade, uma linguagem sobretudo corporal”, que o morador ou a moradora, principalmente homens brancos de classe média ou rica, “incorpora e age como sendo alguém superior”.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O POVO – Começo pela retomada de uma sociabilidade na cidade. Como imagina que a gente encontra Fortaleza hoje, já que os nossos espaços públicos e os usos que a gente faz deles se alteraram durante a pandemia da Covid?
Geísa Mattos – A gente precisa pensar que isso varia muito conforme se esteja falando de certos grupos. Se estamos falando de grupos privilegiados, de classes médias, de pessoas brancas, vamos ter um certo tipo de acesso aos espaços. Se estamos falando de moradores de periferia, que hoje estão vivendo situação de territorialização de seus espaços pelas facções, vamos ter outro tipo de apreensão do espaço. Então é muito importante que a gente saia desse ponto de vista de universalizar a classe média branca quando fala desses nós e dos nossos acessos. Isso é muito comum, infelizmente, em veículos de comunicação, de modo geral, que são feitos e lidos pela classe média branca. A gente às vezes fala de nós mesmos. Para mim, voltar a usar os espaços da cidade está sendo maravilhoso, do meu ponto de vista de uma mulher de classe média branca. A gente chega ali na Praia de Iracema e tem o colorido da cidade, novos cafés, os novos equipamentos culturais, como o Museu da Imagem e do Som, a Estação da Luz, que estão sendo criados. Esses espaços estão sendo trabalhados para serem inclusivos, mas a realidade é que a maioria dos espaços considerados bonitos, agradáveis e coloridos da cidade é para serem usufruídos pela minoria. É importante ter a dimensão do que representa essa minoria. Hoje a classe média branca da cidade que usufrui de espaços como esses, cafés, as ruas coloridas, os espaços da praia, a Beira Mar reformada, enfim, toda essa beleza que é a cidade de Fortaleza é usufruída por 7% de seus moradores. São os moradores dos 7% dos bairros que têm o IDH mais alto: Meireles, Aldeota, Cocó, Varjota, Dionísio Torres, Guararapes, Bairro de Fátima. Quando a gente tem essa dimensão, a gente tem a dimensão da exclusão da cidade. Não posso ser tão etnocêntrica em pensar a cidade só a partir do meu ponto de vista. Eu também tenho que pensar que essa mesma cidade bela e cosmopolita, que tem espaços hoje que se parecem com espaços de Nova York ou de outras cidades interessantes do mundo, é também uma cidade muito excludente. E a gente precisa pensar que mesmo, por exemplo, tendo metrô, ele não tem o uso que poderia estar tendo e não leva as pessoas para os lugares como a gente sonhou que ele poderia ser.
O POVO – A pandemia e os eventos dos últimos dois anos explicitaram ainda mais essas desigualdades na cidade?
Geísa Mattos – Infelizmente, sim. Em termos gerais, a gente vê que a quantidade de pessoas morando nas ruas cresceu, é visível isso. Mesmo nos bairros ricos, a quantidade de gente morando na rua aumentou, a quantidade de pessoas desempregadas. A miséria aumentou consideravelmente, e a cidade, que já era excludente, se tornou mais ainda. O que é curioso em Fortaleza, que acontece em muitas cidades como processo generalizado do neoliberalismo, é que ela vai se sofisticando, vai tendo espaços como, por exemplo, o BS Design, no coração da Aldeota, que é o bairro da elite por excelência. Temos ali um espaço extremamente compatível, inclusive em termos de controle de qualidade e de expectativas de conforto, de luxo e de exclusividade - que é um conceito chave para a elite -, com os espaços das cidades mais ricas do mundo. Com a pandemia de Covid-19, a partir de março de 2020, o abismo social na metrópole cresceu ainda mais. Enquanto o Brasil é o sétimo entre os 10 países mais desiguais do mundo, de acordo com dados do PNUD de 2020, Fortaleza apresenta índice de Gini de 0,675, estando em situação parecida com a da África do Sul, país que está em primeiro lugar no ranking da desigualdade social no mundo, com 0,63, segundo o PNUD e o Observatório das Metrópoles (dados de 2020).
"No caso de Fortaleza, quando a gente compara o IDH dos bairros e nota essa imensa disparidade, a gente encontra uma realidade que está longe de ser inclusiva."
Fortaleza se sofisticou, principalmente esse núcleo urbano no qual nós estamos falando, que pode incluir certas partes do centro da cidade, espaços que vão sendo gentrificados e embelezados, como a Praça da Estação, Passeio Público etc. Mas, infelizmente, quando a gente pensa em possibilidades de consumir nesses lugares, de efetivamente entrar e consumir no lugar, de usufruir, é impossível. Às vezes mesmo para a classe média vai ficando cada vez mais difícil o consumo nesses lugares. Quanto mais sofisticação, maior o preço, e vai ficando difícil o acesso. Embora sejam lindos e interessantíssimos, são lugares exclusivos. São feitos para serem exclusivos. E quanto mais exclusivos, mais excludentes. É isso que a gente precisa entender. Eu penso que uma cidade só é uma boa cidade quando é uma cidade para a maioria, quando a maioria dos moradores é incluída. No caso de Fortaleza, quando a gente compara o IDH dos bairros e nota essa imensa disparidade, a gente encontra uma realidade que está longe de ser inclusiva. Segundo o IBGE, com dados de 2017, 10% da população do Ceará concentra 44% da riqueza local. Enquanto 6,8% dos bairros de Fortaleza têm alto IDH, 28% têm IDH baixo e 23% possuem muito baixo – são dados do próprio Anuário do Ceará, 2019/2020.
O POVO – Há cidades que não convivem dentro da mesma cidade, mas há espaços onde esses moradores se encontram em Fortaleza?
Geísa Mattos – Eu diria que em lugares como o Benfica, que é onde fica a Universidade Federal do Ceará (UFC) e tem muitos estudantes cotistas. Com isso a gente passa a ter uma frequentação nesses espaços de muito mais pessoas negras, pessoas que moram nas periferias. Mas, mesmo assim, elas não vão ter condições de consumir o espaço da mesma forma como ele é usufruído pelos moradores de classe média, por professores e outros estudantes brancos que estão ali e vão para aqueles bares. Ainda assim, diria que o Benfica é um bairro onde essas possibilidades de encontro existem, assim como em alguns espaços do Passaré.
O POVO – A praia é um espaço desse tipo?
Geísa Mattos – A reforma da Beira Mar trouxe mais exclusão para essas populações. Aquelas barracas de praia, que eram feias do ponto de vista da classe média que usufrui daqueles espaços, que não tinham os padrões de qualidade da branquitude e da elite, eram espaços frequentados sobretudo pelos moradores de periferia, que se sentiam à vontade naqueles lugares, cujos preços eram acessíveis ou menos caros para eles. Quando essas barracas saem de lá, mesmo que essa visão da retirada seja inegavelmente agradável, é também um espaço de exclusão. Toda a faixa de areia onde se chegava antes no domingo e tinha pessoas no seu piquenique, com sua família, se divertindo nas barracas, hoje é um lugar destinado à classe média e aos turistas.
"Então morar nesta cidade que tem um belíssimo mar, que tem um rio Cocó e a beleza do nosso parque, não significa dizer que esse espaço vai ser usufruído por todos. Pelo contrário, a própria natureza é também privatizada, nesse sentido, também passa a ser objeto de usufruto para poucos."
