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Nilton Bonder: "Vêm aí tempos de demandas por mais solidariedade"
Reportagem Seriada

Nilton Bonder: "Vêm aí tempos de demandas por mais solidariedade"

Rabino há mais tempo em atividade no Brasil, Nilton Bonder fala sobre desafios na política brasileira, consequências da pandemia e o caminho para a cura em 2023
Episódio 88

Nilton Bonder: "Vêm aí tempos de demandas por mais solidariedade"

Rabino há mais tempo em atividade no Brasil, Nilton Bonder fala sobre desafios na política brasileira, consequências da pandemia e o caminho para a cura em 2023
Episódio 88
Tipo Opinião Por

 

Ativo defensor dos direitos humanos e promotor do ecumenismo religioso, Nilton Bonder olha para a chegada de 2023 pela ótica de quem sabe que a pandemia fez o mundo digerir, em suas palavras, "um gostinho de fim de mundo". O rabino mais antigo em atividade no Brasil deseja um novo ano onde as pessoas se sintam mais comunitárias e vislumbra desafios sociais para os tempos que chegam — onde olhar mais para o outro pode ser o caminho de curas e transgressões individuais.

Nilton acumula 30 anos de rabinato e é autor de mais de uma vintena de livros. As obras abordam diversos temas vistos sob a ótica judaica e já chegaram a ser publicadas em países como Itália, Alemanha, Estados Unidos e Países Baixos. "Alma Imoral", um de seus trabalhos mais reconhecidos, virou peça em 2006; transposto ao cinema em 2019.

O rabino que fala sem rodeios se posiciona em diversos setores. Sobre a política no Brasil, é direto ao dizer que o País vai precisar de oito anos "para um processo de cura, de reencontro de caminho". Já para as dores do indivíduo, aconselha o tempo como remédio e a busca por energias limpas — como o servir e a graça. Bonder dá ainda dicas do que projetar na transição do ano e revela que 2023 pode ser incrível para quem souber olhar menos para si e mais para o outro.

 

 

 

O POVO - O mundo vem passando por uma pandemia que teve forte impacto sobre a civilização. Que tipo de marcas esse processo deixa para o futuro? 

Nilton Bonder - A primeira marca mais evidente é nas nossas vidas. Nós, que vivemos esse período. O mundo tem períodos difíceis. A gente já enfrentou outras pandemias, situações de guerra, outras situações muito graves. A minha geração, a sua é mais jovem (risos), mas a minha geração viveu uma bonança muito grande. Apesar do mundo ter sempre seus problemas, o Brasil também ter seus problemas próprios, mas nós vivemos relativamente uma paz no mundo, não tivemos nenhum evento planetário considerável. Então todos nós éramos um pouco assim neófitos (principiantes) nessa experiência, no mundo que entra, digamos assim, em um processo sistêmico, em um problema sistêmico. Então todos nós nos assustamos né? É a primeira vez que a gente viveu isso. Os avós etc, já tinham vivido isso em conflitos mundiais. Então isso já foram experiências que já foram vividas.

Pra nós, nossa geração ficou muito marcada por tudo isso. Eu não acho que a gente tenha nenhum grande impacto diferenciado, de outros momentos em que a civilização viveu esse tipo de drama. É claro, nosso mundo tem particularidades. Eu acho que nós avançamos muito, estava aí faltando um peteleco pra gente dar um avanço tecnológico muito grande e a gente avançou. Em pouco tempo fizemos avanços muitos grandes. De tal forma que se você ver um filme de 2019 você já vê uma diferença em três anos. Se você ver um filme de dois anos atrás, ele é um filme de outra era, em todos os sentidos. Então acho que isso foi muito impactante.

A nossa experiência como geração, não acho que isso tenha uma transformação civilizatória profunda. Tivemos o mesmo tipo de reação que em outros momentos a gente teria. Pessoas muito solidárias, pessoas se apresentando pra servir no momento difícil. Outras pessoas apavoradas, tentando lá preservar a sua realidade, as suas questões etc. Então, não acho que a gente fez grandes movimentações planetárias civilizatórias nesse período não. Apesar de que, pra minha geração, pra todos que vivem nesse mundo, foi uma época muito diferenciada.

Então essa experiência foi muito assim, com um gostinho de fim de mundo. Todos nós temos uma experiência pós-traumática do que aconteceu. Mas onde nós acabamos nos isolando mais, é que nós avançamos muito exatamente por esses meios virtuais e eles são mais isoladores.

