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Fernanda Quinderé: 500 mulheres em uma
Reportagem Seriada

Fernanda Quinderé: 500 mulheres em uma

Entre sonhos, lutas, amores e desamores, Fernanda Quinderé compartilha 85 anos de trajetória às Páginas Azuis
Episódio 97

Fernanda Quinderé: 500 mulheres em uma

Entre sonhos, lutas, amores e desamores, Fernanda Quinderé compartilha 85 anos de trajetória às Páginas Azuis
Episódio 97
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Há muitas versões de uma mesma persona no interior do apartamento da atriz, produtora, compositora, diretora e escritora Fernanda Quinderé, um espaço localizado em condomínio residencial do bairro Aldeota. Antes mesmo de adentrar o lar, são notórias as inúmeras obras de artes espalhadas pelas paredes, portas e mobílias. Muitas trazem a própria imagem da artista: pintada em quadros presenteados por amigos, retratada em fotografias de familiares, descrita em textos de alunos. “Digo que são as 500 mulheres que vivem dentro de mim”, menciona na conversa antes de começar a entrevista para as Páginas Azuis.

Fernanda Quinderé, atriz, diretora, escritora
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo
Fernanda Quinderé, atriz, diretora, escritora

Conforme as perguntas se desdobram, as incontáveis Fernandas vão sendo reveladas. Desde a menina “tímida e magrela” que estreou no teatro aos prantos até a matriarca de uma família com filhos, netos e bisnetos. Elas também perpassam pelas vivências da jovem que desfilou aos 15 anos, a escritora que compartilhou crônicas nas páginas do O POVO e a experiente atriz que, hoje, auxilia na formação de novos talentos. Todas constituem os 85 anos de vida e 70 anos de carreira da personalidade, que seguem sendo celebrados desde 12 de setembro de 2022.

Fernanda Quinderé conta histórias da sua vida atravessada pela arte(Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Fernanda Quinderé conta histórias da sua vida atravessada pela arte

A trajetória se torna quase palpável conforme os cômodos vão sendo explorados. Do piso até o teto, todos os ambientes são adornados por fragmentos do que já foi e do que está sendo vivido. É possível pontuar um quadro de Sérgio Helle, uma homenagem do cronista Airton Monte - cujo título é “A Musa de Todos Nós” -, e um desenho de “Feliz Natal” feito pelas crianças na última festividade de dezembro. Também surgem fotografias de gerações passadas, coleções de musicais, bruxas de pano, materiais para trabalhos, presentes dos maracatus, imagens de Fernando Pessoa e até um tijolo da casa da avó, devidamente guardado em uma estrutura de madeira. “Tenho que alugar uma sala, não cabe mais nada aqui”, conta.

É difícil condensar tantos enredos. Nascida no Rio de Janeiro, Fernanda se divide entre Fortaleza e a capital carioca. Coleciona atuações desde os 13 anos, quando estreou na peça “A Moreninha” a convite de Nadir Saboya e Maristher Gentil. Viajou como representante do Ceará em cidades nacionais e internacionais, trabalhou em instituições culturais, comandou programas na televisão e escreveu mais de dez livros, entre eles "Bodas da Solidão - Um Olhar Azul para Luiz Eça", "Cordilheira do Fogo" e "Padre Quinderé: O Apóstolo da Alegria". Prestes a finalizar mais uma obra literária, lançar um CD ao lado de Roberto Menescal e embarcar em uma série de apresentações pela Europa, Fernanda celebra os feitos do exitoso caminho pela arte e garante: “Não troco a minha vida por nada”.

 

 

O POVO: Você começou a carreira muito jovem, por volta de 1952, com Nadir e Maristher. Qual foi o contexto do pontapé artístico?

Fernanda Quinderé: Foi uma coisa tão simples, tão inesperada, porque Nadir e Maristher estavam formando o Teatro Escola do Ceará, junto com uma participação do Grupo Clã. Elas estavam procurando meninas da sociedade e foram lá na casa dos meus pais atrás da minha irmã, que dançava nas festas. Eu era uma menina, tinha 13 anos, magrela, tímida. A Nadir me olhou e disse: ‘Você não sabe dizer um poema? Não sabe cantar?’ Ficou nessa insistência. Elas estavam procurando elenco para uma peça chamada “A Moreninha”.

