As desigualdades no acesso aos direitos fundamentais, com destaque ao direito à segurança, fazem com que a democracia já esteja em falta nos rincões de pobreza no Brasil.
Na avaliação do jornalista Caco Barcellos, após 50 anos de carreira cobrindo o cotidiano das pessoas em reportagens, mesmo comparando com o período da Ditadura Militar, guerras e conflitos internacionais, a violência nas favelas brasileiras traz um contexto de horror absurdo.
Para ele, longe dos corredores do poder político e empresarial, a falta de serviços básicos já é motivo de sofrimento nas periferias, comunidades rurais e na Amazônia.
Ao O POVO, o jornalista conta as experiências de fazer Jornalismo na pandemia e compartilha relatos sobre a violência policial e a falta de acesso à Justiça nas comunidades pobres do Brasil, em que o tratamento dado aos moradores - seja honesto ou não - quase sempre é pautado pela suspeita.
Ou pior: da desqualificação moral sem a devida apuração.
Caco ainda enaltece a função do repórter de rua como primordial no combate à disseminação de informações falsas. “Eu acho que a reportagem é, sim, uma ferramenta a mais, eficaz no combate aos fabricantes de mentiras das redes sociais. E precisamos ter consciência disso”, disse ele após participação na Trakto Show, evento sobre inovação e empreendedorismo realizado em Maceió, que O POVO acompanhou.
A minha dificuldade é sempre sobre não interessar o que eu mesmo penso dessas coisas. Interessa o que as pessoas pensam e a gente tem obrigação de retratar. Eu percebo e concordo que a democracia brasileira, no princípio da dignidade e da prosperidade, sobretudo, é para alguns
O POVO - Na relação do Jornalismo com a democracia, como o senhor observa esse momento que vivemos no Brasil, em que muita gente fala que a democracia está ameaçada?
Caco Barcelos - Na nossa atividade do Profissão Repórter nós focamos nas famílias brasileiras. O que acontece nos corredores de Brasília, e que tem a ver com a origem das notícias, há uma cobertura gigantesca, excessiva.
Eu quero ver é lá nas famílias, o que elas estão achando de cada decisão de governo. Minha atenção, nossa atenção no Profissão Repórter, é menos do que nós pensamos sobre a realidade sociopolítica brasileira e mais sobre o que as famílias estão pensando.
As pessoas são sensíveis aos acontecimentos e acho que, infelizmente, a democracia está sob risco. Eu fiquei muito impressionado na Amazônia quando mataram o nosso colega
Eu, como cidadão, imaginava que a comunidade ficaria muito indignada, pois dois defensores da riqueza deles, que é a própria Amazônia, dos rios, das florestas, aceitando a situação como se fosse uma tragédia. Até houve muito disso por lá, de dizer que “nós não somos isso, isso foi uma tragédia”.
Mas isso não foi uma tragédia, é um ato com começo, meio e fim, ao longo de um longo processo de descaso com coisas essenciais. Alguém com arma na mão, que se sente no direito de ocupar o que não é dele, é essencialmente desonesto. E os desonestos estão ganhando poder, força e militância.
É assustador. Mas eu penso pela cabeça das pessoas que a gente ouve hoje e por perceber que não há reações organizadas das pessoas mais simples, existe uma aceitação por parecer acontecimentos do cotidiano que eles não estão acostumados a interferir.
OP - Então podemos compreender que existe um risco nessa democracia política, de representação. Mas que a democracia real, de oferta de direitos ao cidadão daqueles rincões mais afastados, já está em falta…
Caco - A minha dificuldade é sempre sobre não interessar o que eu mesmo penso dessas coisas. Interessa o que as pessoas pensam e a gente tem obrigação de retratar. Eu percebo e concordo que a democracia brasileira, no princípio da dignidade e da prosperidade, sobretudo, é para alguns.
Mas as pesquisas mostram que para as pessoas mais simples, no que é relacionado a valores, elas dão a maior importância a Deus. Eu fico ali vendo uma injustiça incrível abatendo uma família, mas eles agradecem a Deus. Quem vê de fora se questiona, “como assim?”.
Mas é que poderia ser pior. No caso de uma família com dois filhos, um deles foi morto pela Polícia, a Polícia não é obrigada a saber que o filho não era bandido. “Mas imagine se matam os dois?”. “Graças a Deus só mataram um”.