OP - Ainda falando sobre esse período, vivemos um isolamento social durante 2020, 2021... Como isso impacta nas nossas relações? Na cultura, na religião?

Nilton Bonder - Eu acho que o impacto foi muito pontual. Agora, a gente tá tendo um retorno da doença, de outras formas, não tão assustadoras, mas naquele momento foi muito violento aquela separação de todo mundo, as instituições tendo que fechar, parar. Então essa experiência foi muito assim, com um gostinho de fim de mundo. Todos nós temos uma experiência pós-traumática do que aconteceu. Mas onde nós acabamos nos isolando mais, é que nós avançamos muito exatamente por esses meios virtuais e eles são mais isoladores, eles promovem mais essa mudança nas relações, digamos, interpessoais do que a própria experiência da pandemia, então a pandemia avançou esse processo de viver nas redes, da gente tá vivendo comunicações virtuais, isso acho que impactou muito a vida das pessoas. Acho que é o efeito colateral mais grave do que aquele pontual que foi claro, da gente não poder ver família, não poder ver pessoas mais idosas. Tudo isso foi traumático. 

(Mas) A gente retornou, a gente tá retornando, pessoas tão vivendo, até duas, três semanas atrás a gente tava usando máscara. A gente tá vivendo uma vida de retorno a uma normalidade bastante semelhante ao que a gente tinha antes. Acho que o que modificou foi essa aceleração, e aí a gente tem um novo padrão de relações sociais que impacta todas as instituições. As instituições religiosas estão tendo que repensar como que elas vão funcionar, como que elas vão existir, já que eu acho que surgiu, assim, uma preguiça, uma preguiça social, e as pessoas pensam mais vezes antes de se comprometer com os compromissos presenciais.

 

O luto, ele é algo que depende muito dessa cicatrização do tempo, de você ter todo o apoio possível de familiares, de amigos. Todas as tradições religiosas tentam trabalhar o luto exatamente com esse tipo de recurso, ficar perto de pessoas queridas, de pessoas que possam te dar sustentação emocional e você fazer essa digestão tão difícil, espiritual do que aconteceu, usando como aliado o tempo.

OP - Você falou sobre a questão do efeito traumático, essa era justamente minha próxima pergunta. Durante a pandemia, além do sofrimento físico, a gente teve o emocional, das pessoas que viveram um luto, que não tiveram um tempo de se despedir, das pessoas que viveram esse "gostinho de fim de mundo" que você mesmo citou. Como é possível encontrar a cura pra isso?

Nilton Bonder - As pessoas que foram impactadas diretamente, com perdas familiares, o que é uma coisa extremamente terrível e triste. Essas pessoas têm que enfrentar essa dimensão de luto, um luto acho que marcado por um agravante que é essa sensação, principalmente com as pessoas mais jovens que partiram, como se fosse realmente uma perda dessas de um acidente automobilístico, de um acidente de avião, onde você tem uma perda súbita de pessoas que não estavam doentes, que tinham um prazo de vida grande e tudo mais. Então isso é um luto pra essas pessoas, um luto semelhante e traumático da mesma maneira. O que acho que tem de novidade, e aí é mais coletivo, essas pessoas que viveram isso na pele mais diretamente, que além das questões econômicas tiveram perdas físicas, de restrições na sua saúde, ou que perderam entes queridos, essas pessoas têm aí um tempo, né?

O luto, ele é algo que depende muito dessa cicatrização do tempo, de você ter todo o apoio possível de familiares, de amigos. Todas as tradições religiosas tentam trabalhar o luto exatamente com esse tipo de recurso, ficar perto de pessoas queridas, de pessoas que possam te dar sustentação emocional e você fazer essa digestão tão difícil, espiritual do que aconteceu, usando como aliado o tempo. Então, todas a tradições que tratam o luto, elas vão falar do tempo, que você tem que se respeitar nos primeiros momentos, depois, em um prazo um pouco mais intermediário, você ir fazendo essas transições do luto que reconhecem a necessidade de tempo para que cicatrize.

Bonder é autor de mais de uma vintena de livros(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Bonder é autor de mais de uma vintena de livros

Assim como o corpo, assim como se você quebrar, machucar uma perna etc, você vai precisar de um tempo pra se restabelecer. Todas as pessoas que viveram isso, além dessa sustentação, tanto da religião, tanto da família, tanto dos amigos, eles precisam se entregar um pouquinho a esse aspecto cicatrizador do tempo, não tem como fugir disso.

