Dizer que o nome e a vida de Neon Cunha fazem parte da História brasileira não é exagero. Embora desconhecida da imensa maioria das pessoas fora da militância LGBTQIA+ — em especial fora da militância trans —, a designer de 50 anos trouxe avanços que, hoje, podem impactar a vida de, literalmente, qualquer pessoa do País.
Em 27 de junho último, foi aprovada a Lei nº 14.382/2022, que assegura a qualquer pessoa o direito de alterar o próprio nome no cartório. Não é necessário apresentar uma motivação para a escolha, tampouco passar por processo judicial: basta juntar os documentos necessários e solicitar a mudança.
Ironicamente aprovada no governo ultraconservador de Jair Bolsonaro (PL), a Lei segue na esteira de um processo judicial movido por Neon. Ela se tornou, em 2016, a primeira pessoa trans a conseguir a retificação dos documentos sem a necessidade de laudo psicológico. Dois anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiria que as mudanças de nome e gênero na certidão de nascimento deveriam ser processos administrativos, realizados diretamente nos cartórios. Com isso, não é mais preciso uma decisão da Justiça para que pessoas trans possam ser legalmente reconhecidas como quem realmente são.
A Lei sancionada por Bolsonaro não menciona alterações de gênero nos registros civis, tampouco tem qualquer citação a pessoas LGBTQIA+. Mas é um exemplo de que, quando direitos são assegurados a este grupo, o restante da sociedade não é ameaçado. Pelo contrário, também ganha acesso a mais direitos.
Ao O POVO, Neon deu praticamente duas entrevistas, na sede da Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE), no final de junho, quando foi convidada a palestrar sobre sua história de vida no evento que culminou na entrega, para pessoas trans, de mais de 100 certidões com nome e gênero corrigido. A primeira metade, feita antes do evento, é quase em verso livre, para dar voz a uma pioneira da luta judicial de pessoas trans. Esse trecho está reproduzido na íntegra ao fim do texto e editado na parte da conversa em si. A segunda, aprofunda temas levantados pela memória da designer.
Da história pessoal para a militância, Neon fala sobre mãe, faxineira, sobre não-binariedade, sobre o mundo em eterna transição, sobre as discussão de identidade de gênero acontecendo com pessoas cada vez mais novas, sobre a vivência em governos de extrema direita na época da ditadura militar e atualmente, e, também, sobre pioneirismo.
O POVO - Comece contando sua história, desde o entendimento de ser uma pessoa trans.
Neon Cunha - Importante pontuar que minha mãe gestou uma menina. Quando minha mãe está grávida, ela passeia com as minhas tias e diz assim: "Minha filha vai ser tão linda quanto essa boneca". Eram os manequins das lojas. Eu sempre perguntava para a minha mãe, depois que a gente superou essa fase de entender algumas coisas: "Como foi para você quando eles disseram que não era a sua filha?"
E ela falava assim, ela mudava o assunto e dizia: "Era um sábado, às seis e meia da tarde, e o céu mudou. Ele ficou cor-de-rosa alaranjado". Ela é de matriz africana. O céu alaranjado e rosa o céu de Euá, a divindade, no Candomblé, da inteligência. E ela sempre mudava o assunto, ela desviava a conversa.
Quando, com dois anos e meio, eu me afirmo: "Eu sou uma menina". E aí começam os processos de cura. É cura no Espiritismo, cura no Candomblé, cura na Umbanda... É a cura no exorcismo, é a cura de todos os jeitos. Em alguns momentos eu vou para um processo de surra, né? Meu pai começa a me bater em casa. Com quatro anos eu me lembro da primeira vez que ela me leva para a faxina. Literalmente eu limpava, junto com ela, rodapé com escova de dentes.
Eu sabia o meu lugar... Inclusive, havia entendido, só posteriormente eu entendi, porque eu tinha dois outros irmãos anteriores a mim, e depois vai nascer a primeira mulher cis. Mas eu entendi que ela me levava para a faxina para me proteger das violências. Era o risco de não sobreviver, até porque, com 8 anos de idade, meus irmãos tentaram me matar efetivamente.
Então, são coisas que eu tenho pontuado, que para mim são muito importantes, porque as pessoas têm usado muito o processo, tipo, "Quando você transicionou?". Eu não transicionei. Eu estou em transição. Eu tenho um percebimento. A transição é um processo contínuo: a humanidade está em transição, as pessoas estão em transição, os seres vivos estão em transição, sendo bem anti-especista, para pensar: o que é uma transição? Transição de casa, transição de emprego, transição de cabelo, transição de não sei o quê... Tratamentos que você faz, é um processo de transição, de cura, né?
Se você pensa no tratamento do câncer, a questão chave sempre é o percebimento: quando você tem informação do que acontece. E as pessoas trans estão o tempo todo em percebimento, elas estão se percebendo no Universo a partir do que lhes é negado enquanto possibilidade de existência.
O POVO - Como foi sua adolescência?
Neon - Nesse mesmo período eu vou pela primeira vez para o Centro de São Paulo, para a rua, aí conheço a área de prostituição... Conheci a prostituição muito cedo. Eu não fiz a prostituição, importante pontuar, mas atuei junto à prostituição como "olheira" das cafetinas. Porque, vinda de candomblé, eu já entendia o pajubá. "A mona cocica a indaca odara para azuelar os ojus dos ocó e dos amapô". Ou seja: "a mulher fala muito bem o pajubá, para poder, de alguma forma, sacanear mulheres e homens cis".
E, lógico, precisavam de alguém que conhecesse esse código da rua, da marginalidade, e tinha um detalhe muito importante: como eu era muito sóbria, nunca bebi nem nada, eu ganhei esse papel de ser a olheira nas esquinas. Para ver quando a polícia vinha, quando bandido vinha, qual era a situação acontecendo, e é isso. E a gente já tava vivendo o boom da Roberta Gambine [conhecida pelo nome artístico Roberta Close, modelo e atriz trans que iniciou sua carreira na década de 1980], por exemplo, entre tantas outras: tinha o Clube do Bolinha, tinha o Silvio Santos com o "Eles e Elas", o trabalho das transformistas etc.
Imagina: 12 anos, conhecendo a prostituição, conhecendo a rua, trabalhando no gabinete do prefeito debaixo da escada, como mensageira, patrulheira mirim... Depois eu fui para o Liceu, que era na região da Luz, e meu pai diz: "Não, na Luz você não vai que lá é lugar de puta". Ou seja: ser a filha, jamais! Mas, correr o risco de ser puta... De certa forma eu já sabia, porque eu já andava na noite... Com 14 anos eu já comecei a frequentar com uma certa regularidade o Centro de São Paulo.