Então Deus acaba adquirindo uma relevância muito superior na democracia ou na falta dela. É o que eu observo nas famílias mais simples. Como é no caso dos desempregados, com o valor dos salários após a reforma trabalhista afundando, “mas ainda bem que Deus ajuda e tem esse pouquinho para que meus filhos não passem fome”.
E aí isso fica longe daquilo que eu imagino que seria razoável para você refletir. Para mim, isso são fatos e episódios para indignação e não para aumentar minha fé religiosa. Mas o brasileiro dá muita importância aos seus valores.
Em primeiro lugar Deus, depois a si próprio e em terceiro a família. Antes da família eu, e antes de mim, Deus. Claro que existem perspectivas diferentes em outros ambientes, mas onde a gente circula no nosso programa, sempre atentos à maioria.
OP - O senhor sempre foi um profissional que andou em todos os lugares. E a pandemia representou um novo desafio para a reportagem. Como foi a cobertura da calamidade, especialmente na situação em Manaus no início de 2020?
Caco - Foi muito sofrido para mim - evidentemente mais sofrido para os brasileiros que sofreram e perderam seus parentes - porque foi a primeira vez na minha carreira, em 50 anos, que saí das ruas. Eu fiquei confinado.
Primeiro agradecido à decisão da TV de nos proteger e, segundo, em respeito aos outros também porque naquele momento da pandemia mais aguda - porque ela continua hoje - o exemplo de usar máscara e manter o distanciamento social tem a ver com o princípio da honradez de pensar no outro.
O que também é um elemento democrático, pensar também no outro e não de maneira egoísta. Eu trabalhei a distância, mas os nossos repórteres estavam em atividade.
Ganhamos uma indicação ao Emmy Internacional 2021 (com reportagem que acompanhou a exaustiva rotina da equipe médica do Hospital Geral de Vila Penteado, em São Paulo, no combate à pandemia da Covid-19).
Estive ausente das ruas mas continuei trabalhando, convencendo médicos a aceitarem câmeras nos seus corpos, com eles narrando pelo caminho deles. E nossa turma guerreira, sempre no front, os jovens não saíram das ruas na pandemia inteira.
Senti-me honrado e representado por eles, sofrendo enormemente com esse sofrimento em Manaus. Tivemos de buscar oxigênio da Venezuela, a quem o governo critica tanto. De lá veio a salvação.
Mas é impressionante quão horrorosa é essa doença, de fazer pessoas morrerem por falta de ar. No futuro ainda vamos lembrar disso como um episódio único, descomunal.
Estar bem informado é um passo. Você está se informando por quem? Onde ele fez essa pesquisa? Que trabalho ele desenvolveu? Assim como quando a gente vota nas eleições e questiona o que o candidato já fez pelo Brasil depois de tanto tempo, o que vai para além do discurso
OP - Vivemos hoje numa sociedade envolta a narrativas. Como é que o repórter de rua, que vê a vida como ela é e está, reage às lutas das narrativas contra o fato?
Caco - Estamos na guerra. Eu acho que a reportagem é, sim, uma ferramenta a mais, eficaz no combate aos fabricantes de mentiras das redes sociais. E precisamos ter consciência disso. Quem está somente atrás do computador pode fazer um trabalho maravilhoso, mas existem aqueles que usam a rede social para desqualificar o trabalho alheio.
São preguiçosos que ficam o tempo todo destruindo quem faz. Acho que é nosso dever nesta altura unir quem faz um trabalho sério, com apuração criteriosa e rigorosa, tentar trabalhar mesmo como se fosse campanha.
Se pudesse dizer pro telespectador, leitor, ouvinte para que vissem a quem eles estão dando atenção, dar uma olhada na fonte que está pesquisando. Tem certeza de que essa é uma fonte que merece que você absorva para traçar melhor o seu destino? Cada passo que a gente dá é fundamental para a vida.
E estar bem informado é um passo. Você está se informando por quem? Onde ele fez essa pesquisa? Que trabalho ele desenvolveu? Assim como quando a gente vota nas eleições e questiona o que o candidato já fez pelo Brasil depois de tanto tempo, o que vai para além do discurso.
E nós, repórteres, somos pagos para apurar. A rede social está cheia de profissionais que não ficam 24 horas, como eu fico, apurando, captando informações. Às vezes, o cara é um médico, engenheiro, que dedica 10 horas, 12 horas para sua profissão e a segunda é ser comunicador.