A reforma da Beira Mar traz um deleite estético, um prazer de consumir aquele espaço, no sentido de ter muito mais práticas de esporte ao ar livre, por exemplo, em contato com a natureza, coisas que a cidade oferece. Mas mesmo essa ideia de contato com a natureza, que parece gratuita, que qualquer um pode usufruir, qualquer um pode fazer natação, basta chegar e nadar, qualquer um pode ir pra praia correr, praticar canoa, mas quem pode praticar esses esportes? Não falo nem só pelo preço, mas pelo tempo, pela mobilidade que temos na cidade. Para quem tem carro, é fácil ir até a Beira Mar. Mesmo que acorde muito cedo, às 5 horas da manhã, vai até lá, deixa o seu carro, depois pega o carro e chega em casa em 15 minutos, se mora próximo, se está nesses bairros de IDH alto. Consegue ter essa mobilidade. Agora imagine para alguém que mora na periferia. Com isso a gente constata que a natureza não é gratuita, ela não está dada para a pessoa. Então morar nesta cidade que tem um belíssimo mar, que tem um rio Cocó e a beleza do nosso parque, não significa dizer que esse espaço vai ser usufruído por todos. Pelo contrário, a própria natureza é também privatizada, nesse sentido, também passa a ser objeto de usufruto para poucos.
O POVO – A cidade não está disponível para todo mundo.
Geísa Mattos – A cidade não está disponível para todos. É como se nós tivéssemos uma ilusão, e ela é vendida: olha que cidade bonita, eu me orgulho da minha cidade. Beleza, eu me orgulho de ver essa cidade bonita, sim, mas sempre tenho que lembrar: quem pode usufruir dela? Quem de fato pode dizer que usufrui dela? Mesmo essas populações que moram em áreas de praia não vão ter acesso a esse espaço da mesma forma que essas pessoas que moram em áreas de IDH mais alto, inclusive pelos domínios das facções. Há lugares por onde elas não vão poder circular. Essas dimensões da cidade excludente precisam ser levadas em consideração também no aniversário da cidade. Também é querer uma cidade melhor, é esperar um futuro melhor para essa cidade, que não seja só de celebração, de louvação, que esconde seu lado triste.
O POVO – A ideia de exclusividade é um traço cultural da capital cearense?
Geísa Mattos – Essa ideia de exclusividade é um pouco geral, se a gente pensar em várias outras cidades no mundo ocidental vamos encontrar essa mesma ideia. Não é exclusiva de Fortaleza. No entanto, a peculiaridade local é que, quando examinamos o tipo de elite que temos, vamos entender que a crueldade dessas formas de criar lugares exclusivos se torna ainda mais acentuada. Estudando a formação do bairro Aldeota e da própria cidade, no romance do Jáder de Carvalho, que se chama também “Aldeota”, ele fala dos contrabandistas que existiram aqui, que os novos ricos que vieram habitar esta área da cidade, depois do riacho Pajeú, eram os contrabandistas de carnaúba e de várias outras coisas. Tem um historiador negro, o Hilário Ferreira Sobrinho, que fala que a elite de Fortaleza, que bancou o progresso da cidade no início do século passado, era a elite que vinha do comércio de escravos. Dos primeiros que fundaram a Associação Comercial do Ceará, três eram comerciantes de escravos. É importante entender que essa elite se estabelece muito com base na sonegação de impostos, com base no tráfico cruel. Os relatos que Hilário e outros historiadores trazem mostram como essas populações escravizadas foram torturadas, como essas torturas persistem mesmo depois da libertação dos escravos, como o emprego doméstico dentro dos apartamentos dessa elite e nas diversas situações em que pessoas de cor local vão ser exploradas e assediadas de várias maneiras, tudo isso é uma forma de persistência dessa escravização, dessa marca da escravização de pessoas negras tanto no país quanto no Ceará. Mas o que choca no Ceará é que temos esse mito de que não tivemos negros na nossa formação, que nossa matriz não tem a africana, que só tivemos índios, e que fomos os primeiros a libertar os escravos. Que povo legal, que elite progressista, mas, se a gente olhar de fato, essa elite tanto vem do comércio de escravos quanto da sonegação de impostos.
"O racismo marca a cidade de Fortaleza. Quando se privilegia esse espaço urbano, está se privilegiando as pessoas desse espaço urbano. A gente não pode falar de espaço urbano como um espaço vazio."
Há sobre o papel das imobiliárias uma dissertação de mestrado em Sociologia de Giovanni Moreira sobre como elas atuavam junto com o poder público em planos diretores para favorecer bairros que já têm infraestrutura para que se valorizem, como é o caso da Aldeota, e elas consigam vender mais caro as suas terras. Essas parcerias público-privadas, que acontecem na Praça das Flores, por exemplo, que vai beneficiar toda aquela área da BSPar. Então a gente passa a ter uma privatização que vai favorecendo cada vez mais as construtoras. A reforma da Beira Mar possibilita que a gente tenha um apartamento custando 8,7 milhões de reais. Ou seja, quanto mais o Estado investe em áreas onde já existe infraestrutura, onde as imobiliárias já têm áreas privatizadas, mais a cidade vai se tornando exclusiva. Essa Fortaleza que a gente pode delimitar pela Aldeota, Meireles, Varjota, Cocó, indo até o Bairro de Fátima, onde tem concentração de melhor IDH, é também a área de concentração dos maiores investimentos públicos. No começo da pesquisa de mestrado em Sociologia de Fábio Macedo, que orientei na UFC, eu sugeri que ele fosse a uma praça no Conjunto Palmeiras e comparasse os equipamentos utilizados para o parquinho lá com os mesmos equipamentos na Praça das Flores, na Aldeota. E o que ele vai constatar é que o material é muito inferior. É como se as pessoas fossem inferiores, entende? E é isso que é o racismo.
O racismo marca a cidade de Fortaleza. Quando se privilegia esse espaço urbano, está se privilegiando as pessoas desse espaço urbano. A gente não pode falar de espaço urbano como um espaço vazio. Quando a gente fala de espaço urbano, estamos falando de pessoas. É como se existissem pessoas cujas vidas valem alguma coisa e merecem viver luxuosamente, que merecem viver em contato com a natureza, que merecem ter acesso à beleza, ao colorido e à arte, e houvesse pessoas que não têm acesso a isso.
O POVO – O que há por trás dessa concentração de investimentos e serviços em algumas áreas? Uma resposta possível você já começou a dar: racismo.
Geísa Mattos – Por isso que, para pensar o espaço urbano, a gente não pode só pensar economicamente. É fundamental para entender como se produz o espaço urbano, mas, ao mesmo tempo, temos que entender que a cidade também é composta de performances. As pessoas performam na cidade. E quando a gente está falando de branquitude, que é um conceito ainda pouco entendido, é preciso explicar. As pessoas costumam falar: não existem brancos, todos nós somos mestiços, mas por que 100% das pessoas mortas hoje pela polícia no Ceará são negras? A gente consegue identificar quem morre e quem é o suspeito da polícia. Por que então não conseguimos identificar quem é branco, quem tem os privilégios da branquitude? Só conseguimos ver quem é negro?
O POVO – Ou quando alguém é barrado na entrada de uma padaria, como aconteceu no Cocó.
Geísa Mattos – Exatamente. Ou quando uma mulher tenta entrar na Zara, ela é negra e está consumindo sorvete. Outra pessoa, que também estava consumindo o alimento, não é barrada, mas, pelo fato de ser negra, ela é. Quando um taxista é barrado numa barraca na Praia do Futuro por um segurança que disse que a mulher dele, que era loira, era uma prostituta, e ele não podia entrar acompanhado de uma prostituta, porque não ele tinha condições de ser casado com aquela mulher. Então são situações de racismo vividas cotidianamente.
"Observem como uma pessoa branca, especialmente um homem – pensando nessa dimensão interseccional, de que não é só a pessoa branca, mas o homem branco de classe média ou rico –, incorpora uma postura de dono, de domínio do território. Mulheres brancas também."
O POVO – Esse racismo é estruturante da cidade?
Geísa Mattos – Existe uma sutileza na maneira como a gente vai se apropriando dos espaços, e é isso que a sensibilidade das etnografias sobre a cidade tem condições de revelar. Na minha opinião, a gente deveria se voltar mais para os estudos sobre as elites. Porque a partir daí a gente conseguiria entender e estranhar certos comportamentos de arrogância, que envolvem humilhações de subordinados, da pessoa que é incapaz de esperar por um atendimento, ela se acha superior e que tem mais direitos do que outras pessoas. Esse limite que leva alguém a achar que é superior ao outro está sempre prestes a explodir na nossa cidade. É como se a gente estivesse sempre no limiar que pode produzir a humilhação do outro. Por isso muitas pessoas negras não se sentem à vontade para entrar no que eles chamam de espaços de branco. Enquanto eu não estudava isso, eu não conseguia ver o racismo na minha cidade. Os corpos das pessoas negras assumem posturas diferentes dos corpos das pessoas brancas. Observem como uma pessoa branca, especialmente um homem – pensando nessa dimensão interseccional, de que não é só a pessoa branca, mas o homem branco de classe média ou rico –, incorpora uma postura de dono, de domínio do território. Mulheres brancas também. Tanto que meu próximo projeto vai ser sobre salões de beleza.
" A cidade diferente só vai existir quando essa classe média mudar e perceber os abusos que comete nos espaços."
Quero estudar as dimensões de sociabilidade no salão, que é um espaço interessante para entender a branquitude de Fortaleza e que relações essas mulheres têm com as mulheres que as atendem, como são certas amizades com as manicures e cabeleireiras, que tipo de objetificação rola, de usar a manicure como objeto. A gente precisa ficar atento ao tom que a branquitude de Fortaleza utiliza. É a mesma branquitude? Não é. É uma linguagem. Ser branco é dominar uma linguagem de poder na cidade. É dominar uma linguagem sobretudo corporal, você incorpora o poder e age como sendo alguém superior, capaz de humilhar, agredir e até matar o outro. O que é muito importante para se entender em relação em Fortaleza é essa dimensão da exclusão que está incorporada nos espaços e nos corpos. Celebrar a cidade significa olhar também o nosso passado, olhar a cidade que fomos para tentar sermos diferentes. E quem tem que fazer essa autocrítica somos justamente nós, brancos. Somos nós que temos que olhar para nós e nossas práticas e para as maneiras como incorporamos esses comportamentos sem perceber, porque nós somos os herdeiros dessa tradição escravocrata e dessas famílias que tinham e têm domésticas e que nos acostumamos a ver esse tipo de humilhação. A cidade diferente só vai existir quando essa classe média mudar e perceber os abusos que comete nos espaços.
O POVO – A Aldeota é um espaço que tem um simbolismo grande e ocupa um lugar no imaginário da cidade. Que tipo de relações você identifica ali que são representativas de Fortaleza?
Geísa Mattos – A Aldeota não é só um bairro para nós, fortalezenses. É também um adjetivo, um advérbio, uma metonímia. Falar de Aldeota é sinônimo de elite, é comum as pessoas que moram em outros bairros falarem “aquele povo das aldeotas”. Quando falam das aldeotas, estão falando das pessoas de classe média e brancas. Ocupa um lugar no imaginário. Em termos de IDH, o Meireles tem um índice melhor, mas a Aldeota é um sinônimo do que há de bom na cidade. Se existe na Aldeota é porque é bom. Virou uma marca. Ao mesmo tempo é verbo, a “aldeotização” da cidade. “Aldeotizar” significa se transformar nesse lugar chique, elegante, sofisticado, para poucos. Sempre para poucos. Mas existem diversos estilos de ser Aldeota. Não necessariamente quando se fala de Aldeota estamos falando de pessoas de salto alto chegando num Mercedes. Podemos estar falando de gente descolada, de gente super legal, progressista, de esquerda também, mas que não conhece nada além das Aldeotas de Fortaleza. Tem muita gente sensível dentro dessa branquitude progressista que percebe isso, quer circular noutros espaços da cidade e sabe que há necessidade disso, que tem intenção de fazer inclusão acontecer. Mas precisamos ficar atentos, porque mesmo em lugares progressistas, descolados etc., o racismo existe. A exclusão existe. Basta chegar nesses lugares e olhar em torno. Quantas pessoas negras tem? Às vezes tem a cota, contratam a pessoa negra pra ser a garçonete, pra estar ali pra dar aquela cara da diversidade porque isso também virou uma marca de cosmopolitismo. Tem pessoas negras aqui, mas o que estão fazendo? Geralmente estão trabalhando. É a vendedora da loja chique, o garçom do bar descolado, e nunca é o dono e não é em geral a maioria dos frequentadores. E quando é o dono as pessoas estranham, nunca pensam que aquela pessoa negra é o gerente, é o dono. Hoje 61% da população se declara parda, só temos 30% de brancos. Mas por que, quando a gente anda nas “Aldeotas”, a gente só vê brancos? Porque brancos têm maior IDH na cidade.
O POVO – A Aldeota também é espaço de disputa política? Falo dos movimentos em torno da Praça Portugal, por exemplo. A própria praça acabou se convertendo num símbolo de um agrupamento político que depois desaguou na eleição do presidente Jair Bolsonaro, não?
Geísa Mattos – Tem tudo a ver, porque essa branquitude, que o sociólogo Lourenço Cardoso chama de branquitude acrítica, assume uma ideologia muito próxima da ideologia bolsonarista, dos valores que o bolsonarismo defende hoje, das posturas bolsonaristas em relação às questões raciais e às questões do emprego doméstico. É muito curioso porque uma das coisas que mais mobilizaram para essas movimentações a favor do impeachment foram justamente os direitos das domésticas. Se a gente olhar os vídeos dessas manifestações contra a Dilma naquela época, era muito comum ver pessoas brancas, mulheres, falando: “agora está impossível arranjar uma empregada doméstica”. O próprio Paulo Guedes falou: “agora empregada doméstica quer viajar pra Disney”. É a partir do emprego doméstico que a gente entende o cerne do racismo na nossa cidade. Se a gente expandisse o nosso olhar sobre essa elite e sobre as relações entre patroas e patrões e suas domésticas, a gente veria os horrores coloniais, que ainda existem dentro dessas casas dos autodenominados cidadãos de bem da branquitude fortalezense. A empregada ainda tem que ter aquele marcador de classe, “ela não é dos nossos”, tem que estar com roupa de babá, com performance própria, marcada como doméstica e nesse lugar de inferioridade. Ela tem que performar esse papel de babá em que é colocada pela patroa, que não percebe que isso é reedição do passado colonial e escravocrata, que está sempre sendo atualizado.
"A Praça Portugal, que é uma espécie de coração da Aldeota, se torna esse espaço por excelência de manifestação dessa branquitude."
Essa é a branquitude acrítica, que não se pensa a si própria, que se considera superior e quer realmente que os empregados sejam sempre inferiores, não tenham direito de frequentar os mesmos espaços, não tenham direitos sociais. A Praça Portugal, que é uma espécie de coração da Aldeota, se torna esse espaço por excelência de manifestação dessa branquitude. E quando a gente vê os vídeos de 2016, chama muito a atenção como essas pessoas estavam à vontade naquele espaço. Você imagina que pessoas que moram na periferia ficariam daquela forma ali? Havia telões, coreografias, as pessoas estavam no seu espaço, performando a sua branquitude. A grande maioria era de brancos. Depois, a branquitude crítica ou progressista tenta tomar também o espaço da Aldeota, fazer manifestação na Praça Portugal, mas a praça adquiriu essa marca muito forte até por tudo que ela significa em termos dessa ostentação de poder e de riqueza.
Grandes entrevistas