Mas existe um outro trauma que eu acho que é mais permanente pra todos nós, e aí eu incluo todo mundo agora, é planetário, civilizatório, que é o fato de que nossa civilização se encontra diante de uma série de desafios muito grandes à nossa sobrevivência. Eu acho que é isso que nós conectamos entre pandemia e essa sensação de fim de mundo, que não é só episódica, como outras pandemias no passado, mas nós estamos diante de hoje de uma crise climática absurda, de uma crise de sustentabilidade em muitos sentidos, não só na natureza, mas de transformações no mercado de trabalho. As pessoas estão tendo que inventar formas de trabalho totalmente novas, você tem cada vez menos trabalhos formais, você tem trabalhos chamados informais ou empresariados pela própria pessoa. Tudo isso traz um senso de insegurança pra todos nós, que eu acho que a pandemia engatou um pouco nisso.

A pandemia foi, assim, um trailer de eventos que a gente cientificamente já está apontando que estão ali no nosso futuro, e que eu acho que é isso que talvez tenha mobilizado muito a nossa geração. Da sensação de que existem tendências muitos graves para o ser humano, para a sobrevivência da nossa civilização, da nossa espécie, e nós entendemos isso: a pandemia contendo esse elemento de aviso de coisas muito reais que estão nos ameaçando. 

OP - Ou seja, é um prenúncio de outros problemas que já estão aí.

Nilton Bonder - Eu acho que as pessoas se conectaram com isso. As pessoas perceberam que isso tem um gostinho de como era um mundo com problemas sistêmicos. Então eu acho que as pessoas têm esse pesadelo recorrente, porque apesar da pandemia ter passado e a pandemia ser episódica, essa sensação de que o mundo tem desafios terminais, desafios apocalípticos, é real. 

O POVO - Falando do Brasil em específico. Além dessa crise sanitária vivemos um momento de extremismo político. Nesse sentido, o que a gente pode esperar da sociedade, do Brasil em específico, pra 2023?

Nilton Bonder - Eu acho que parte dessas questões que a gente tá tendo — que a gente teve no Brasil, de polarização, de aparecimento de extremas né, de extremismos, de radicalismos —, não é um evento só brasileiro. Você encontra eco disso nos Estados Unidos, você encontra ecos disso na Europa e, de alguma forma, eu acho que bem presente nas sociedades capitalistas, ocidentais, acho que a gente tem aqui pressões que a gente não consegue enxergar.

O Brasil tem seus problemas antigos, temos dívidas sociais, antigas, temos dívidas com a população negra, temos dívidas com a questão dos índios, que ficou muito evidenciada com as questões não só da natureza, mas da violência na Amazônia. Então são questões do Brasil, mas o Brasil está inserido numa questão mundial, que são questões de pressão de aumento populacional de cidades, de áreas urbanas extremamente densamente povoadas, com queda de qualidade de vida em muitos sentidos para as pessoas. É uma dificuldade do mundo em manter uma regulamentação, um sistema econômico estável. Então é uma instabilidade no mundo.

O Brasil é um país que tem uma camada enorme da sua população nessa discrepância social, onde você tem uma elite que é um percentual muito pequeno do País e a maioria do País tem graves necessidades sociais. Então acho que vem um governo que vai estar atento a essas questões — o que é muito positivo. O que vai ser difícil é que perduram aí as mesmas questões: o Brasil precisa fazer mudanças estruturais.

Você ouve falar de coisas que, pra nós, pra essa geração que eu falei, da bonança, a gente sonhava sempre com os países de primeiro mundo, países onde não existia inflação, países onde você podia sonhar como seria sua vida daqui a dez anos. E isso se tornou uma realidade instável pro planeta inteiro. Então, o Brasil vem aí pra 2023, vem com um novo governo, um governo que acho que vai prestar mais atenção na questão social, o que vai ser muito importante pro Brasil.

O Brasil é um país que tem uma camada enorme da sua população nessa discrepância social, onde você tem uma elite que é um percentual muito pequeno do País e a maioria do País tem graves necessidades sociais. Então acho que vem um governo que vai estar atento a essas questões — o que é muito positivo. O que vai ser difícil é que perduram aí as mesmas questões: o Brasil precisa fazer mudanças estruturais. Tem que ter coragem, tem que ter ali a capacidade política que eu não sei se... a vontade eu sei que tem, mas o governo vem de certa forma enfraquecido no sentido de que ele tem que compartilhar com outros partidos, com outros interesses, esses próximos quatro anos.