A Maristher insistiu e eu cantei uma música de sucesso, da Dalva de Oliveira, isso em abril de 1952. Ganhei uma personagem que era irmã de leite da Moreninha, da atriz principal. (Tinha) O Valdemar Garcia, que era um grande diretor do Teatro Universitário e gostava do movimento, o Hugo Bianchi que era bailarino e trabalhava com o corpo da gente em cena. Passei por tudo isso chorando muito, emocionada, porque estava toda pintada de preto, com um vestido, um calor. 

Quem me despertou foi a Maristher, quem me deu continuidade foi a Nadir. Sou amiga das duas famílias até agora e, posso dizer, elas são minhas segundas mães. Minha mãe de sangue acolheu essa minha escolha, meu pai também, mas elas me educaram socialmente.

Recebi uma lição que foi fundamental na minha vida. A Marister falou: ‘Pare de chorar, você tem que ficar, teatro é isso’. A Nadir botou o dedo na minha cara e disse: ‘Você engula esse choro, pare de chorar’. Eu fui me assustando pela veemência da situação, não com raiva, mas compreendendo que era isso que ela queria me dizer. No teatro você tem que estar pronta para o que vai acontecer no palco, ou não. Eu levo isso na minha vida como uma grande lição da minha mestra Nadir Saboya.

Quem me despertou foi a Maristher, quem me deu continuidade foi a Nadir. Sou amiga das duas famílias até agora e, posso dizer, elas são minhas segundas mães. Minha mãe de sangue acolheu essa minha escolha, meu pai também, mas elas me educaram socialmente. Me ensinaram a andar, falar, expressar. Despertaram em mim uma alma artística que eu nem sabia que existia. Até hoje eu não esqueço esses momentos, não há a menor possibilidade de esquecer a minha estreia no dia 12 de setembro de 1952

OP: E desde o momento de estreia no palco, seguir pelo caminho da arte foi inevitável?

Fernanda: Foi inevitável. O Teatro Escola preparou três espetáculos, “A Moreninha”, “A Importância de Ser Severo”, da Nadir Saboya sobre a peça do Oscar Wilde… Era outro refinamento de uma sociedade inglesa, de uma moça de mais ou menos 20 anos, e uma menina de 13, 14 anos fazendo aquela personagem. Teve o terceiro espetáculo da temporada de estreia, uma peça do Eduardo Campos que era "Os Deserdados”, parte de uma trilogia que ele escreveu sobre a fome, a miséria e a pobreza, as situações caóticas da sociedade. Eu fui progredindo e passei a fazer todos os espetáculos com a Nadir Sabóia no Teatro Escola, fiquei viajando pelo Brasil com o espetáculo até ganhar o prêmio de Melhor Atriz do Norte e Nordeste (no II Festival Nortista de Teatro Amador pela peça “Nós, As Testemunhas”), com um espetáculo que o Manuelito (um dos apelidos de Eduardo) escreveu para mim. Quando eu penso nisso eu me emociono, porque uma pessoa como ele, um intelectual, escreveu essa peça, eu fiz, nós viajamos com essa peça e eu ganhei o prêmio com esse personagem. Um personagem difícil, de vanguarda, inclusive. Ele foi o dramaturgo que lançou a vanguarda do teatro cearense, ficamos amigos até o último momento de sua vida.

Não sei ser amiga de temporada, posso não ver, posso não falar, ter a convivência diária, mas tem uma história comigo. Convivi com muitas pessoas, perco amigos por uma questão de finitude da vida

OP: Nas falas você traz nomes grandiosos como Eduardo Campos, Hugo Bianchi, Nadir, Marister…. São gerações de efervescência no teatro. Dentre as mudanças que você presenciou na área ao longo da carreira, quais você acha que são válidas destacar?

Fernanda: Nós tínhamos tantos talentos despertando para o mundo que não posso dizer que fulano foi melhor que o outro. Tínhamos o Haroldo Serra, grande produtor e diretor. Eu fiz dez anos da “Paixão de Cristo” com ele, fiz uma peça do Mauro Rasi... Muitos atores jovens. Depois eu fiz produção de espetáculo e por que não dizer do Ary Sherlock, de Emiliano Queiroz, grande amigo meu. Não sei ser amiga de temporada, posso não ver, posso não falar, ter a convivência diária, mas tem uma história comigo. Convivi com muitas pessoas, perco amigos por uma questão de finitude da vida, como o caso do B. de Paiva, uma pessoa fundamental na minha formação, um ator fantástico que me dirigiu, fundamental na minha vida no Rio de Janeiro. Fico até constrangida de citar e esquecer alguns nomes, mas todos que entraram em cena comigo foram fundamentais.