As pessoas decidiram que eu seria Neon, porque elas não gostavam do nome que a minha mãe gostava. É porque isso faz sentido na hora de explicar a retificação. Neon grudou. Ou como uma bênção ou como uma mandinga bem feita, eu prefiro pensar... Na rua também grudou Neon, "Neon combina com você.
O POVO - E de onde vem o nome Neon?
Fui fazer Publicidade e Propaganda, e as pessoas decidem... Foi a primeira coisa que aconteceu. Numa aula, eu me lembro, estou refazendo aula de Física, vendo tabela periódica... Física e Química, e aí alguém fala: "A gente não gosta do seu nome. Neon combina com você".
As pessoas decidiram que eu seria Neon, porque elas não gostavam do nome que a minha mãe gostava. É porque isso faz sentido na hora de explicar a retificação. Neon grudou. Ou como uma bênção ou como uma mandinga bem feita, eu prefiro pensar... Na rua também grudou Neon, "Neon combina com você".
O POVO - E como era o contexto da ditadura?
Neon - Eu nasci na ditadura e fui criada na ditadura. Eu já trabalhava. E aí, quando eu saía e quando tinha geral, às vezes, da polícia, eu tinha que apresentar holerite e documento. Para o bandido, eu tinha que apresentar a mão cheia de calos. A faxina, com a minha mãe, novamente estava ali me protegendo de tantas coisas.
Eu acompanhei o boom da cocaína na rua, que é a droga que vai mudar todo o cenário para a prostituição de mulheres trans e travestis. Também acompanhei o advento do HIV/aids, no mesmo período em que em São Paulo acontecem as operações de extermínio, como Rondão, Riquete, Arrastão... Depois tudo é meio que fundido na ideia da [Operação] Tarântula. A Riquete acho que é a mais perversa porque leva o nome do delegado.
É bom lembrar que mulheres trans e travestis não entravam em "boate gay". O movimento era "gay". Nós éramos a extrema marginalidade do processo. Só podia quem era transformista, e muitas travestis usavam o nome masculino para dizer que eram transformistas, para poder ter alguma sobrevivência.
E tinha que fazer tantas coisas, era uma coisa assim, era muito desonesto, era muito desumano. Você tinha que ser a melhor filha, você tinha que ser a melhor aluna, você tinha que ser a melhor profissional, e só existir no espaço de tempo reservado... Além de que você era amaldiçoada.
Outras opressões também atravessaram a vivência de Neon. Preta, moradora de periferia, filha de terreiro. As vivências da designer se acumulam e interseccionam, com a transfobia sendo ligada ao racismo, ao ódio de classe e à intolerância religiosa.
O POVO - O que a rua lhe ensinou?
Neon - Na rua, eu aprendi que eu tinha competência para estudar. Que eu tinha competência para o trabalho formal, e que eu que era corajosa. Todo o mundo se prostituía, todo o mundo saía...
E, com essa trajetória, e eu vou me formar em 1988 em Publicidade — eu nunca fui contratada por uma agência. Então eu nem mandei. Eu trabalho no mesmo espaço há 40 anos. Eu conheço as mesmas violências há 40 anos. Elas amenizaram, mas elas estão ali presentes.
Porque, eu tenho dito e repito, o cissexismo antecede a transfobia. Essa ideia de que o gênero das pessoas cis de alguma forma é mais legítimo que o gênero das pessoas trans, ou inclusive a ausência de gênero que algumas pessoas tem reivindicado. E a gente não está falando de nulidade, a gente está falando de outra possibilidade. Então, nesse processo todo, eu já conhecia tudo.
Outras opressões também atravessaram a vivência de Neon. Preta, moradora de periferia, filha de terreiro. As vivências da designer se acumulam e interseccionam, com a transfobia sendo ligada ao racismo, ao ódio de classe e à intolerância religiosa.
O POVO - A questão racial também teve um peso?
É nessa construção mesmo, de se perceber no mundo, e eu me lembro de outra coisa que ela narra, as tias principalmente narravam, que elas falavam o seguinte, quando eu nasci, muito pequena, as tias por parte de pai diziam assim: "essa a Vó Júlia não carregaria, porque nasceu preta". A minha avó, portuguesa, ou descendente já de portugueses, casada com um homem negro retinto, não carregava as crianças que nasciam de pele escura.
E a questão racial foi reforçada, na segunda série, lá com oito anos, quando outras crianças disseram: "Meninas" — porque eu ficava com as meninas — e uma menina diz: "A gente não quer mais andar com você porque você tem cor de sujeira. Você tem a cor do papel que embrulha os cadernos". Então não ousem me chamar de parda.
Não havia disforia com o meu corpo. Mesmo com 12 anos, quando eu conheço a primeira mulher transexual — e ela usou esse termo, eu me lembro — o nome dela é Grace, inclusive nordestina, trabalhando numa feira hippie de São Bernardo, eu fiquei fascinada com aquela mulher
E eu vou para casa e digo para a minha mãe: "Me chamaram disso". E ela diz "Você não é isso". E aí, para ajudar, mamãe foi me mostrar o que era pardo. A bendita da galinha de cabidela, ou de molho pardo. Então você imagina uma criança assistindo à mãe pegar uma galinha, cortar o pescoço, colher o sangue, coalhar com vinagre, para fazer o molho, que não era ela. Desde então, até hoje eu falo: eu sou uma mulher negra de pele não retinta ou de pele clara.
Não havia disforia com o meu corpo. Mesmo com 12 anos, quando eu conheço a primeira mulher transexual — e ela usou esse termo, eu me lembro — o nome dela é Grace, inclusive nordestina, trabalhando numa feira hippie de São Bernardo, eu fiquei fascinada com aquela mulher. Ela tinha uma cara que eu não definia se era feminina, masculina, o que era aquilo... Tinha chuchu — chuchu, para quem não sabe, é barba — e eu ficava olhando. E o peito. E eu fiquei passada que aquela pessoa tinha peito. Só que é isso, muito pirralha, novinha, abusada, olhando a outra, que tinha... Se eu tinha uns 12, ela devia ter uns 30 e poucos... Ela olha pra mim: "O que que foi? Você nunca viu peito?". E aí ficou um climão, eu fiquei assim: "Eu vou apanhar aqui" [risos].