Os honestos, bacanas, são imprescindíveis, pois eles compartilham os seus conhecimentos, viram um comunicador essencial. Mas também existe aquele que não tem classificação, qualificação e sua única função na rede é destruir o trabalho alheio com mentiras.
Um desafio que temos é convencer a quem nos acompanha que estou arriscando minha vida para te informar. Tô lá no meio de um combate entre Polícia contra o crime… A bala pode sobrar para o jornalista, pois ela não pergunta se você é traficante, policial, repórter ou morador.
A bomba muito menos. Mas fazemos isso por consciência de que alguém tem que contar a história verdadeira. E às vezes fico chateado de saber que um conjunto de colegas profissionais maravilhosos num empenho danado, mas tem gente que prefere ouvir o mentiroso que nem perto chega.
Fica ali no computador mentindo. Eu gosto de ter cuidado também porque parece que estou contra o trabalho do computador, que é imprescindível e oferece uma retaguarda importante. Mas entendo que esse gênero reportagem está um pouco esquecido. E acho que é ferramenta para combater a produção de mentiras.
OP - A crise econômica que impacta muitas empresas de mídia contribuiu para diminuir a quantidade de profissionais disponíveis para trabalhar nessa linha de frente da reportagem? Ou há uma adaptação da disposição dos profissionais com o avanço das novas tecnologias?
Caco - É tudo misturado, mas é preciso cuidado e, sobretudo, avisar às nossas empresas e chefes que o melhor Jornalismo custa barato, no meu modo de ver. Acho que pode se agregar ao Jornalismo caro, que engloba novas ferramentas tecnológicas.
Mas o nosso, que é caminhar e gastar sola de sapato… os olhos não gastam, os ouvidos também não, isso não custa tão caro. Somos privilegiados por poder ir atrás das histórias onde as histórias estiverem acontecendo, de pegar avião, pagar hotel, alugar um barco, passar 20 dias gastando.
Mas também é possível com dois quarteirões de deslocamento fazer um Jornalismo de primeira linha. Quem disse que a boa história está sempre longe? Existem boas histórias que podem estar na porta de casa. Depende da sua sensibilidade.
Na reportagem, o legal é aproveitar o privilégio de conhecer uma pessoa nova todo dia, enriquecendo o seu trabalho. Eu adoro aprender na rua. Se eu vou na rua repetir o que eu já sei, qual é a graça? Se for assim, nem precisaria falar com ninguém. Sempre é possível aprender na rua
OP - Sobre experiências com Jornalismo de guerra, existem muitos relatos de jornalistas famosos sobre os desafios envoltos nessa cobertura. Mas com base no que você já viu, a guerra às drogas nas favelas brasileiras é comparável ao horror de uma guerra? O quanto isso pode abalar o profissional e a pessoa?
Caco - A minha experiência maior não é como correspondente de guerra clássico. O Brasil não possui nenhum, assim como são os europeus e povos imperialistas que promovem muitas guerras, como Estados Unidos.
Na Ucrânia, por exemplo, já estão em guerra há mais tempo, mas o Jornalismo ocidental só prestou atenção mais recentemente. Mas, por outro lado, temos uma guerra permanente. Nossa guerra é 24 horas por dia, um grande produto de violência, coisa única no mundo.
E isso tem um peso. Pensando por uma ótica diferente da guerra clássica, temos, sim, o horror. Acompanhei no Oriente Médio, Israel, as Intifadas, Irã-Iraque, muitos levantes armados na Argentina, Colômbia. Mas isso vai se aproximando da nossa eterna guerra.
Também trabalhei nos tempos da ditadura militar e também tínhamos violência, mas agora é muito maior. E isso tem um preço alto. É um horror ver em Gaza como fui, pessoas mortas que estavam mortas dentro de escombros.
Mas, agora, nas favelas do Rio de Janeiro, estão adotando uma ação chamada “Troia” em que a Polícia invade de madrugada, ocupa uma casa em que os cidadãos estão dormindo e eles ficam lá até de manhã.
Quando começa o movimento da rua, eles têm os informantes deles e atiram em quem eles alegam ser do tráfico de dentro da casa do trabalhador. Chamam isso de “Troia”. É uma ação totalmente inadequada, um absurdo.
Ninguém pode usar um fuzil, com poder de alcance de 500 metros num ambiente que não tem horizonte de dois metros, como naquelas ruelas é um labirinto, o ideal seria usar armas leves… Por isso, há casos em que o tiro é disparado para atingir um inimigo a dois metros, mas que atinge a mulher grávida a 400 metros.