OP: E os movimentos dentro do teatro? Você citou o vanguardismo, tem algum que acha que vale a pena mencionar?

Fernanda: A comédia. “A Mente Capta” é uma comédia e eu sinto dificuldade na comédia. Acho que é um talento especial. Eu fiz, mas não fiquei satisfeita comigo na comédia. O diretor aturou ali, ou permitiu o meu limite. Mas eu, dentro de mim, achei que não sou uma comediante. Fiz muitos dramas, tenho uma facilidade muito grande de sentir os personagens. Durante 11 anos eu fiz “A Paixão de Cristo” e todas as vezes que encontrava com Jesus, o meu filho, eu chorava. Como é que uma mãe, como Maria, encontra um filho que está a caminho de Jerusalém para ser crucificado e ela não chora sabendo que ele vai morrer? Acho que dá mais certo comigo essa dramaticidade. Apesar de achar o máximo quem faz comédia.

OP: Prefere assistir drama, comédia, romance…?

Fernanda: Eu prefiro tudo. Não me sinto tão à vontade fazendo uma comédia porque sei que não estou fazendo o suficiente para o público absorver.

OP: Dentro do seu histórico, queria pontuar a questão da ditadura militar a partir de 1964. O que te remete ao período do golpe e como foi ser mulher e artista nesse momento?

Fernanda: Em 1964 eu vivi uma vida completamente diferente. Já estava casada, morando no Piauí, mãe de filhos. Meu sogro era amigo do Castelo Branco, ele hospedava-se conosco quando ia ao Piauí antes de ser o presidente da República, naturalmente. E ele me conhecia porque via as minhas peças, ele era comandante da 10ª Região Militar, ia ao teatro e me conhecia como atriz. Eu era uma pessoa conhecida na cidade. Sempre digo que sou conhecida porque sou aquela que está em cena e a plateia toda, 700, 800 pessoas, 20, 30, mil pessoas, estavam me vendo em cena. Isso me tornou de certo modo conhecida. Eu poderia receber os carinhos e os aplausos, mas fica difícil para uma pessoa reconhecer sua plateia. Reconhece pelos aplausos, mas assim como nós estamos conversando, não. Eu fiquei 11 anos na televisão, você entra nos lares das pessoas sem saber como você está sendo aceita e é um processo de centralizar muito a sua personalidade, se não você dança no sentido de não manter.

Eu não gosto, não sei brigar. Posso até sofrer por não saber brigar, mas eu não sei discutir. Tem coisas que eu não sei fazer, essa é uma delas. Por isso eu consegui conviver bem dentro dessa bolha de 1964.

OP: Você falou do Castelo Branco, que ele ia às peças. Como foi o decorrer desses anos da ditadura para você como artista?

Fernanda: Parei. Como já disse, meu sogro era amigo do Castelo Branco. Ele me conhecia como atriz. Lá na fazenda tinha o ‘quarto general’, ninguém usava para para quando ele chegasse o quarto já estivesse montado. Eu vivi essa bolha do golpe militar tendo este homem como o primeiro presidente da República do golpe militar - não era revolução, foi um golpe -, e convivendo com aquilo. Os irmãos da minha sogra eram generais, cada um tinha um título dentro do exército, eram colegas do Médici, do tempo de exército, do Costa e Silva. Eu vivi dentro disso sem poder me manifestar porque eles eram muito políticos. E assim minha vida foi passando, fui usando as 400, 1000 mulheres que existem dentro de mim. Me dediquei muito a minha família, tive um filho atrás do outro. Ainda consegui dirigir um espetáculo infantil para uma meninada, fiz um espetáculo da Maria Clara Machado, mas não atuei. Atuei como uma das mulheres que vivem dentro de mim, convivendo com esse outro pensamento. E tudo bem. Eu não me espanto com nada. É assim? Então que seja. Não me espanto com esse comportamento, pensamento. Você tem o seu e eu tenho o meu. Eles vão se chocar? Não terá meu espanto, terei cautela de conviver com isso. Eu não gosto, não sei brigar. Posso até sofrer por não saber brigar, mas eu não sei discutir. Tem coisas que eu não sei fazer, essa é uma delas. Por isso eu consegui conviver bem dentro dessa bolha de 1964.

Escrevi muito tempo no O Povo, crônicas aos domingos. E comecei a lançar livros. Estou no décimo segundo livro, vou lançar ainda esse ano. É um romance. Eu tenho livros de perfil, livros de poemas. E agora resolvi fazer um de romance e ficção, estou me atrevendo, estou quase no final.