O POVO - E como se deu o seu processo jurídico?
Neon - Tem um fato que eu narro poucas vezes: em 2000 pra 2001, eu resolvi que ia existir em plenitude. Eu morava nos fundos de uma empresa, era uma clínica odontológica. Entraram para assaltar a clínica, e eles perceberam que tinha mais alguma coisa, que tem a casa, porque a clínica estava fechada e eles não tinham acesso. Eles batem na minha porta, eu abro e tinha uma arma na minha cara. E nisso eles entram, percebem que eu tenho eletrodomésticos, algumas coisas, e vão assaltar a casa.
Eles me amarram, me amordaçam, e um deles fica me vigiando. Em determinado momento ele fala assim: "Essa p* não é mulher". E eles vão me violentar. Eu me lembro até hoje, a frase que mais me marcou, porque um deles, no princípio cristão, falava assim: "Eu não vou g*, porque não vou jogar filho fora nesse lixo".
Eles foram embora, a casa foi revirada do avesso, eu desisti de existir. Porém, em 2014 eu disse: "Não, é tudo ou nada. Eu existo, eu sou quem eu sou". Já conhecia tudo, tinha passado pela prostituição, eu era entregue pelas cafetinas, negociada com os policiais, para não fazerem agressão, para eles me usarem para os seus prazeres... Eu só fui transar, mesmo, de forma consensual e com prazer, aos 26 anos. O resto tudo foi violência. De não poder frequentar banheiro, de quando entrava no banheiro do trabalho os caras vinham atrás...
Na escola, a gente tem um fenômeno que acontece nessa época da ditadura, que é sobre pessoas trans: "joga pedra na Geni, maldita Geni". Eu era Geni na fila da escola, eu era Geni quando descia para almoçar. Chegou uma hora que eu não queria nem descer mais para almoçar, eu não almoçava. Porque a primeira pergunta que era feita, mesmo eu usando uma farda, era: "Você está de calcinha?". Ou o cara que fazia a segurança, que falava: "Eu quero te dar uma carona". E na hora de dar carona tinha o aliciamento.
Além de falar dos tratamentos de cura, que eu tive o Candomblé — que eu vou sempre bater cabeça para Laroyê Eparrêi Oyá - nesse processo. Então eu já conhecia todos os "nãos". Quando eu decidi existir de fato, em 2014, eu falei assim: "Agora não tem arrego: preta, pobre, trans, no Brasil"... E já olhando os dados, já questionando, a gente vai ter o marco histórico...
Porque, a partir de 2016, que a discussão da violência com pessoas trans muda, na hora que eu vou pedir mudança de nome e gênero [na certidão de nascimento], me acusando de ser patologizada, e sendo a primeira pessoa trans a falar presencialmente na OEA, que é onde o processo chegaria depois de cinco anos.
Porque, a partir de 2016, que a discussão da violência com pessoas trans muda, na hora que eu vou pedir mudança de nome e gênero [na certidão de nascimento], me acusando de ser patologizada, e sendo a primeira pessoa trans a falar presencialmente na OEA [Organização dos Estados Americanos], que é onde o processo chegaria depois de cinco anos. A roda se inverteu, porque, quando Exu corre, as coisas acontecem. E aí, nesse processo, é sobre isso: ou eu ia existir, ou esse Estado tinha que assumir a responsabilidade sobre as violências às quais nós, pessoas trans, somos submetidas o tempo todo. Ter a consciência, a responsabilidade.
Porque eu me amo, e eu quero ter a integridade física desse corpo... O corpo, a gente aprende nos terreiros de Candomblé, o corpo não se viola. O corpo é a casa da existência. O corpo é a casa de Orixá. E eu sempre digo isso: oxalá se esse País tivesse sido constituído na matriz africana e entendido que não se viola um corpo. Talvez Dandara estivesse viva. Talvez tantas outras, como as que eu assisti ali na ditadura, nas operações de extermínio, não é fácil você assistir uma travesti preta ser executada, você tendo 16 anos, e volta para a vida comum. Vai ser a melhor filha, a melhor profissional, vai ser tudo. Porque você, de verdade, "a gente vai executar".
Naquele momento eu estava pronta, as pessoas me perguntavam: "qual era o método?" como eu queria... É perverso, porque muita gente estava torcendo pela morte assistida. Mas, numa ação inédita, o meu processo, eu trouxe para os autos, que eu não tinha disforia nenhuma, e inclusive a classe médica, clínica não estava habilitada para fazer isso, porque não tinha domínio da vivência, o Calligaris [Contardo Calligaris, colunista] escreve na Folha [de São Paulo] sobre o meu caso, que é praticamente um laudo e, por consequência, sai, primeiro na OEA, e na sequência sai a sentença favorável.
Pela primeira vez usou-se o direito ao autorreconhecimento, e pela primeira vez se usou a Constituição do Brasil. Isso é muito sério: a Constituição é de 1988. A primeira tentativa da Roberta Gambine é de 1990. Ela só conseguiu em 2005. Em 2006, eram produzidos os Princípios de Yogyakarta, dando diretrizes da aplicação dos Direitos Humanos na questão da identidade de gênero e na questão sexual, tendo Sônia Corrêa, uma brasileira, como presidente dessa comissão. Em 2006 Lisberta era assassinada em Porto. Uma brasileira foi executada, com rigor de leis abraâmicas, por 14 jovens, e deu a lei de identidade de gênero mais avançada do mundo, em Portugal. Em 2017, Dandara Kettley é executada, aqui, e o Brasil segue matando mulheres trans e travestis. A garantia do nome é certeza de que a gente não vai ser apagada, porque nós teremos nomes em lápides.
O POVO - Conheci a primeira pessoa não-binária aos 23 anos, e me assumi aos 25. Antes disso, não sabia que existiam pessoas — mesmo trans — que não são homens, não são mulheres, não são travestis. Hoje, essa discussão acontece mais cedo, com adolescentes trazendo o tema ao debate. Como você enxerga a diferença nos cenários (sobre a existência de pessoas trans) na época da sua adolescência e hoje?
Neon - Não dá para comparar. A impressão que eu tenho é que é um processo de "portal". Que se abriu um portal, e eu tenho uma certa responsabilidade quando penso nisso, porque a gente pode olhar: é de 2016 para cá que se discutem essas violências nessa perspectiva. Então, assim, é sobre isso. É interessante porque a gente vive dois cenários de opressão: eu estava ali na ditadura, e agora a gente está nesse cenário que eles evocam a ditadura mas não realizam, não vão conseguir, mesmo, e ao mesmo tempo toda essa gente produzindo liberdade.
Então assim: é muito distinto? Lógico. Mas, ao mesmo tempo, dá muito orgulho de ver essa geração. A gente pensa em todos os processos que tem se constituído, do processo da individualidade, das redes, dos celulares, dos computadores etc, mas dá muito orgulho ver as pessoas podendo se autoafirmar, poderem experienciar, não tratar o gênero como um processo fechado.
Foi aquilo que eu falei do processo de Luana Barbosa [mulher negra assassinada pela Polícia Militar em Ribeirão Preto (SP) em 2016 ao exigir que fosse revistada por policiais mulheres — Luana se identificou, por algum tempo, como um homem trans, mas destransicionou]: a gente pode experimentar outras vivências, não precisa ser fixo. A gente, que tem ele fixo e não quer alterar o processo e tá tudo bem, eu estou realizada, eu estou feliz, a gente enxerga também essas outras potências que estão questionando, e que estão se manifestando e vivenciando de uma forma mais plena.
Então, assim, eu vejo com muito orgulho, com muito apreço, as NBs [pessoas não-binárias], as outras possibilidades de não se ser cis, eu acho que é isso. É um tempo com possibilidades de sonhar. E, mais do que sonhar, você vê as pessoas realizando.
O POVO - Na cerimônia de hoje, foram entregues certidões retificadas para pessoas trans, em um processo administrativo. Mas há grupos, como menores de idade e pessoas não-binárias, que ainda precisam passar por processo judicial. Qual a sua visão sobre isso?
Neon - As pessoas nascem, existem... Pode ser uma minoria? Mas é uma responsabilidade social, porque está lá, é constitucional, a garantia de todas as vidas, Artigo Quinto [da Constituição brasileira, que fala sobre os direitos fundamentais], que tem que valer para as NBs. A gente vai atrás, e tem que ser, gente, acabou, por que tem que estar nesse padrão? Alguns países já têm essa possibilidade... E acho também que é isso, pode ser que demore, mas pode ser que não demore tanto.
É usar a jurisprudência das pessoas trans [binárias] para as NBs. Porque, se a gente pensar, trans é todo o mundo que não é cis. Então as pessoas NB são trans. Embora algumas pessoas NB se requeiram como cis, porque falam que usam o processo de ser cis para alguma coisa, essa questão é dessas pessoas. Então é transformar a possibilidade não-binária como uma questão de não ser cisgenereidade. Sobre crianças e adolescentes trans, o que a gente precisa avançar de verdade, de verdade, é constituir uma sociedade para esse acolhimento, esse pertencimento.
É o que eu tenho falado: a inclusão está posta, é essa questão da política toda, essa questão do Estado, agora, a questão é: isso, ok, vou retificar nome, vou fazer tudo, tá tudo bem, vou entrar no paradigma do tipo: esse é um percurso que você lida como cis, quando na verdade não é uma existência cis, mas tem que recorrer ao status quo cis para uma dignidade, e aí a gente tem que ampliar isso numa sociedade porque é isso: tem atendimento médico, tem escola, tem umas especificidades de um povo que não é cis, e eu preciso estar num lugar de pertencimento, num lugar acolhedor e seguro, para que eu possa me manifestar enquanto existência. É nesse lugar que a gente vai ter que avançar, nessa constituição de humanidade, para que essas pessoas se sintam seguras. Assim como uma pessoa cis se sente segura. A gente tem que chegar nesse lugar.
Você pode passar por outras questões, de gordofobia, de uma bifobia, de uma questão de sexualidade, mas quando as pessoas trans explodem, são apontadas, assim como as pessoas negras e racializadas, que é o mesmo processo, nós temos o racismo e, para as pessoas trans, nós temos o cissexismo, que antecede a transfobia.
O POVO - O objetivo é a irrelevância (da identidade de gênero)?
Neon - É isso. Nesse lugar a gente vai descamar para a invisibilidade, para em algum momento a gente ser tão invisível quanto essas pessoas. O privilégio cis te põe numa invisibilidade... Você pode passar por outras questões, de gordofobia, de uma bifobia, de uma questão de sexualidade, mas quando as pessoas trans explodem, são apontadas, assim como as pessoas negras e racializadas, que é o mesmo processo, nós temos o racismo e, para as pessoas trans, nós temos o cissexismo, que antecede a transfobia. A transfobia é o ódio aplicado. O cissexismo é essa estrutura de exclusão constante.
O POVO - Essa questão se relaciona com algo que você mencionou antes: a necessidade de ser "a melhor filha, a melhor profissional". Esse tema é recorrente entre pessoas trans, e se interlaça com outras questões de opressão, que tem que ser dez vezes melhor que uma pessoa branca, hetero, cis...
Neon - Sim, a gente busca essa invisibilidade nesse processo. Isso é invisibilidade. A gente vai ser tão bom, tão boas, que eles nem vão perceber as outras coisas. É isso, a gente quer um processo de invisibilização, é um processo de "eu vou te dar o que você quer. É isso que você quer? Eu vou te dar isso para você não olhar as outras coisas". Sabe quando você vai numa festa, e você escolhe: eu vou colocar uma roupa que todo o mundo vai me olhar e me apontar, ou eu vou colocar uma roupa tão simples que eu vou me camuflar. É isso, a gente quer esse mimetismo, às vezes, a gente ala assim: "Estou mostrando a minha competência, que não vão questionar mais nada".
O POVO - A gente busca excelência para poder não olharem para essas outras coisas.
Neon - Você diz assim: "Olha, aqui tá entregue, então deixa eu viver o restante do meu jeito". É quase como uma permissão, é quase como "olha, esse é o código".
O POVO - Quando você trouxe a questão do assalto, que invadiram a sua casa, que, ao notarem que você era uma mulher trans, veio a violência sexual. Você acha que, ao ver alguém trans, a primeira reação das pessoas é a violência?
Neon - Uma das piores violências, porque, justamente, violar um corpo, na perspectiva de deixar marcado. Estupro é isso: violar o corpo de um jeito que a pessoa fica tão marcada, tão marcada, que você vai ter que recorrer à memória de mim, vai ter que se livrar de mim, de alguma forma, não há banho que vença, não há o que vença...
E eu acho também que a questão básica, é assim: antes era só o sexismo. Então tá, uma mulher independente, que tem que se ferrar porque é uma mulher independente. Porque, provavelmente, se tivesse um cara [no momento do assalto], seria uma outra situação. A outra questão é o cissexismo, que é falar assim "não é mulher, né, a gente pode tratar como objeto".