E esse é um problema também do tráfico, mas a Polícia tem o dever de ter mais cautela, diferentemente do criminoso. Espera-se que o Estado tenha um comportamento decente. Mas vejo que as disputas envolvem desonestidade, disputa de dinheiro do crime e a sociedade fica enganada.
Vemos um monte de chacinas no Rio de Janeiro, mas não aconteceu nada de diferente na segurança pública. Uma história que continua sempre sendo a mesma de insegurança, de incerteza.
OP - É quadro opaco, que não condiz com esse maniqueísmo de luta do bem contra o mal?
Caco - Há uma mistura. Quem decide são os adultos poderosos, mas quem morre são os jovens de baixa renda. Alguns são, sim, traficantes, outros, não. Mas todos morrem juntos. E estar perto disso, vendo que mortes atingem famílias inocentes, no sentido que são trabalhadores, dá para reconhecer.
O criminoso quando vai para o tráfico conta com a possibilidade de morrer. E a família também. Tá na cota de risco, sabe que pode viver pouco. Mas quando a pessoa acorda às 5 horas para trabalhar, e, chegando em casa às 10 horas da noite, leva um tiro na cabeça…
As pessoas veem isso de perto, depois vem o noticiário e há uma diferença na forma como o resto vê isso. É impressionante como as autoridades não têm o menor compromisso em provar que agiram corretamente nas ações em que há mortes. Acho que os colegas jornalistas deveriam cobrar mais.
As pessoas perguntam pouco. Prove. Vemos várias autoridades desqualificando moralmente aqueles que morrem, gente de Brasília fazendo isso, sem ter a capacidade de ir ao local visitar o parente no lugar onde 28 pessoas foram mortas.
Não visita, nada faz para impedir e ainda desqualifica moralmente, chamando a família de bandidos. Me nego a usar “passagem pela Polícia” na apresentação de um morador dessas comunidades, pois quando um engenheiro morre num acidente ou assalto, a imprensa não diz sobre “o engenheiro que não tem passagem pela Polícia morreu hoje”.
Mas se for filho de trabalhador, de baixa renda e negro, precisa dizer, ainda enfatizando que ele morreu durante uma troca de tiros com a Polícia. É uma narrativa muito comum. Há nesse contexto uma preguiça, falta de investigação, não há ciência. Tem brutalidade.
E a prestação de contas é uma coletiva, na qual a autoridade fala o que bem entende, alguns nem aceitam questionamento… E autoridades estão ali para prestar contas. Reduz tudo à marginalidade, à ofensa moral.
Infelizmente temos comunicadores - não estou falando de jornalistas - que adotam essa mesma postura, de autoridade, que não respeitam o cidadão trabalhador, sem prova nenhuma de que agiu corretamente e ainda desqualificam moralmente.
Eu tenho uma grande expectativa que as pessoas que são vítimas passem a cobrar mais, em processos milionários em cada ato em que esteja envolvido o Estado. E o cidadão tem todo direito de cobrar
OP - Esse tipo de postura avessa à prestação de contas para a ação das autoridades passa por um momento em que temos exemplos de imposição de sigilos de 100 anos sobre documentos de interesse público...
Caco - Além de não apresentar as provas que tem obrigação de apresentar, ainda tenta impedir acesso futuro. É um absurdo ver como tivemos um retrocesso tão grande nesse ato de ser político, prestador de serviço.
Eu tenho uma grande expectativa que as pessoas que são vítimas passem a cobrar mais, em processos milionários em cada ato em que esteja envolvido o Estado. E o cidadão tem todo direito de cobrar.
Quem garante para um comandante chefe de batalhão que quando mata um menino numa comunidade ele não seria o próximo Neymar?
Por que quando um negro nos Estados Unidos quando morre após abuso policial vira “cidadão negro que foi morto injustamente pela polícia” e a sociedade exige uma indenização milionária? E no Brasil o cidadão negro vira bandido até que se prove o contrário.
OP - Para onde caminha o Jornalismo no Brasil a partir do que o senhor observa dos novos profissionais, inclusive tendo a experiência de ver seu próprio filho como um dos novos profissionais de Jornalismo?
Caco - Eu tenho uma grande esperança nas novas gerações. Comparo com minha formação e minha trajetória e percebo como tem jovens muito mais bem preparados. A qualidade do texto é incrível, quão rápidos, a capacidade de análise, tem escolas boas.
Infelizmente, nem todos têm acesso às escolas, ainda são os privilegiados que têm acesso. Mas o sistema de cotas democratizou bastante o acesso às universidades, tem os heróis que trabalham e estudam.
Estou bastante influenciado pelas duas semanas de trabalho com cotistas (reportagem veiculada pelo Profissão Repórter), alguns bem-sucedidos, que estudaram mas precisaram vender refrigerante e sanduíches na porta do Maracanã em dias de jogos, tudo o que imaginar como trabalho de camelô, fez, mas está arrebentando na universidade, num dos melhores cursos.
E a primeira coisa que fez ao conseguir levantar uma grana foi comprar uma casa pro pai. E ele casou com uma menina cotista que se formou médica, está ganhando uma boa grana e comprou uma casa pra mãe. É lindo isso.
São uns heróis, apesar de tudo acontecer para que sejam mais um fuzilado pela Polícia, estão dando a volta e são sobreviventes. E são muito bacanas. Por isso tenho esperança de construirmos uma sociedade mais legal.
OP - E sobre as suas andanças pelo Brasil, quais são as lições a serem levadas para a vida?
Caco - É difícil de responder… Mas nesses ambientes em que eu circulo muito, da injustiça e da violência, o melhor do ser-humano também floresce. Atitudes incríveis ali são um grande aprendizado. Quando você menos espera presencia um ato voluntário maravilhoso, de solidariedade, de nunca deixar alguém para trás.
Tem muito isso na favela. Outro dia vi a bala comendo desde as 4 horas da manhã com essas “Troias”, caras se arrastando na escuridão porque tinham dois feridos que ainda não haviam morrido. Indo ali oferecer uma água e esperando os tiros darem trégua para socorrer ao hospital.
São atitudes de enorme solidariedade que você não vê facilmente por aí. Eu já conheci uma enfermeira que atendeu um camarada após ele receber oito tiros da Polícia, ele sobreviveu e foi jogado no “chiqueirinho” da viatura e ele se fingiu de morto em meio aos outros amigos mortos.
Só que um dos cadáveres roncou - como uma emissão natural de ruídos na agonia da morte - e o policial ouviu e deu mais um tiro. E esse jovem chegou ao hospital e foi jogado junto com os outros na “geladeira” do necrotério, mas uma enfermeira viu ele se debater lá dentro e alarmou: “Está vivo”.
A Polícia voltou e queria “terminar de matar”, sufocando ele dentro da “geladeira”. Só que a enfermeira não permitiu. Oito meses depois eu descobri essa história. O jovem ainda viveu inconsciente por um tempo e quando ele abriu os olhos novamente a enfermeira me chamou. E ele me contou isso que estou lhe contando.
OP - Sobre a questão do uso excessivo de força nas operações, o Rio de Janeiro viveu esse problema em recentes operações. E a truculência em certas ações policiais é reclamação histórica. Isso faz com que as comunidades se sintam acuadas?
Caco - Esse exemplo da enfermeira é maravilhoso, e se todos os médicos tivessem essa atitude, ia dificultar essas matanças sistemáticas. Infelizmente, em alguns lugares, hospitais se tornaram esconderijos de cadáveres.
O certo era deixar o cadáver na cena do crime e não levar ao hospital, eliminando a possibilidade de perícia. Há uma dificuldade incrível de encontrar sobreviventes nesses tiroteios - pois alguns nem são tiroteios -, mas quando existe uma enfermeira como essa, temos um sobrevivente.
Se todos agissem assim, teríamos muitos sobreviventes. E esse é um tipo de sobrevivente que conta a verdade. Mas como trabalha a Justiça: Pega o relato só da Polícia. Existem situações em que há várias testemunhas.
A Polícia diz que não tem testemunha porque as pessoas têm medo, mas existem situações em que jornalistas encontram testemunhas 15 anos, 20 anos depois, como encontrei em casos da ditadura.
OP - O senhor falou em sua palestra sobre o quanto os entes da Justiça brasileira não frequentam as ruas, como o promotor de Justiça que não vai às ruas promover seu dever. Esse é um ponto-chave para entender essa complexidade?
Caco - Eu acho. É um sistema feito para impunidade do Estado. Quando se assina um arquivamento ou absolvição e não garante a devida apuração, está garantindo o abuso. Claro que existe quem faz bem seu trabalho sem estar propriamente nas ruas.