OP: Depois você utilizou aspectos dessa realidade para construir parte do espetáculo “O Mundo dos Sons”...

Fernanda: “O Mundo dos Sons” é um espetáculo que eu escrevi para a televisão mexicana. Fui ao México porque o meu segundo marido (o músico Luiz Eça) foi contratado para uma temporada e as pessoas queriam que ele ficasse mais tempo. Fui para lá e fiquei conversando com o dono de uma agência que fazia programas para a televisão, fomos passear em Puerto Vallarta. Tinha uma encomenda da primeira-dama da Cidade do México. Ele perguntou: ‘Você tem alguém que faça algo’? Eu disse conheço, tenho uns amigos que escrevem. E o Luiz falou: ‘Não tem amigos, tem ela’. Eu não fico falando que escrevo, que sou poeta, as pessoas que reconhecem isso. Eles me encomendaram dez capítulos para a televisão mexicana, aprovaram o roteiro e eu ganhei a possibilidade. Quando estava no quinto capítulo, já traduzido para a língua deles, o Luiz adoeceu seriamente, uma inflamação no intestino, e eu disse para ir embora. Fiquei com muito medo porque o cineasta Glauber Rocha tinha morrido, estava em Portugal, e o Brasil se revoltou porque não trouxeram o Glauber para morrer no Brasil. ‘Se ele (Luiz) tiver um troço e morrer aqui, o que eu vou dizer para o Brasil?’ Sendo ele que tinha outras famílias também. Aqui a gente tinha casa, banco, família, hospital. Viemos embora, eles reclamaram muito e eu não fiz (a série). Quando eu cheguei no Brasil resolvemos o problema de saúde de Luiz e soube que o teatro Villa Lobos tinha lançado um edital para um espetáculo infantil. Eu adaptei os dez capítulos e ganhei a concorrência, montei esse espetáculo com texto meu e música do Luiz. Ficamos treze meses em cartaz, mas também parei, não escrevi mais para o teatro. O espetáculo teatral tem uma arquitetura muito diferenciada, não é só o diálogo. Tem um conflito que precisa ser muito respeitado para que a plateia se una. Escrevi outras coisas. Escrevi muito tempo no O POVO, crônicas aos domingos. E comecei a lançar livros. Estou no décimo segundo livro, vou lançar ainda esse ano. É um romance. Eu tenho livros de perfil, livros de poemas. E agora resolvi fazer um de romance e ficção, estou me atrevendo, estou quase no final.

OP: A escrita também vem naturalmente?

Fernanda: Vem. Eu estou deitada, lendo e na leitura eu encontro uma palavra que me desperta um pensamento. Isso quando eu leio os grandes escritores, dali eu fico até com medo para não ser uma cópia, vou achando o próprio caminho dentro daquela palavra. A palavra é muito forte, tanto te dá nascimentos, como te dá mortes. Essas transformações da língua portuguesa são muito perigosas. Uma palavra que você possivelmente diz com naturalidade para o outro, te toma como uma ofensa, como um grande atentado.

OP: A escrita das crônicas tinha uma periodicidade semanal. Era uma dificuldade para você?

Fernanda: Eu escrevo crônicas com facilidade. poemas com muito cuidado. Ontem eu comecei com uma frase, fui andando e de repente eu já estava falando de Shakespeare. É muito interessante essa viagem que você faz com as palavras. Não é qualquer pessoa que pode conquistar um leitor, por isso eu tenho muito cuidado. Eu escrevi esse romance há anos, já escrevi vários depois dele. Ele tem um personagem brasileiro, que é Dom Pedro II. Ele é um personagem que permeia a história.

Em Portugal fiz muita produção, trabalhei com milhares de pessoas e me diverti. Trabalhei com muita gente, principalmente de música, com o pessoal da Bossa Nova, do samba, de orquestra sinfônica… Eu trabalho com aquilo que eu acho que dará certo, tem que ter uma certa empatia.

OP: Queria voltar para as viagens, que acontecem em países internacionais, muitas cidades dentro do Brasil. Quais são as trocas que elas oferecem ao seu trabalho?

Fernanda: Em Portugal fiz muita produção, trabalhei com milhares de pessoas e me diverti. Trabalhei com muita gente, principalmente de música, com o pessoal da Bossa Nova, do samba, de orquestra sinfônica… Eu trabalho com aquilo que eu acho que dará certo, tem que ter uma certa empatia. Acabamos de fazer um CD em Fortaleza com Roberto Menescal, ele é um ser especial. Nem lançamos ainda, vamos lançar no segundo semestre. Ele, o Ricardo Bacelar e o Diogo Monzo, que é o meu pianista que viajo pela europa.

