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André Haguette: a trajetória de um cientista social
Reportagem Seriada

André Haguette: a trajetória de um cientista social

Pesquisador aposentado da UFC, André Haguette reflete sobre a sua trajetória acadêmica e o início dos governos que ajudaram a moldar o Ceará que se conhece hoje

André Haguette: a trajetória de um cientista social

Pesquisador aposentado da UFC, André Haguette reflete sobre a sua trajetória acadêmica e o início dos governos que ajudaram a moldar o Ceará que se conhece hoje
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Professor de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), André Haguette, 80, rejeita o rótulo de intelectual: “Eu sempre me considerei um cientista social”. Por algum tempo, no entanto, esteve em vias de se tornar padre.

Corriam os turbulentos anos de 1960. Nascido no Canadá, o jovem Haguette decidiu ganhar o mundo e acabou desembarcando no Brasil. Chegou como missionário jesuíta, mas logo se desencantou. Formado em Filosofia, bandeou-se para a Sociologia e dela não largou mão.

No Ceará, assustou-se com a desigualdade. Pelas décadas seguintes, fez da educação não apenas tema de pesquisa, mas da vida, exatamente porque entendeu que essa realidade não se transformaria sem um salto de qualidade educacional.

Em conversa com O POVO na última semana, Haguette, que é articulista do jornal desde 1995, revisitou sua trajetória. Os tempos da faculdade, da criação do programa de pós-graduação, da ditadura militar e do início da era Tasso Jereissati.

Nesse arco narrativo, garante que sempre preservou sua independência de cientista, sem jamais envolver-se com qualquer bandeira partidária. Houve apenas uma exceção, ele observa: “Para derrotar o Bolsonaro”.

 

 

O POVO – Queria saber como foi a decisão de sair do Canadá e vir para o Brasil. O que naquele momento foi determinante para que deixasse seu país e viesse para cá e aqui construísse uma vida e uma trajetória de pesquisador?

André Haguette – No fundo, no fundo, foi uma aventura que deu certo. Sempre fui muito feliz no Brasil, apesar de dois milhões de problemas que o Brasil não consegue resolver. Aumenta um problema, e depois outro e outro. Eu venho da província de Quebec, no Canadá. Essa província fala francês. O sistema de direito, tudo é francês. Digo isso porque o resto do Canadá fala inglês. Venho então de onde se falava e se pensava em francês. Eu entrei e me interessei pela religião, porque a religião lá é muito forte,00 muito ortodoxa. É a igreja que mandava, isso até os anos de 1960, quando houve novo governo e um processo rápido de modernização. Isso explica o porquê de eu ter entrado na ordem dos jesuítas, com o desejo de ser padre. A influência religiosa lá era uma coisa fantástica. Segui esse caminho influenciado por essa religião ortodoxa, opressora, mas feliz. Hoje falo isso, mas naquele tempo eu não sabia que era tudo isso. Depois descobri aos poucos. Em 1962 ou 1963, o papa João XXIII pediu às ordens religiosas para que pudessem enviar padres para o Brasil, porque faltavam. Havia uma carência de padres. E no Quebec estava sobrando padre. Eu fiz o pedido, aceitaram que eu viesse, e eu vim como seminarista. Ainda não tinha terminado a minha formação jesuítica, que é bastante longa. Vim pra cá e passei dois anos, ao chegar ao Brasil, trabalhando no Colégio Santo Inácio, em Fortaleza. Aliás, tive uma experiência muito boa. Quando cheguei eu me dirigi para Petrópolis (RJ). E lá tinham criado uma espécie de escola onde os jovens escolásticos, seminaristas e padres pudessem se aclimatar e aculturar no Brasil. Passei cinco meses lá, foi uma experiência extraordinária. Éramos 60 pessoas, de todas as partes do mundo, e no Rio de Janeiro.

OP – Antes disso, o senhor já havia tido contato com a língua portuguesa ou foi apenas em Petrópolis?

Haguette – Eu não sabia de nada, nem dizer obrigado ou água. Aprendi a língua lá. Depois a gente do Quebec vinha trabalhar no Nordeste. Então quando terminou esse curso, que foi interessante, me mandaram para Fortaleza. Aqui, passei dois anos dando aula no Santo Inácio. Eu tinha feito meu mestrado sobre um autor muito conhecido na época e tinha muita influência, que era Teilhard de Chardin (padre e filósofo francês, nasceu em 1881 e faleceu em 1955). Me pediram para organizar um curso sobre o Chardin, eu não falava bem português ainda, mas aceitei. Esse curso começou com 47 pessoas e terminou com cento e tantas, não por minha causa, mas porque ele estava na moda. Esse curso foi no seminário, não foi no colégio. Eu trabalhava no colégio e organizaram esse curso à noite.