E é esse o lugar que fica: você se sente objeto, porque não tem como recorrer. Você vai falar para a polícia? Fazer o corpo de delito? Você vai passar por todas as outras violências que se sucedem, que podem agravar muito mais o seu emocional? Fui para a terapia, para continuar o meu tratamento terapêutico e acabou, porque assim, não há o que fazer. Não há o que fazer. Eu estou falando de 2000 pra 2001, tem 21 anos.
A gente avançou muito, mas é por conta da luta, do processo, porque naquele momento, imagina, não tinha o que se pensar. E eu não queria mais violência. Chega, tem limite. A gente até suporta, tem uma resistência à dor, mas tem que dar limite para ela. A gente dá um limite no sentido assim "não, você não pode fazer isso desse jeito e está tudo bem".
O POVO - No seu processo judicial, você ofereceu como alternativa à não retificação dos documentos o suicídio assistido...
Neon - Eu não uso "suicídio", uso "morte assistida". Porque suicídio parte de outro ponto. Eu queria dizer para o Estado: "Você está me matando. Então mata com dignidade". Você pode fazer o que está fazendo, é a sua missão, o seu processo de não capacitar os policiais, não capacitar os atendentes do SUS, não capacitar os profissionais de ponta do serviço público, não permitir que essas pessoas acessassem uma série de direitos... E essa retificação, para mim, hoje, é o ápice de acessar o direito. Eu vou existir enquanto pessoa na condição que eu me reconheço.
Era empurrar para o Estado a bucha que ele enfiava na gente. É dizer para o Estado: "você faz [a morte]. Mas eu quero que você nomeie. Eu quero que você assuma que faz isso". E não era por mim. Era por nós. Podia ter ido, não ter acontecido [a morte assistida].
Mudou a forma como era tratada a situação, porque, inclusive, recebi muitas críticas de pessoas trans que diziam: "A gente precisa de protocolo, a gente está ali pela questão da saúde pública". Eu disse, "não, a saúde pública é basilar, está na Constituição: ninguém será obrigado a nada a não ser em virtude de lei".
E não tem lei para isso: usar o protocolo transexualizador do SUS [que obriga a existência de um laudo psiquiátrico para permitir a realização de cirurgias de transgenitalização] para atrelar à pratica jurídica [da retificação de certidões de nascimento para pessoas trans] era muito perverso.
Quanta gente morreu, quanta gente sofreu, quanta gente passou por angústia, quanta gente se entopiu de medicamento? Sabe, foi muito perverso. E daí deu a dimensão. Por isso que eu falo assim: olha, não ia bater palma, ninguém vai bater palma para nada, porque olha quem ficou para trás.
O POVO - Então essa solicitação da morte assistida seria a coroação de todas as violências que o Estado cometeu, por ação ou omissão, por anos?
Neon - E que ele produz. Na ausência de política pública, na ausência dessas assistências. E aí, quando foi falar que saiu uma Adin [Ação Direta de Inconstitucionalidade], e dizer que desde 1988, que o autodeclarado bastava? Quanta gente morreu, quanta gente sofreu, quanta gente passou por angústia, quanta gente se entopiu de medicamento? Sabe, foi muito perverso.
E daí deu a dimensão. Por isso que eu falo assim: olha, não ia bater palma, ninguém vai bater palma para nada, porque olha quem ficou para trás. E, mesmo assim, de ver esse mutirão, como ele foi acessado, como as pessoas se envolveram, como ele foi engajado... Eu fiquei muito emocionada de saber que foram 11 dias.
O POVO - Olhando para o mutirão, desde o processo de 2018 [do Supremo Tribunal Federal, que decidiu que pessoas trans poderiam alterar documentos sem decisão judicial], o que você acha que pode vir no futuro para pessoas trans, no positivo e no negativo?
Neon - Acho que vai caminhar, porque a gente tem que fazer, e nunca mais, nunca mais, dormir no barulho do inimigo. Não se dorme no barulho do inimigo. Tem que aprender a linguagem dele, para ele aprender a tratar a gente, mas é isso: não se dorme no barulho do inimigo.
Para preservar a fala da entrevistada, alguns termos fortes foram mantidos
Importante pontuar que minha mãe gestou uma menina. Quando minha mãe está grávida, ela passeia com as minhas tias e diz assim: "minha filha vai ser tão linda quanto essa boneca". Eram os manequins das lojas. Eu sempre perguntava para a minha mãe, depois que a gente superou essa fase de entender algumas coisas: "como foi para você quando eles disseram que não era a sua filha?"
A maioria da comunidade possui grau de parentesco com seu Sebastião, sendo filhos, netos, bisnetos, primos, sobrinhos. As únicas pessoas que não possuem esse laço sanguíneo são os não-índios que se casaram com integrantes da comunidade.
Infância e transformação
Importante pontuar que minha mãe gestou uma menina. Quando minha mãe está grávida, ela passeia com as minhas tias e diz assim: "minha filha vai ser tão linda quanto essa boneca". Eram os manequins das lojas. Eu sempre perguntava para a minha mãe, depois que a gente superou essa fase de entender algumas coisas: "como foi para você quando eles disseram que não era a sua filha?"
E ela falava assim, ela mudava o assunto e dizia: "era um sábado, às seis e meia da tarde, e o céu mudou. Ele ficou cor-de-rosa alaranjado". Ela é de matriz africana. O céu alaranjado e rosa o céu de Euá, a divindade, no Candomblé, da inteligência. E ela sempre mudava o assunto, ela desviava a conversa.
Quando, com dois anos e meio, eu me afirmo: "eu sou uma menina". E aí começam os processos de cura. É cura no Espiritismo, cura no Candomblé, cura na Umbanda... É a cura no exorcismo, é a cura de todos os jeitos. Em alguns momentos eu vou para um processo de surra, né? Meu pai começa a me bater em casa. Com quatro anos eu me lembro da primeira vez que ela me leva para a faxina. Literalmente eu limpava, junto com ela, rodapé com escova de dentes.
Eu sabia o meu lugar... Inclusive, havia entendido, só posteriormente eu entendi, porque eu tinha dois outros irmãos anteriores a mim, e depois vai nascer a primeira mulher cis. Mas eu entendi que ela me levava para a faxina para me proteger das violências. Era o risco de não sobreviver, até porque, com oito anos de idade, meus irmãos tentaram me matar efetivamente.
Então, são coisas que eu tenho pontuado, que para mim são muito importantes, porque as pessoas têm usado muito o processo, tipo, "quando você transicionou?". Eu não transicionei. Eu estou em transição. Eu tenho um percebimento. A transição é um processo contínuo: a humanidade está em transição, as pessoas estão em transição, os seres vivos estão em transição, sendo bem anti-especista, para pensar: o que é uma transição? Transição de casa, transição de emprego, transição de cabelo, transição de não sei o quê... Tratamentos que você faz, é um processo de transição, de cura, né?
Se você pensa no tratamento do câncer, a questão chave sempre é o percebimento: quando você tem informação do que acontece. E as pessoas trans estão o tempo todo em percebimento, elas estão se percebendo no Universo a partir do que lhes é negado enquanto possibilidade de existência.
Nesse mesmo período eu vou pela primeira vez para o Centro de São Paulo, para a rua, aí conheço a área de prostituição... Conheci a prostituição muito cedo. Eu não fiz a prostituição, importante pontuar, mas atuei junto à prostituição como "olheira" das cafetinas. Porque, vinda de candomblé, eu já entendia o pajubá. "A mona cocica a indaca odara para azuelar os ojus dos ocó e dos amapô". Ou seja: "a mulher fala muito bem o pajubá, para poder, de alguma forma, sacanear mulheres e homens cis".
E, lógico, precisavam de alguém que conhecesse esse código da rua, da marginalidade, e tinha um detalhe muito importante: como eu era muito sóbria, nunca bebi nem nada, eu ganhei esse papel de ser a olheira nas esquinas. Para ver quando a polícia vinha, quando bandido vinha, qual era a situação acontecendo, e é isso. E a gente já tava vivendo o boom da Roberta Gambine [conhecida pelo nome artístico Roberta Close, modelo e atriz trans que iniciou sua carreira na década de 1980], por exemplo, entre tantas outras: tinha o Clube do Bolinha, tinha o Silvio Santos com o "Eles e Elas", o trabalho das transformistas etc.
Imagina: 12 anos, conhecendo a prostituição, conhecendo a rua, trabalhando no gabinete do prefeito debaixo da escada, como mensageira, patrulheira mirim... Depois eu fui para o Liceu, que era na região da Luz, e meu pai diz "não, na luz você não vai que lá é lugar de puta". Ou seja: ser a filha, jamais! Mas, correr o risco de ser puta... De certa forma eu já sabia, porque eu já andava na noite... Com 14 anos eu já comecei a frequentar com uma certa regularidade o Centro de São Paulo.
Aí eu entro nesse colégio, fui fazer Publicidade e Propaganda, e as pessoas decidem... Foi a primeira coisa que aconteceu. Numa aula, eu me lembro, estou refazendo aula de Física, vendo tabela periódica... Física e Química, e aí alguém fala: "a gente não gosta do seu nome. Neon combina com você".
As pessoas decidiram que eu seria Neon, porque elas não gostavam do nome que a minha mãe gostava. É porque isso faz sentido na hora de explicar a retificação. Neon grudou. Ou como uma bênção ou como uma mandinga bem feita, eu prefiro pensar... Na rua também grudou Neon, "Neon combina com você".
É bom lembrar que eu nasci na ditadura e fui criada na ditadura. Eu já trabalhava. E aí, quando eu saía e quando tinha geral, às vezes, da polícia, eu tinha que apresentar holerite e documento. Para o bandido, eu tinha que apresentar a mão cheia de calos. A faxina, com a minha mãe, novamente estava ali me protegendo de tantas coisas.
Eu acompanhei o boom da cocaína na rua, que é a droga que vai mudar todo o cenário para a prostituição de mulheres trans e travestis. Também acompanhei o advento do HIV/Aids, no mesmo período em que em São Paulo acontecem as operações de extermínio, como Rondão, Riquete, Arrastão... Depois tudo é meio que fundido na ideia da Tarântula. A Riquete acho que é a mais perversa porque leva o nome do delegado.
E é um fato muito importante que eu vou trazer aqui, por que, para que isso nunca se repita: eu só tinha esse salário. Roupa eu tinha que fazer trabalho extra, ou pegar de alguém, doação, se virava... E também eu já estava aficionada em moda, já lia as revistas de moda, lembro quando eu peguei a primeira revista de moda, que eu via todas essas coisas que te deixam... Só favorecem, no âmbito de tipo "o que eu vou ser quando crescer".
Porque, quando a gente cresce, "tem, mas acabou". O trabalho, para a pessoa trans, "tem, mas acabou". Lógico, estamos indo para essa mudança efetiva.
É bom lembrar que mulheres trans e travestis não entravam em "boate gay". O movimento era "gay". Nós éramos a extrema marginalidade do processo. Só podia quem era transformista, e muitas travestis usavam o nome masculino para dizer que eram transformistas, para poder ter alguma sobrevivência.
E tinha que fazer tantas coisas, era uma coisa assim, era muito desonesto, era muito desumano. Você tinha que ser a melhor filha, você tinha que ser a melhor aluna, você tinha que ser a melhor profissional, e só existir no espaço de tempo reservado... Além de que você era amaldiçoada.
Nesse sentido o Candomblé me salvou muito, assim, porque foi ali que eu entendi que o corpo é instrumento do gênero. Ver a pessoa ser iniciada, um homem cis preto, enorme, recebendo Oxum Ossain [possivelmente Oxum Ipetu, qualidade de Oxum ligada ao orixá Ossaim ou Ossãe], que é uma qualidade de Oxum muito doce, muito suave, e aí todo o mundo receber, no terreiro, Oxum, que o invisível, o imaterial, se personifica, se materializa num corpo que não era lido como feminino... É realmente, gente, muito perverso querer controlar a existência para além da forma idealizada.
Eu sou do ABC [parte da região metropolitana de São Paulo (SP), que engloba as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul], sou de São Bernardo, luta operária etc, tudo acontecendo ao mesmo tempo, e aí já entendendo o que é o processo político, inclusive, porque já estou no gabinete do prefeito, assistindo a tudo isso... A gente está falando da ascenção do PT, da ascenção do Lula, da construção da luta operária, de uma série de construções... Da luta estudantil, também, que está ali, imagina... Eu vou fazer, depois, um colégio privado... Eu só tinha salário para pagar o colégio. Minha mãe faz uma bolsa para ajudar na alimentação das outras crianças, na manutenção da casa...
Na rua, também, eu aprendi que eu tinha competência para estudar. Que eu tinha competência para o trabalho formal, e que eu que era corajosa. Todo o mundo se prostituía, todo o mundo saía...
E com essa trajetória, e eu vou me formar em 1988 em Publicidade - eu nunca fui contratada por uma agência. Então eu nem mandei "ah, porque eu me mantive no mesmo emprego"... Eu trabalho no mesmo espaço há 40 anos. Eu conheço as mesmas violências há 40 anos. Elas amenizaram, mas elas estão ali presentes.
Porque, eu tenho dito e repito, o cissexismo antecede a transfobia. Essa ideia de que o gênero das pessoas cis de alguma forma é mais legítimo que o gênero das pessoas trans, ou inclusive a ausência de gênero que algumas pessoas tem reivindicado. E a gente não está falando de nulidade, a gente está falando de outra possibilidade. Então, nesse processo todo, eu já conhecia tudo.
É nessa construção mesmo, de se perceber no mundo, e eu me lembro de outra coisa que ela narra, as tias principalmente narravam, que elas falavam o seguinte, quando eu nasci, muito pequena, as tias por parte de pai diziam assim: "essa a Vó Júlia não carregaria, porque nasceu preta". A minha avó, portuguesa, ou descendente já de portugueses, casada com um homem negro retinto, não carregava as crianças que nasciam de pele escura.
Eu era uma aluna muito boa, apesar das mazelas, porque assim, é isso... Eu vou pra EMEI muito cedo, três anos e meio, porque a minha mãe negociava vaga com fazer faxina na casa da diretora, de algumas professoras... Eu faço a primeira série sem livro, a gente era muito pobre, de uma pobreza extrema, então eu não tive material didático. O livro, a cartilha mesmo, a "caminho suave", porque caminho suave é para as pessoas que têm privilégios. A "caminho suave" não chegou pelo Estado, e daí minha mãe teria que comprar, só que ela tinha duas outras crianças que me antecediam, mais outra que já estava vindo, mas eu nunca vou esquecer, porque, para conseguir fazer a lição, eu ia para a casa das outras crianças e copiava. Às vezes eu copiava mais de uma lição para adiantar, e já fazia. Então chegava na hora de aula, brilhava. Não precisava estar ali, virava o caos.
Mas, eu me lembro de uma vez, eu voltando da casa de um aluno, meio que ultrapassei o limite de horário, eu tou voltando pela praça, e eu dou de cara com o meu pai. Eu tenho sete anos. Meu pai... Eu tenho o lóbulo puxado, é esse aqui [pega o lóbulo esquerdo]. Porque meu pai me encontra e diz: "o que que você tá fazendo na rua?". Me diz: "você não presta, mesmo". Não questionou o que eu fazia. Ele me levou, levantada por essa partezinha aqui, até em casa, me maldizendo porque eu estava atrasando o horário dele para o trabalho.
Mas o importante é que: já perto do final do ano, minha mãe me deu a cartilha. Então, assim, para mim foi fascinante ver que alguém não tinha desistido de mim. Lógico que tinha que ser ela. Então se tornou uma referência muito forte, mas já era, desde criança, com essa coisa de proteção... Tanto que, quando ela saía de casa, e eu ficava sozinha, eu tinha a impressão de que alguém tinha diminuído a luz. Como um dimmer, sabe? Então, quando ela voltava, a luz voltava, levou um tempo, muitos anos de terapia, para entender isso.
E a questão racial foi reforçada, na segunda série, lá com oito anos, quando outras crianças disseram: "meninas" - porque eu ficava com as meninas - e uma menina diz: "a gente não quer mais andar com você porque você tem cor de sujeira. Você tem a cor do papel que embrulha os cadernos". Então não ousem me chamar de parda.
E eu vou para casa e digo para a minha mãe: "me chamaram disso". E ela diz "você não é isso". E aí, para ajudar, mamãe foi me mostrar o que era pardo. A bendita da galinha de cabidela, ou de molho pardo. Então você imagina uma criança assistindo à mãe pegar uma galinha, cortar o pescoço, colher o sangue, coalhar com vinagre, para fazer o molho, que não era ela. Desde então, até hoje eu falo: eu sou uma mulher negra de pele não retinta ou de pele clara.
Então eu não tinha, por exemplo, a disforia: quando, com oito anos, por exemplo... A pobreza era extrema, mesmo, tá, gente? Não é faz de conta. É pobreza. Eu não tinha roupa íntima. Era só a roupa e pronto, vai para a escola. E aí, na segunda série, com oito anos, o zíper grudou no prepúcio. Eu passei o dia, dentro da escola, com essa dor, sem entender o que era. Quando eu cheguei em casa, a minha mãe "você está passando mal, você está verde, o que você tem?". Ela vai olhar e fala assim: "o zíper grudou no pipi. Quem vai resolver isso é seu pai". Meu pai que só me agredia, imagina o pânico. Ela falou "ou é isso, ou você vai para o hospital, para cortar".
Só que tem uma coisa muita importante: ele soltou, nunca houve a disforia, porque eu assistia um anime chamado "A Princesa e o Cavaleiro", com a princesa Safira. Então eu entendi, a partir da Safira, que a minha vida era igual: eu tinha nascido menina, mas, de alguma forma, minha família era ameaçada, se eu não fizesse o papel de menino. Safira resolveu o problema para mim, como toda coisa lúdica resolve o problema para uma criança.
Não havia disforia com o meu corpo. Mesmo com 12 anos, quando eu conheço a primeira mulher transexual - e ela usou esse termo, eu me lembro - o nome dela é Grace, inclusive nordestina, trabalhando numa feira hippie de São Bernardo, eu fiquei fascinada com aquela mulher. Ela tinha uma cara que eu não definia se era feminina, masculina, o que era aquilo... Tinha chuchu - chuchu, para quem não sabe, é barba - e eu ficava olhando. E o peito. E eu fiquei passada que aquela pessoa tinha peito. Só que é isso, muito pirralha, novinha, abusada, olhando a outra, que tinha... Se eu tinha uns 12, ela devia ter uns 30 e poucos... Ela olha pra mim: "o que que foi? Você nunca viu peito?". E aí ficou um climão, eu fiquei assim: "eu vou apanhar aqui" [risos].