Então, vamos ver como esse governo (de Lula) vai conseguir navegar. É positivo esse direcionamento para as questões sociais, mas estamos todos muitos imbricados com a realidade internacional, mais do que no passado. Então, o que pode acontecer no mundo, essa guerra entre a Ucrânia e a Rússia — apesar de ser uma guerra distante, tanto geográfica como ideologicamente, dos interesses do Brasi —, o mundo está profundamente interligado, não só por essa conexão do mundo digital, mas pelo fato de que nós estamos em limite de sustentabilidade. Então questões todas que afetam cultivo, cultura, possibilidade da gente ter fome, e principalmente as migrações, as instabilidades, como isso vai afetar o Brasil é hoje em dia algo que você tem que recorrer a uma bola de cristal.

Nilton Bonder é o rabino mais antigo do Brasil
Nilton Bonder é o rabino mais antigo do Brasil (Foto: Divulgação)

OP - Sobre esse processo de transição do governo, há movimentos antidemocráticos acontecendo pelo País. Acha que a democracia corre perigo?

Nilton Bonder - Eu acho que a democracia corre perigo mundialmente. Esse conceito de democracia, em todos os sentidos — com tudo que a gente tenha de crítica aos Estados Unidos —, a maneira como os Estados Unidos foram um império dominante, como todos os impérios dominantes, muito violento, iniciando conflitos armados e tudo, mas houve até recentemente um certo policiamento, né, digamos assim global que era encabeçado pelos Estados Unidos e que fazia com que o mundo — longe de ser perfeito, muitas vezes usando do seu poder para controlar a economia e etc —, mas o mundo tinha o guardião das democracias e era essa inclusive a maneira como os Estados Unidos se apresentavam. Às vezes era só da boca pra fora, mas existia uma sensação de opinião pública internacional. Tanto é que a dez anos atrás, se você visse alguém questionando a democracia brasileira, você ia dizer que isso era impossível. Não pelas condições internas do País, que tinha vivido uma ditadura (...), mas a ideia do que é um país civilizado ia ser totalmente detonado em um mundo civilizado.

Hoje nós temos narrativas que eu imaginava já extintas, de supremacia, até o neonazismo, o retorno de coisas que eu, como judeu, como parte da comunidade judaica, imaginava que era um processo civilizatório em que a gente tinha já dado um passo pra frente, mas você vai ver e tá tudo aí, muito vivo até no Brasil, surpreendentemente.

Então, sim, acho que as democracias estão hoje sob ataque, e o que o era impensável até uns poucos anos atrás, hoje a gente tem que levar muito a sério. E me preocupa o afastamento das novas gerações, que não viveram a ditadura, que não sabiam, que não tiveram o gostinho de não poder falar o que pensar, de não poder ser o que a gente quer ser, de não poder usufruir dessa liberdade fantástica que a gente conquistou no Brasil. A gente pode dizer o que quiser do Brasil, mas o Brasil é um país de primeiríssimo mundo, no sentido de que as suas legislações, a nossa legislação — a maneira pela qual as instituições no Brasil nos garantem liberdade — é um patrimônio maravilhoso que a gente deveria valorizar.

Algumas pessoas jovens podem não se dar conta do que significa você delegar a um terceiro, a alguém que vai falar como você deve se comportar, como você deve viver... e a gente já viveu esse pesadelo. Eu acho surreal que as pessoas estejam querendo isso (ditadura), a entrada de um poder que retire delas o direito delas votarem, os direitos democráticos de um indivíduo, mas até a própria democracia tem que aceitar essa incongruência daqueles que dão seu voto contra ela.

OP - E por qual razão há esse "retrocesso"? Por qual motivo nós retrocedemos? 

Nilton Bonder - Acontece principalmente por insegurança. Eu acho que são estruturas de insegurança que às vezes a gente nem percebe, de tanto que estamos envolvidos nelas. Tudo isso que eu listei, essa questão de um mundo que tem ameaças apocalípticas, um mundo que tá chegando ao ápice. Nós imaginávamos, há 20, 30 anos, que quando nós chegássemos a 8 bilhões de pessoas, a gente ia ter um monte de problemas, de como você alimenta todo mundo, de como você supre para todo mundo um carro, uma televisão, um ar condicionado...

Então, às vezes, isso não transparece no dia a dia, mas tá ali presente, tá na dificuldade de conseguir um emprego, tá na dificuldade de um jovem de conseguir ver como é que ele vai se aposentar. Antigamente, há pouco tempo, até mesmo na minha geração (já havia preocupação) —eu aposentei há dois anos. Eu vivi uma vida profissional, onde até mesmo aqui no Brasil, onde você recebe muito pouco, uma aposentadoria baixíssima, você tinha ali uma certeza de como ia chegar mais ou menos ao final. Hoje, as contas estão em aberto. Se você está iniciando a sua vida de trabalho e você está apostando pra daqui a 30, 35, 40 anos... nós não temos a menor certeza.

O Brasil, hoje, ele não tem clareza de que ele fecha essas contas (da previdência). Há um envelhecimento da nossa população. Nós, que éramos sempre o país da juventude e tudo mais, a gente vai entrar em um período japonês, em que a gente tem essa camada idosa da população enorme. São tantas áreas de insegurança, que elas promovem esse tipo de reação, que são reações de um certo pânico. Se você perguntar pra uma pessoa na rua que tem essas posições políticas mais radicais, ela nunca vai te falar o que eu tô te falando, mas acho que ali tem essa sensação de que tem essas teorias da conspiração, de que tem alguma coisa muito grave acontecendo no mundo. É uma maneira das pessoas expressarem isso, que elas sentem como pressão diária na sua própria vida. E acho que isso inclusive vai recrudescer.

Então, assim, a gente tá retrocedendo porque esses avanços dependiam das pessoas se sentirem confiantes, das pessoas terem uma confiança coletiva social na sociedade, confiança no sistema que a gente tá vivendo, e eu acho que as pessoas estão perdendo confiança. E quando elas perdem confiança elas escolhem um lado pra se afiliar, e ali elas começam a agir de uma forma que eu acho errática, de uma forma que às vezes não parece ser racional.

E vamos precisar não só de quatro anos, vamos precisar de oito anos pra um processo de cura, de reencontro de caminho no Brasil. A gente não pode esquecer que a gente teve não só os anos Bolsonaro, mas os últimos quatro anos, Dilma, também foram de um Brasil totalmente inseguro, um Brasil de polarização, um Brasil de violência, de narrativas violentas, que levaram até ao impeachment da presidente então. Então são oito anos, a gente precisa de um prazo grande.

OP - Essa confiança pode ser restabelecida?

Nilton Bonder - Acredito que ela pode ser restabelecida em parte. Infelizmente, a gente vai ter aqui um fenômeno do nosso tempo, que é a força da narrativa, que está descolada do que é real. Então, assim, a realidade, ela tem muita força. Se esse governo (Lula) promover avanços, principalmente em uma boa parte da sociedade, se conseguir um equilíbrio, não for radical também, não perder a própria narrativa e não começar a dar espaço pras narrativas boas pra polarização, eu acho que isso pode sim restabelecer algum tipo de confiança. E vamos precisar não só de quatro anos, vamos precisar de oito anos pra um processo de cura, de reencontro de caminho no Brasil.

A gente não pode esquecer que a gente teve não só os anos Bolsonaro, mas os últimos quatro anos, Dilma, também foram de um Brasil totalmente inseguro, um Brasil de polarização, um Brasil de violência, de narrativas violentas, que levaram até ao impeachment da presidente então. Então são oito anos, a gente precisa de um prazo grande.

Esse governo tem a incumbência fundamental de reestabelecer uma tranquilidade. Vamos ter ainda esse tipo de ressurreição, que tá ali sendo claramente fomentada pelas redes sociais, mas vamos ter a batalha imensa de narrativas. Então tem muitos desafios pra esse governo. Tem desafios políticos, de como conseguir realizar (uma plataforma) em um sistema político como o brasileiro, e tem aí essa guerra das narrativas, porque às vezes você tá fazendo uma coisa boa e as pessoas conseguem vender a narrativa de que você tá fazendo a coisa errada, ou vice-e-versa. Essa é uma batalha incrível, não é só uma batalha brasileira, é uma batalha mundial, e eu acho que ela tem a ver com essas instabilidades lamentáveis que a gente tá vivendo.

Acho que se a gente tivesse em um mundo que as pessoas tivessem acreditando mais no sistema, que elas pudessem olhar no prazo de 30 anos, de 40 anos, e percebessem alguma estabilidade, a gente teria um decréscimo desse tipo de manifestação radical. Ao contrário, a gente um acréscimo. 

OP - Esse tipo de desconfiança social é um sentimento recorrente não só no Brasil. Os próprios Estados Unidos passaram por isso recentemente. Por qual motivo nós retomamos a ele?

Nilton Bonder - A gente retoma porque, primeiro, tem assim uma forma humana de reagir. O ser humano é muito mais emocional do que racional. Então ele é empurrado. Se as emoções estão apaixonadas (...), então a gente tem uma reação emocional. (Existem) As pessoas questionam todas essas formas de costumes, querem ser mais conservadoras ou reacionárias, mas é importante entender que, apesar disso ser próprio do ser humano, quanto mais tensão você tem, mais emocional o ser humano é, menos racional ele é. Isso é humano e é recorrente, então basta você ter uma instabilidade para as pessoas não se comportarem. Você tem uma situação de um barco que vai afundar, o normal não é tranquilidade, as pessoas entram em pânico, entram em uma modalidade que é muito difícil, porque ela é mais emocional do que racional.

A segunda coisa é que nada é igual. A gente tá vivendo um pêndulo, um momento cíclico na humanidade. A humanidade fica às vezes mais liberal, às vezes ela fica mais conservadora. Isso é meio cíclico, mas nunca é igual. Nós estamos vivendo tempos muitos diferenciados, são diferenciados, não são os mesmos do meu avô — apesar dele já ter vivido (instabilidades), meus avós viveram muita instabilidade, mas era de uma ordem diferente. A reação deles ao que viviam era parecida ao que a gente tem? Era, mas os tempos são diferentes, eles têm aí as suas excentricidades, as suas diferenças. É um tempo único que a gente tá vivendo.

Se eu fosse desejar alguma coisa pra 2023, eu ia desejar que as pessoas se sentissem mais comunitárias, não individualistas, individualizadas. Nós temos nosso sonhos de indivíduo, que são esses que eu listei — saúde, sustento —, desejo isso aos brasileiros, com todo carinho. Mas, (desejo que) nossa vida tenh um significado um pouco mais transcendente, de valor maior...

OP - Falando ainda sobre transição, mas agora sobre a transição do ano. As pessoas têm essa visão de que o fim de ano é um momento de renovação, de mudança. Como esse período pode ser de fato transformador?

Nilton Bonder - Claro que a gente vai se desejar no fim de ano "muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender", essas coisas que são nosso sonho de consumo, mas eu acho que nós estamos vivendo um período muito importante pro Brasil e pra nossa espécie como um todo, em que a gente vai ter que se esforçar muito. Se eu fosse desejar alguma coisa pra 2023, eu ia desejar que as pessoas se sentissem mais comunitárias, não individualistas, individualizadas. Nós temos nosso sonhos de indivíduo, que são esses que eu listei — saúde, sustento —, desejo isso aos brasileiros, com todo carinho. Mas, (desejo que) nossa vida tenh um significado um pouco mais transcendente, de valor maior...

É uma época que tem que sonhar que ano que vem você se engaje de alguma forma na construção de um sonho que não é só seu, que seja da sociedade, que seja comunitário. Se a gente continuar caminhando cada um com a sua agenda, com seus interesses particulares, o nosso destino está traçado. São 8 bilhões de agendas, uma conflitando com a outra, e todas elas criando uma insustentabilidade para esse mundo. Vêm aí tempos de demandas por mais solidariedade, ou demandas por mais olhares comunitários, e as religiões têm uma função importante. Elas têm que sair desse lugar horrível, politizado, que elas entraram no Brasil. Elas têm que ir pra um lugar mais importante, onde podem ajudar as pessoas a entenderem a importância, o significado que tem a comunidade nas nossas vidas, pra gente ter outros valores além desses do consumo.

Eu desejaria isso para as pessoas, que elas tenham um ano de 2023 com essas coisas que a gente pede para si, mas que elas pudessem se engajar de alguma forma e produzir, nesse ano, pra elas, uma sensação de que elas contribuíram ao coletivo, não só para sua sobrevivência e da sua família nucelar.

OP - E tem também muito essa ideia de começar do zero, de resetar o ano e começar do zero. Como podemos começar o ano realmente bem?

Nilton Bonder - Eu acho que sempre que a gente fecha um ciclo — um ano é um ciclo —, tem as pessoas que estão começando e tem as pessoas que estão fechando. É muito importante a gente saber em que momento a gente tá. Isso é muito dinâmico. Tem coisas que se abrem na vida da gente, tem coisas que se fecham. Mas tem pessoas que tão mais ali no começo de novos projetos, tem pessoas que estão no meio pro final de projetos. Então, cada um de nós tem que se preparar, eu diria que espiritualmente, pra esse momento da vida da gente. Aqueles que estão começando novos projetos têm que começar com muita alegria, com muita esperança, e têm que colocar na sua agenda essa dimensão coletiva que eu falei, porque esses são aqueles que precisam do mundo daqui a 30, 40 anos. Todos nós precisamos pra nossos filhos, nossos netos etc, mas eu tô falando do projeto até pessoal dessas pessoas que tão começando na vida. Elas têm que estar muito engajadas com o coletivo, porque elas vão depender muito desse coletivo.

As pessoas que estão já nesse momento de realização e tudo mais, que elas possam fechar, possam abrir espaços, que elas possam ter também uma dimensão coletiva de não fechar todos os espaços. É tão importante a gente saber disso, que em algum momento a gente pode continuar sendo produtivo na vida, mas não no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa. Às vezes essas pessoas ficam buscando excedentes em suas vidas e elas poderiam estar fazendo outro tipo de trabalho produtivo, com certeza até mais significativo na vida delas.

Então eu diria isso, dá uma pensada cada um, em qual momento da sua vida está. Aqueles que tão abrindo projeto (devem) fazer isso no maior pique possível, na maior alegria possível, e trazer uma dimensão coletiva ao seu projeto. Aqueles que estão mais avançados, que tenham essa sabedoria também coletiva de colaborar com o mundo que vai ser o mundo dos seus filhos, dos seus netos. Se a gente não tiver essa consciência vamos estar aqui como 8 bilhões de ratinhos, cada um brigando pelo seu pedaço de queijo, e com certeza vai falta queijo nessa construção individual.

A outra energia limpa que eu digo é a graça. A graça é uma coisa que as pessoas não se dão conta, que é a vida vivida. Graça quer dizer gratidão; você viver com a alegria de se sentir grato pelas coisas que você tem. Graça está associada ao humor, de você está sempre de bom humor, de você estar sempre com as pessoas cheias de graça,

OP - Que tipo de impulsão podemos buscar pra chegar a um equilíbrio?

Nilton Bonder - Eu brinco que a gente poderia ter formas de prazer na vida que não fossem só esses prazeres do mundo do consumo. Quais são os prazeres do mundo do consumo? É justamente consumir, é ter coisas e o grande prazer da vida é o prazer das sensações. Você tem prazeres na sexualidade, na alimentação, e a gente vive dessas fontes de energia vital que não são limpas.

Existem outras duas fontes de alegria vital que são limpas. A primeira delas é o servir ao invés de consumir. As pessoas esquecem que você estar a serviço de alguma coisa é uma experiência maravilhosa de vida. Você se dar conta de que você faz a diferença pro seu grupo, pra sua cidade, pro seu país etc. Então, a ideia de servir ao invés de consumir é uma energia limpa, uma energia que traz alegria de viver, vitaliza uma pessoa.

A outra energia limpa que eu digo é a graça. A graça é uma coisa que as pessoas não se dão conta, que é a vida vivida. Graça quer dizer gratidão; você viver com a alegria de se sentir grato pelas coisas que você  tem. Graça está associada ao humor, de você está sempre de bom humor, de você estar sempre com as pessoas cheias de graça, em vez dessas pessoas que às vezes estão tão perdidas em si mesmas que elas ficam desgraçadas, sem graça nenhuma.

(É necessário) encontrar essa alegria de viver que não depende tanto de se empanturrar. Pode ser de coisas muitos singelas, graciosas, e as pessoas têm que encontrar esses caminhos, senão fica todo mundo querendo ter o último celular, todo mundo querendo ter experiências exaustivamente de uso, sensoriais no sexo, e esse é o único passo pra você gastar o seu tempo e a sua energia vital em outras coisas que dão tanta alegria ou tanto sentido a sua vida, que são essas energias limpas que eu tô falando. Se você olhar pra elas elas, elas são todas comunitárias, elas não são individuais. Consumo e prazer é o indivíduo com ele mesmo. Quando você serve e quando você exerce a graça isso quer dizer que você tá em grupo, que você tá em espaços coletivos.

Nilton Bonder, rabino e escritor
Nilton Bonder, rabino e escritor (Foto: Divulgação/EBC)

OP - Então seria olhar menos pra si e mais pro outro?

Nilton Bonder - É, não como uma moral, mas como uma fonte de alegria. Não porque o rabino falou, o padre falou, aquela moral antiga. Nem eu tô falando pra você parar de ter experiências da sexualidade, da alimentação, isso tudo é parte da vida, viva com muito prazer, mas não joga todas as fichas nisso. A vida tem outras alegrias limpas e o mundo precisa que as pessoas, 8 bilhões, se alegrem de outra forma que não essa forma consumista, seja do meio ambiente ou de si mesmo e aí é isso que você falou, uma entrada no espaço do coletivo e não de si pra sim mesmo.

OP - Em um dos seus trabalhos mais reconhecidos, o "Alma Imoral", você fala sobre muito transgressão. Como nós, como indivíduos, podemos transgredir nesse processo de fim de mudança de ano?

Nilton Bonder - A transgressão é uma alegria limpa. Significa que você tá vivendo a sua vida com graça, porque a transgressão que eu tô falando não é no sentido de romper com a lei, trair alguém. Eu tô falando no sentido de você crescer, de você romper com você mesmo, de você sair do seu quadrado e experimentar a vida com tudo que ela tem pra te oferecer. As pessoas que vivem a vida assim, elas acabam tendo um pouco dessa dimensão de que eu comentei há pouco. Elas acham graça, elas vivem a vida com graça e elas não precisam ficar se empanturrando, porque se você vai olhar com cuidado, as pessoas começam a jogar todas as fichas no consumo, na tentativa de ter prazeres, de ficar comendo que nem um louco, abrindo a geladeira a cada três segundos, engordando, perdendo a sua saúde. 

Se você for olhar é muito possível que a pessoa perdeu contato com a sua graça, porque ela não conseguiu fazer certos rompimentos em sua vida, fazer transgressões a uma moral que ela mesmo estabeleceu e ali ela começa a consumir o mundo. Em vez de consumir o mundo e viver a sua existência, ela começa a consumir coisas, ela vai pro shopping porque tá deprimida, ou ela vai comer que nem uma maluca porque ela quer ficar preenchida. Então isso são sinais, são sintomas bem claros de que a pessoa não tá vivendo uma energia limpa em sua existência. Então eu acho que as pessoas tem que parar e prestar atenção, se voltar pra si, pra sua saúde emocional, sua saúde espiritual. É uma coisa que vai fazer do seu ano de 2023, dar uma potência pra esse ano incrível, e que não tá ali atrelada a ter um novo iPhone ou mais um desses apetrechos, como se fosse isso um simbolismo de que você avançou na vida. Você avança na vida quando você cresce, você avança quando você se conhece, quando você se surpreende, quando você usa seus potencias na vida, quando você se expõe. Eu acredito muito que o capitalismo, ele reflete muito esse mundo sedentário onde o ser humano quer viver a vida entre a tela do seu celular e o refrigerador.

OP - 2023 pode ser então esse ano de limpeza, de olhar menos pra si e mais pro outro?

Nilton Bonder - Acredito que 2023 pode ser um ano de grandes desastres se a gente continuar fazendo as coisas do jeito que a gente tá fazendo sem um investimento. Se a gente fizer um investimento, 2023 pode ser o máximo, pode ser incrível. Eu acho que a gente tem que lá, na contagem do 10, 9, 8, 7... até a gente abrir lá a champanhe, a cachaça ou seja lá o que for abrir, eu acho que a gente tem que refletir um pouquinho sobre as potências desse 2023. Em vez de dizer "muito dinheiro no bolso e saúde pra dar e vender", da gente poder dizer "(desejo) eu inteiro emocionalmente esse ano", "(desejo) eu inteiro espiritualmente nesse ano", e querendo viver a minha vida em toda a sua plenitude, não comprar essas coisas que são industrializadas, que são esses pacotes de como viver a sua vida.

Abre os olhos, abre o coração. Tem tanta potência, o ano de 2023, tanto para as coisas boas como para as coisas ruins. É a gente que vai apontar que direção que a gente vai. 

OP - Acredita que vamos viver "um novo normal"?

Nilton Bonder - A vida não deveria ser normal porque a vida, ela é cada dia diferente, cada momento é diferente. As nossas vidas estão passando, cada dia você acumulou experiências, você gastou mais um dia da sua existência. Então não existe normal, o normal é um pouco dessa fantasia que a gente quer. E ninguém quer o normal, porque se amanhã for igual a hoje, depois que passar a primeira semana da sensação de tranquilidade porque o amanhã é igual a hoje, passou um pouquinho de tempo e você não vai mais aguentar viver nesse mundo. Esse mundo é maravilhoso porque nada é normal, tudo é em processo de transformação, tudo é em movimento. Então vamos parar de sonhar com os normais, porque é totalmente anormal ser um normal. Sonha com você crescendo, com você podendo fazer uma diferença, você mostrando sua potência ao mundo, e não fica com medo dos normais ou anormais da vida. Você tem muita potência de transformar esse ano, não fica só nessa expectativa da sorte, de como vai ser o ano. Tá tudo nas nossas mãos. A gente é impotente em tantas e tantas coisas, mas no que diz respeito a nossa alegria, a nossa satisfação com a forma em que a gente vive nosso ano, a gente tem muita potência.

 

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