André Haguette, sociólogo, professor de Sociologia da UFC.(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS André Haguette, sociólogo, professor de Sociologia da UFC.

OP – Foi a partir desse curso que o senhor chegou à UFC?

Haguette – Como foi um sucesso, aumentou em vez de deixar de ter alunos, o padre me convidou para trabalhar na UFC. Naquele momento quase ninguém tinha títulos, estavam precisando. A UFC foi criada em 1958, e os primeiros alunos chegaram em 1960. Uma coisa engraçada é que, na minha formação, eu deveria ter ido para o Rio Grande do Sul estudar teologia, o que não fiz. Não fui porque me convidaram pra trabalhar na UFC. Eu disse: mas não posso aceitar o convite de vocês porque em setembro eu vou para o Rio Grande do Sul. E o padre disse: não tem problema, você se demite. E estou aqui até hoje. Nunca me demiti. Depois fomos fazer o doutorado nos Estados Unidos com uma bolsa para a Universidade de Syracuse. Fizemos mestrado e doutorado em Sociologia.

OP – Mas o senhor pulou uma parte importante: em que momento decidiu que não iria seguir mais a carreira teológica e não seria mais padre?

Haguette – Foi um momento crítico. Eu ensinava no colégio, ensinava na Uece e na UFC, o que não era anormal na época. Como tinha pouca gente com diploma, a gente trabalhava em três ou quatro lugares para poder fazer um salário mais ou menos honesto. Enquanto isso acontecia, minha cabeça rolava. Eu não estava preparado psicologicamente e intelectualmente para trabalhar num país tão pobre. Eu me lembro de circunstâncias que eu não entendia. Uma vez fui à Praça dos Leões, e naquele tempo tinha muita prostituição. Era o final dos anos 1960. Eu não me via mais ensinando e repetindo essas coisas nas quais eu não acreditava mais. Foi um processo de decantação. Eu continuei, mas sem a necessária adaptação. Deixei a Companhia de Jesus e peguei meu caminho.

OP – Trocou os jesuítas pela universidade?

Haguette – Pela universidade. Daqui pra frente, é na universidade que me desenvolvo, graças e na universidade.

OP – O senhor falou desse choque inicial que teve quando se deparou com uma realidade de desigualdade e de muita pobreza. Como foi travar contato com isso no estado?

Haguette – Foi ao mesmo tempo muito duro e muito fácil. Porque tem uma coisa que era o golpe militar. Eu me sentia obrigado a lutar pela democracia. O Canadá era democrático e rico. Eu me engajei nos movimentos para tentar derrubar o governo. Não entrei nos movimentos armados, mas participava das reuniões, contrariando meus superiores, porque os jesuítas no Brasil, sobretudo do Nordeste, eram muito reacionários, a favor da revolução. Eu fiz o contrário. E foi nesses movimentos que encontrei a pessoa que ia ser minha esposa e que acabou sendo também da universidade (Teresa Haguette, socióloga e professora).

 André Haguette nasceu no Canadá e chegou ao Brasil como seminarista jusuíta(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS André Haguette nasceu no Canadá e chegou ao Brasil como seminarista jusuíta

OP – O senhor vinha de um país rico e que vivia plenamente sua democracia e chegava num país pobre e no meio de uma ditadura.

Haguette – Um país muito mais pobre do que hoje, apesar de hoje ainda termos muitos pobres. Todos os aspectos eram muito piores. Eu me lembro que, de 1.000 nascidos, 123 crianças abaixo de um ano morriam. Era horrível. Eu entrei nesses movimentos e na universidade. O forte era meu trabalho na universidade. Tanto que minha esposa e eu fomos atacados pelo regime. E aqui quero fazer uma homenagem ao reitor que recebeu a ordem para nos botar para fora da universidade, e ele não o fez. Aliás, os reitores da universidade foram muito opostos ao golpe militar e importantes para os movimentos, sem entrar nos movimentos.

OP – Dentro da universidade o senhor chegou a sofrer algum tipo de perseguição?

Haguette – