A cantora e compositora Adriana Calcanhotto vem desenvolvendo um modelo híbrido de apresentação nos últimos anos. Em formato mais íntimo, acompanhada de um violão, ela mistura canções e falas ao traçar o paralelo entre o modernismo e a carreira para o público. Ambos, inclusive, andam lado a lado. Um dos primeiros shows dela foi "A Mulher do Pau Brasil", de 1987, um espetáculo com tamanha repercussão que acabou resultando no primeiro disco, "Enguiço", de 1990.
Com a estreia no mercado musical, a gaúcha levou o Prêmio Sharp de Revelação Feminina e se tornou uma das principais apostas para a Música Popular Brasileira (MPB). Este episódio é, no entanto, apenas o desenrolar de uma longa história que começa ainda em outubro de 1965, em Porto Alegre. Filha do baterista do jazz Carlos Calcanhotto e da bailarina Morgada Assumpção Cunha, Adriana manifestava interesse pelas artes desde a infância. Começou profissionalmente por volta de 1984, tocando música ao vivo em restaurantes e bares.
A guinada para os palcos aconteceu a partir do conhecimento da estética vanguardista e dos ensinamentos do cenógrafo e diretor Luciano Alabarse. Em 2022, ano em que se comemora os 100 anos da Semana de Arte Moderna, a artista faz retrospectiva da trajetória e mergulha na inspiração modernista em seus trabalhos.
Após o disco "Só" (2020), gravado em meio às inquietações causadas pela primeira onda da pandemia, a cantora lançou colaborações, como a releitura de "Vumbora Amar" (2022), e prepara temporada de shows pela Europa. Em uma conversa com O POVO, Adriana fala sobre inspiração para canções, últimos lançamentos e planos para os próximos passos. Compartilha, também, sobre o mundo digital na pandemia, a oportunidade de lecionar em Coimbra e a nova geração da MPB. Na busca pela espontaneidade do novo, a artista almeja seguir múltipla e potente.
O POVO - Quero começar falando sobre o modelo híbrido de apresentação que você vem fazendo ultimamente. Como surgiu este conceito?
Adriana Calcanhotto - Não sei bem dizer como começou esse formato, mas eu já tenho feito há algum tempo. Quando eu terminei a turnê "A Mulher do Pau Brasil", que é um espetáculo que eu fiz em 2018, a Casa do Saber pediu um tipo de aula. Eu não gosto de chamar de aula, porque é mais um depoimento sobre a minha relação com o modernismo dentro do meu trabalho, de onde vem a minha paixão pelos modernistas, como isso me influenciou. Quando eu descobri o modernismo e fui ler sobre isso, no ano de 1980, o Augusto de Campos estava lançando um livro sobre a Pagu, uma das personagens daquele grupo. Com isso descobri a poesia do Augusto. O primeiro livro que eu comprei do Oswald de Andrade, totalmente sem saber quem era, a edição abria com um texto de Haroldo de Campos. Isso foi me abrindo janelas. É tanto tempo que eu lido com isso que eu não sei exatamente quando começou, mas é um formato interessante. Eu falo sobre a pesquisa, falo como isso entra na música, como as canções são relativas a isso. E aí eu toco um pouquinho, eles chamam de "aula-show", mas eu realmente não achei um nome que traduz exatamente o que acontece.
OP - Você já vem trabalhando há anos com os conceitos modernistas. Em quais pontos estas perspectivas se mostram nos seus trabalhos e quais seriam suas principais referências entre as pessoas que levam o movimento?
Adriana - Eu acho que, como a porta de entrada foi o Oswald de Andrade, eu fiquei sempre muito ligada àquele choque da ironia, da paródia, do lance de não pontuar. Uma série de coisas que quando eu lia,eu pensava: "O que é isso?". E eu não tinha noção ainda do que era poesia. Eu ouvia uma rádio que tinha em Porto Alegre que tocava só música brasileira. Ali eu via que tinha uma diferença entre algumas canções, quando eu ouvia Vinicius de Moraes, Fagner, mas eu não entendia que aquilo era poesia. Quando eu comprei o livro do Oswald foi quando eu entrei em contato com a poesia na página. Meu trabalho é todo permeado por essas ideias, às vezes mais, às vezes menos. Em 1987, eu fiz em Porto Alegre um show chamado "A Mulher do Pau Brasil" com o que eu tinha, o meu deslumbramento daquela arte. Depois, quando eu fui para Coimbra, eu dei aulas numa residência artística. Quando terminou o semestre, eu pensei que seria legal ter um trabalho de conclusão daquele período. Nesse momento falavam que eu estava muito portuguesa, muito europeia. E quanto mais eu ia, quanto mais eu ficava lá, mais eu me sentia brasileira. Eu falei que ia fazer o show de novo, porque hoje em dia ele vem a partir de Coimbra, dessa tradição de olhar para o Brasil de Coimbra, que é a tese do professor José Murilo de Carvalho. Então eu fiz a conclusão, que foi uma única apresentação, e recebi convites para fazer uma turnê. Modifiquei o repertório, a banda, e fiz. Deu muito certo e pediram para fazer no Brasil. Então eu vim em 2018 e fiz com outra banda, mantive algumas canções da primeira versão, como "Geleia Geral", "Eu Sou Terrível", "Escapulário", e músicas que estavam falando do Brasil de agora, como "As Caravanas", do Chico Buarque. Em fevereiro, a Universidade de Oxford me pediu uma aula sobre o mesmo assunto e eu fiz online. É um formato que se adapta.
OP - O que você busca trazer nos seus depoimentos sobre as ideias modernistas?
Adriana - Eu entendo que as questões que eles tocaram nos provocam até hoje. Isso é o melhor, tudo o que se está discutindo, questionando. Os artistas indígenas estarem fazendo a reantropofagia é muito interessante, o que o Emicida fez no Teatro Municipal de São Paulo (com o show "Amarelo") é inacreditável, maravilhoso. Eu pensava, agora em 2022, em fazer "A Mulher do Pau Brasil" no Teatro Municipal, mas depois que ele fez aquilo eu falei que não precisa. Costumo dizer que esse show do Emicida devorou "A Mulher do Pau Brasil". Mas como eu recebo esses convites para falar sobre o modernismo, eu aceito, me divirto.
"A Semana é só uma das coisas que aconteceram, mas ela é emblemática, serve enquanto objeto a ser devorado, a ser visitado, a ser recogitado."
OP - A gente está comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna. Qual seria a relevância de pautar esse movimento no Brasil que vivemos atualmente?
Adriana - Eu acho que, neste momento específico, é falar sobre cultura e mostrar do que a cultura é capaz. É inacreditável que tenha que tocar nesse assunto de forma tão básica, mas precisa. As pessoas questionam hoje em dia se a Semana teve relevância, mas a semana é um tipo de coisa que precisava existir, no sentido da gente ter o que devorar até hoje e ficar repensando. A Semana é só uma das coisas que aconteceram, mas ela é emblemática, serve enquanto objeto a ser devorado, a ser visitado, a ser recogitado. Tem muitas coisas que a gente só pode fazer hoje porque os vanguardistas cumpriram seu papel, então eles fizeram o que eles tinham que fazer, acho isso importantíssimo.
"O funk é uma batida inacreditavelmente linda e tem a mesmíssima história do samba. As pessoas rejeitam pelos mesmos motivos. É inacreditável que a gente viveu isso com o samba e vive agora com o funk. É impressionante, mas a história se repete."
OP - Você tem uma obra muito diversa, tanto na literatura, como na poesia, quanto na música. A sua discografia toca em ritmos diferentes, no samba, no funk, assim como nos temas mais voltados para o público infantil. A pluralidade seria uma característica do seu trabalho? Como se dá essa aproximação com as diferentes estéticas?
Adriana - Eu gosto de me aproximar das coisas que não conheço. Quando se aprende um jogo, você arrasa, porque ainda não tem as manhas. Eu gosto desse momento quando eu começo a entender, daquela espontaneidade de quando é novo. O funk é uma batida inacreditavelmente linda e tem a mesmíssima história do samba. As pessoas rejeitam pelos mesmos motivos. É inacreditável que a gente viveu isso com o samba e vive agora com o funk. É impressionante, mas a história se repete. A rejeição é moralista e as pessoas não conseguem separar. Você consegue fazer tudo com aquela batida. As pessoas rejeitam porque é música de preto, de pobre.
OP - Agora em relação à literatura como se deu a aproximação com essa linguagem artística e o que você busca explorar nesse campo da arte?
Adriana - Tem soluções que os artistas dão para as suas questões que, para mim, não importa se é dança, literatura, quadrinho. Eu vejo um quadro, numa galeria, num museu, que pode render uma canção. São esses sustos, esses sentimentos que a arte provoca. Tenho interesse nas obras, não importa tanto a linguagem. E é uma capacidade que eu não precisei desenvolver, acho que é negócio de temperamento mesmo.
" Quando a canção nasce, ela só nasceu, não diga que você fez uma canção. Você tem 30 anos para lapidar, jogar no lixo, chamar um parceiro, muitas coisas, mas elas eram daquela hora que elas foram feitas."
OP - Como essa vivência de ministrar aulas em Portugal te agrega como artista? Como acontece o diálogo entre o seu trabalho e a experiência de lecionar para pessoas de outras culturas?
Adriana - Eu não dou aula de matemática, de física, então todos estão ali porque querem, isso já é uma diferença inacreditável. Tem até compositores, juízes, gente das exatas, gente mais madura, gente muito nova, brasileiro, português, angolano, tem de tudo. É um espectro bacana porque são questões de mundos diferentes, é bem rico e interessante. Eu peço referências musicais e artísticas e vou entendendo cada um. Vi coisas lindas, descobertas. Várias coisas que eu propus aos alunos, depois do primeiro ano, eu comecei a fazer e comecei a seguir os conselhos que eu dava. O disco "Só" é mais ou menos isso. Uma semana antes de eu ir (para Coimbra), o mundo virou de cabeça para baixo por conta da covid. Eu fiquei naquela inércia e acabei fazendo dez canções em onze dias, tudo relacionado ao que estava acontecendo ali, como crônicas mesmo. E é uma coisa que eu não tenho costume, que é fazer uma canção agora e dizer que ela está pronta, é algo muito raro. É o que eu digo para os alunos: "Não façam". Quando a canção nasce, ela só nasceu, não diga que você fez uma canção. Você tem 30 anos para lapidar, jogar no lixo, chamar um parceiro, muitas coisas, mas elas eram daquela hora que elas foram feitas. Tem muitas perguntas que eu respondo de autores, de fãs, de jornalistas, sobre o processo criativo, onde é que nasce e quando que nasce. Então eu botava a data, a hora, mas não é ali que nasce, é antes. Quando eu vi a segunda, terceira canção, que eu estava fazendo de manhã, eu pensei: "É agora, é uma canção até a hora do almoço". Se não sair até a hora do almoço, não almoço. E saiu um álbum falando daquele momento, que eu nunca mais ouvi, eu nem sei hoje o que ele é. Aí a pandemia ficou muito comprida e eu queimei a largada, devia ter lapidado. Mas eu tive uma urgência de lançar, o que não é muito a minha cara. Gosto do lance do acabamento, de finalizar as coisas, e esse disco é cru e urgente.
OP - Ao mesmo tempo em que você não revisita os seus projetos e tem o processo de produção longo, você também trabalha com remixes, faz novas versões das canções e até mesmo retoma produções como o show "A Mulher do Pau Brasil". Como acontece esse reencontro?
Adriana - Ouvir meus discos, para mim, parece que eu estou olhando para trás. O tempo que eu estou ouvindo um disco meu é o tempo que eu teria para fazer uma canção nova. Eu tenho a sensação de que, quando eu faço um disco, eu dou tudo de mim. Fiz aquilo e vou adiante. Parar para escutar o que já fiz parece que eu não vou adiante. Agora, eu acho interessante que as pessoas revisem os trabalhos, façam remix, remexam, picotem, deem suas interpretações, acho super legal, é vivo. Quando eu penso em alguma canção minha, em termos de colocar num show, por exemplo, aí eu tenho que reouvir. Mas ainda assim é com o objetivo de ir para frente.
"Nas redes sociais o pessoal e o profissional não se misturam, é uma plataforma para provocar a criação, na verdade. É uma forma, talvez, de partilhar isso com as pessoas."
OP - Como a gente vem falando sobre esse processo de composição, uma coisa que acho muito interessante que você está fazendo é a apresentação das letras das canções aos seguidores das redes sociais, ao mesmo tempo em que você usa esse espaço, por exemplo, com lives. Como está sendo a relação com o meio digital?
Adriana - Durante a pandemia eu fiz algumas coisas, shows, lives, de casa. O que é engraçado porque sempre acontece algo, o cachorro late, por exemplo. O negócio de falar das canções era uma coisa que as pessoas estavam pedindo. Eu não fui para Coimbra e o Murilo, que faz os vídeos, não foi para São Paulo. A gente ficou ali com energia. Era um pedido das pessoas para falar das canções, como foram feitas, de onde é que vem aquilo. Eu fui atender os alunos, mas vi que eu tenho mais alunos do que aqueles físicos. Isso ajuda muitas pessoas a compor e provoca uma coisa corpórea nas pessoas. Fiquei super feliz. Nas redes sociais o pessoal e o profissional não se misturam, é uma plataforma para provocar a criação, na verdade. É uma forma, talvez, de partilhar isso com as pessoas. Você frui melhor daquilo, ganha mais camadas de entendimento e, enquanto compositora, você aprende muito, tudo é aprendizado.
OP - Eu queria repuxar agora o álbum "Só" (2020) para a gente falar sobre o atual contexto político. Na faixa "O Que Temos" você inclui trechos de panelaço, que envolve a rejeição ao presidente Jair Bolsonaro. Como você reflete e analisa o momento que estamos vivendo em relação à cultura?
Adriana - É um panelaço gravado de verdade no apartamento de uma produtora minha, no final de uma rua na Gávea [bairro do Rio de Janeiro]. O som está pegando um corredor inteiro de panelaço. A pandemia prejudicou a manifestação nas ruas, ficou muito difícil, não era para ir mesmo. Mas a gente tem internet, a gente precisa usar como ferramenta. Você está me perguntando sobre cultura e neste governo não há cultura, não há plano e não há respeito pela cultura. O Bolsonaro ganhar uma medalha de Mérito Indigenista é um escárnio, um deboche, um desaforo, é inaceitável. Ficou claro agora que a democracia exige vigilância constante.
OP - Você também lançou uma releitura de "Vumbora Amar" (2022), com o cantor Fran. Como se deu essa colaboração entre vocês dois e como você se relaciona com esses artistas da nova MPB?
Adriana - Tem muita gente bacana, tem muito artista fazendo coisa boa. O Fran tem uma voz linda, um canto espontâneo, suave, ele diz a letra. Ele é um grande artista e me convidou para cantar com ele uma música do Carlinhos Brown, que é um compositor inacreditável. Foi um encontro muito feliz. Tem muita gente, eu cantei com o Rubel, agora vai ficar chato porque vou esquecer alguém, mas esse novo pessoal não está de brincadeira.
OP - O que você está consumindo agora?
Adriana - Nesse momento, eu estou ouvindo jazz, que é recorrente para mim. Como eu ouvia muito jazz com o meu pai, é um oásis, meio que zera o meu ouvido. Em geral, depois desses momentos de jazz, do que eu já conheço, vem uma safra de composição.
"Eu estou com esse formato voz e violão e vou fazer em maio Europa e, em setembro, Estados Unidos. Ambas turnês já foram adiadas não sei quantas vezes. Eu estou dizendo que vou , espero ir, mas estou pronta para o que for."
OP - Em 2021 você fez alguns shows pontuais, voz e violão. Pretende continuar com esse formato? Já se sente mais segura neste momento do contexto pandêmico?
Adriana - Tem as variantes e eu não acho que dá para a gente ficar fazendo exercícios de imaginação e de adivinhação. As pessoas têm que trabalhar. A gente pensa nos artistas, mas tem todo um povo por trás que bota o espetáculo de pé. Eu estou com esse formato voz e violão e vou fazer em maio Europa e, em setembro, Estados Unidos. Ambas turnês já foram adiadas não sei quantas vezes. Eu estou dizendo que vou , espero ir, mas estou pronta para o que for. Acho que tem que ir com segurança, faz diferença eu estar segura em relação a minha equipe. Se tudo der certo, e tudo vai dar certo, eu vou de voz e violão mundo afora, que é minha vida.
OP - Tem algum outro projeto que possa adiantar? Caso os shows aconteçam nos próximos meses, o repertório continua o mesmo?
Adriana - Como esse ano são os 100 anos da Semana de Arte Moderna, eu tenho recebido convites para essas apresentações. A maioria das coisas, na verdade, são online, como já fiz para Oxford. Tem alguns convites de voz e violão para festivais no Brasil, mas aqui não vai ser uma turnê, são esporádicos. Eu pretendo lançar, no ano que vem, um disco com essa safra que eu te falei de canções que são, sei lá, 14 canções inéditas, todas minhas, e elas precisam ir para o mundo, que isso ajuda a fazer também uma safra nova. O repertório vai ser um híbrido daquelas coisas que as pessoas querem e vão ouvir, com algumas coisas relativas à "A Mulher do Pau Brasil", é uma mistura.
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