OP: Esse ano está muito movimentado

Fernanda: Começou com essa história de 70 anos que meu filho e o Ricardo Guilherme decidiram fazer e eu aceitei de bom grado. Achei delicado, amoroso também. Com o tempo que fui presidente da Academia Fortalezense de Letras eu tenho muita coisa, muitos documentos relativos a essas duas gestões. Preciso fazer um memorial, pegar uma sala. Em julho estaremos, eu e Diogo, convidados, em Viena, para aula e concerto. Vamos para a Bulgária, para aula e concerto, e depois para a região do Mar Negro, Dublin, Irlanda. Temos outros planejamentos que não estão totalmente fechados. As pessoas dizem que eu sou mais ou menos louca, mas eu gosto da minha loucura. Quando eu trouxe o Tony Benett para Fortaleza, ele veio do Grammy para o Ideal Clube (Ri). As pessoas acham que é algo complicadíssimo. pra mim não foi. Eu trouxe o Michel Legrand, Lucho Gatita, muita gente.

OP: E sobre Rio e Fortaleza, como você mantém essa ponte entre as duas cidades? Quais são as principais diferenças entre as cenas culturais das duas?

Fernanda: A cena do Rio de Janeiro é tudo acontece. Aqui tudo acontece quando é possível acontecer. Lá tem uma ebulição de escolas, teatros, agora com a pandemia você não consegue nem saber. Não gosto de fazer barzinho, você está tocando com sua expressão cirativa e o cara está tomando uísque, falando bem alto, falando ‘porra’. Trabalhei muito em bar, sei como é que é. Luiz tocava num bar, tirei ele do bar e coloquei ele em casa dando aula. Eu gosto mais de salas de concerto, já fiz várias coisas na sala Cecília Meireles (no Rio de Janeiro). Não me falta condição de trabalho, vou permeando. Agora estou querendo dar um passo maior, fazer no Teatro Municipal, não sei se vou conseguir. Ideia não nos falta, dinheiro eu não tenho nenhum. Mesmo que eu esteja aqui em casa, eu tenho essa responsabilidade. Eu tenho dez filhos, cinco netos, dois bisnetos, não paro. É muita história em volta.

Eu não sei até quando vou viver, eu não sei o que vai ser do ano que vem. Será que vou ter a mesma cabeça, a mesma disposição? Eu acho que não vou, não. Tem que ir agora, o ano que vem o que será? Mas talvez eu faça ainda maior (Ri)

OP: Como é chegar a estes 70 anos de arte e cultura? O que o marco representa para você?

Fernanda: Eu me espantei, quando eu lembrei já tinha passado. Eu me considero uma pessoa feliz, com tudo que tem acontecido, com todos os desencontros na vida, os sustos que você leva. Me considero feliz, mesmo com casamento desastrado, sofrimento. É difícil casar e descasar. É bom se apaixonar, mas amar é outra coisa. A paixão é uma infecção temporária, você fica infeccionada por aquilo. Eu tive isso na minha vida, me casei, tive cinco filhos, a paixão foi morrendo e eu tendo filhos até a paixão parar. Como você vai se livrar desse pacto que você fez? É complicado. Amar é diferente, o amor tem uma tolerância, uma questão de admiração. Meu segundo casamento (com Luiz) foi amor por admiração. Eu me casei infectada com o pai dos meus filhos, passei não sei quantos anos, e depois casei com Luiz que foi meu namorado quando eu tinha 15 anos e ele 17. Nos encontramos 26 anos depois e nos casamos. Nós fomos felizes, mas teve um momento que não aguentamos mais. Eu sou muito dona de mim mesma. Ele morreu e até hoje faço homenagens, acho que ele merece esse reconhecimento, foi muito bom marido para mim. Eu com 85 anos, será que não aprendi nada com a vida? A vida é uma coisa muito complexa, mas é fundamental. Eu não troco minha vida por nada. E tem que ser assim, você tem que amar o que é teu, fazer da vida a sua de fato e direito. São constantes mudanças, é interessante viver. Eu não sei até quando vou viver, eu não sei o que vai ser do ano que vem. Será que vou ter a mesma cabeça, a mesma disposição? Eu acho que não vou, não. Tem que ir agora, o ano que vem o que será? Mas talvez eu faça ainda maior (Ri).

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