Mas aqueles que não trabalham e assinam virando o rosto para o outro lado, estão matando junto. Quando escrevi o livro “Rota 66”, peguei mais de 600 casos assim.
O juiz nem lê e define que não há nenhum fato contraditório a partir das análises da investigação e parte das vezes o relato é feito, na imprensa inclusive, a partir de discurso do matador.
OP - Em tantos anos de carreira, existe alguma história que o senhor ainda tenha vontade de fazer?
Caco - Eu sempre acho que não vou conseguir fazer a matéria de amanhã porque o nosso trabalho é muito difícil. Mesmo. Mas também acho que trabalho muito. Mesmo que eu consiga falar com três pessoas, mas o bom seria falar com sete, ou com dez, ou 20.
Quem disse que uma semana seria suficiente, mas pode ser um mês. Já fiz matéria em que passei um ano apurando informações que passou três minutos no ar. Depende das circunstâncias. Eu posso daqui a um ano contar uma história mais completa e verdadeira, mas é um processo que nunca sei.
E fico “P” da vida porque sempre recebemos o “deadline” (tempo limite) para levar a notícia ao ar. Caramba, mas para ser honesto é preciso dizer ao público que o meu limite foi aquele. O Brasil tem 26 estados e o Distrito Federal e você indo em três acha que está fazendo um retrato nacional.
Tudo é muito relativo. Mas uma coisa que pretendo é mergulhar mais intensamente, sozinho, tô querendo fazer mergulhos mais profundos.
Se eu pudesse teria câmeras embutidas no meu corpo, que as pessoas não percebessem, mas ao mesmo tempo soubessem que estou captando tudo, não só o que os meus olhos veem, num processo em que fique mais a vida acontecendo do que eu interferindo.
Discutimos muito no Profissão Repórter para tomarmos o cuidado de não interferir. E existem casos em que há a tendência a induzir: “Você nunca viveu uma situação tão dramática, né, minha senhora?”. A pergunta precisa abrir espaço para o que a pessoa vai dizer, nem que seja “Eu nunca vivi uma situação tão dramática”.
Quem somos nós? Serei eu melhor por ler meia dúzia de livros a mais do que a média? Isso não te habilita a dizer o que é certo ou errado e julgar os outros. Apurar com rigor já é muito. A partir do que o jornalista faz, o sociólogo poderá construir o trabalho dele, assim como o antropólogo, historiador, o jornalista de opinião
OP - Quando o repórter interfere muito, também prejudica o produto final, a história contada, a realidade que se escreve sozinha e não precisa de interferências…
Caco - Na reportagem, o legal é aproveitar o privilégio de conhecer uma pessoa nova todo dia, enriquecendo o seu trabalho. Eu adoro aprender na rua. Se eu vou na rua repetir o que eu já sei, qual é a graça? Se for assim, nem precisaria falar com ninguém. Sempre é possível aprender na rua.
OP - Aprender na rua é o maior tesouro do repórter?
Caco - Sim, eu acho. É um grande privilégio. Se eu pudesse agradecer ao fim de todos os programas a todos que compartilharam suas experiências comigo… Obrigado por me receberem em suas casas, não conhecia sua realidade e agora sei e gostaria que todos assistissem sua história.
Se a senhora não abrisse a porta do seu barraco para me receber tão bem, ficaria acreditando na autoridade que pouco caso fez da sua vida. Se pudesse dizer isso, diria. São essas pessoas que fazem seu trabalho ter relevância ou não. Alguns abrem suas histórias negativas, falam de crimes que cometeram e porque cometeram.
OP - A partir da consciência dessas desigualdades, também é papel do jornalista lutar para mudança de realidade a partir do espaço que possui e da realidade que vive?
Caco - Acho que isso seria pretensão demais. Isso deve ser compromisso de todo cidadão na sua atividade, só que na nossa é mais complicado, sobretudo num país polarizado, com as funções se infiltrando nas outras, em que todos são um pouco “promotores”.
Só que não podemos virar juízes, que nos problemas vespertinos diferentes, o cara julga todo mundo. Tem aqueles que pedem para a Polícia matar, julga que o outro não merece viver. E isso transcende nossa função.
Quem somos nós? Serei eu melhor por ler meia dúzia de livros a mais do que a média? Isso não te habilita a dizer o que é certo ou errado e julgar os outros. Apurar com rigor já é muito. A partir do que o jornalista faz, o sociólogo poderá construir o trabalho dele, assim como o antropólogo, historiador, o jornalista de opinião.
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