Eu não parei de estudar. Com 12 anos eu já estou trabalhando como "patrulheira mirim", vestindo uma farda marrom, me tornando invisível... Invisibilidade é estratégia de sobrevivência. Porque eu precisei trabalhar não só por mim. Eu sou de uma família de 10 filhos, eu sou a terceira. Aos quatro eu já sabia o que era cuidar de uma criança. Aos quatro eu aprendi a "ser mulher" lavando louça, areando louça, trocando fralda, lavando fralda...
Os meus irmãos homens iam brincar, jogar bola... Embora nós também participássemos dos trabalhos domésticos, mas ficava, reservado a mim, os trabalhos domésticos, como lugar também de proteção, porque eu estava o tempo todo junto à minha mãe. Então assim, eu não brinquei de boneca, para qualquer pessoa que tiver essa fantasia, mas mal tinha boneca naquela casa.
Inclusive, em determinado momento eu ganhei, numa rifa, um carro a pilha, que era o Landau. Que era o fascínio de todo o mundo, menos o meu. O que eu gostava mesmo era de desenhar, mas como eu comecei a rabiscar as paredes, as surras com o meu pai se duplicavam, sei lá, se multiplicavam. Para ter uma ideia do que é isso, aos quatro anos eu já era proibida de falar e de mexer as mãos em casa. Imagina essa pessoa sem mexer as mãos. Era essa a situação.
Tem um fato que eu narro poucas vezes: em 2000 pra 2001, eu resolvi que ia existir em plenitude. Eu morava nos fundos de uma empresa, era uma clínica odontológica. Entraram para assaltar a clínica, e eles perceberam que tinha mais alguma coisa, que tem a casa, porque a clínica estava fechada e eles não tinham acesso. Eles batem na minha porta, eu abro e tinha uma arma na minha cara. E nisso eles entram, percebem que eu tenho eletrodomésticos, algumas coisas, e vão assaltar a casa.
Eles me amarram, me amordaçam, e um deles fica me vigiando. Em determinado momento ele fala assim: "essa porra não é mulher". E eles vão me violentar. Eu me lembro até hoje, a frase que mais me marcou, porque um deles, no princípio cristão, falava assim: "eu não vou gozar, porque não vou jogar filho fora nesse lixo".
Eles foram embora, a casa foi revirada do avesso, eu desisti de existir. Porém, em 2014 eu disse: "não, é tudo ou nada. Eu existo, eu sou quem eu sou". Já conhecia tudo, tinha passado pela prostituição, eu era entregue pelas cafetinas, negociada com os policiais, para não fazerem agressão, para eles me usarem para os seus prazeres... Eu só fui transar, mesmo, de forma consensual e com prazer, aos 26 anos. O resto tudo foi violência. De não poder frequentar banheiro, de quando entrava no banheiro do trabalho os caras vinham atrás...
Na escola, a gente tem um fenômeno que acontece nessa época da ditadura, que é sobre pessoas trans: "joga pedra na Geni, maldita Geni". Eu era Geni na fila da escola, eu era Geni quando descia para almoçar. Chegou uma hora que eu não queria nem descer mais para almoçar, eu não almoçava. Porque a primeira pergunta que era feita, mesmo eu usando uma farda, era "você está de calcinha?". Ou o cara que fazia a segurança, que falava "eu quero te dar uma carona". E na hora de dar carona tinha o aliciamento.
Além de falar dos tratamentos de cura, que eu tive o Candomblé - que eu vou sempre bater cabeça para Laroyê Eparrêi Oyá - nesse processo. Então eu já conhecia todos os "nãos". Quando eu decidi existir de fato, em 2014, eu falei assim: "agora não tem arrego: preta, pobre, trans, no Brasil"... E já olhando os dados, já questionando, a gente vai ter o marco histórico...
Porque, a partir de 2016, que a discussão da violência com pessoas trans muda, na hora que eu vou pedir mudança de nome e gênero [na certidam de nascimento], me acusando de ser patologizada, e sendo a primeira pessoa trans a falar presencialmente na OEA [Organização dos Estados Americanos], que é onde o processo chegaria depois de cinco anos. A roda se inverteu, porque, quando Exu corre, as coisas acontecem. E aí, nesse processo, é sobre isso: ou eu ia existir, ou esse Estado tinha que assumir a responsabilidade sobre as violências às quais nós, pessoas trans, somos submetidas o tempo todo. Ter a consciência, a responsabilidade.
Porque eu me amo, e eu quero ter a integridade física desse corpo... O corpo, a gente aprende nos terreiros de Candomblé, o corpo não se viola. O corpo é a casa da existência. O corpo é a casa de Orixá. E eu sempre digo isso: oxalá se esse País tivesse sido constituído na matriz africana e entendido que não se viola um corpo. Talvez Dandara estivesse viva. Talvez tantas outras, como as que eu assisti ali na ditadura, nas operações de extermínio, não é fácil você assistir uma travesti preta ser executada, você tendo 16 anos, e volta para a vida comum. Vai ser a melhor filha, a melhor profissional, vai ser tudo. Porque você, de verdade, "a gente vai executar".
Naquele momento eu estava pronta, as pessoas me perguntavam: "qual era o método?" como eu queria... É perverso, porque muita gente estava torcendo pela morte assistida. Mas, numa ação inédita, o meu processo, eu trouxe para os autos, que eu não tinha disforia nenhuma, e inclusive a classe médica, clínica não estava habilitada para fazer isso, porque não tinha domínio da vivência, o Calligaris [Contardo Calligaris, colunista] escreve na Folha [de São Paulo] sobre o meu caso, que é praticamente um laudo e, por consequência, sai, primeiro na OEA, e na sequência sai a sentença favorável.
Pela primeira vez usou-se o direito ao autorreconhecimento, e pela primeira vez se usou a Constituição do Brasil. Isso é muito sério: a Constituição é de 1988. A primeira tentativa da Roberta Gambine é de 1990. Ela só conseguiu em 2005. Em 2006, eram produzidos os Princípios de Yogyakarta, dando diretrizes da aplicação dos Direitos Humanos na questão da identidade de gênero e na questão sexual, tendo Sônia Corrêa, uma brasileira, como presidente dessa comissão. Em 2006 Lisberta era assassinada em Porto. Uma brasileira foi executada, com rigor de leis abraâmicas, por 14 jovens, e deu a lei de identidade de gênero mais avançada do mundo, em Portugal. Em 2017, Dandara Kettley é executada, aqui, e o Brasil segue matando mulheres trans e travestis. A garantia do nome é certeza de que a gente não vai ser apagada, porque nós teremos nomes em lápides.
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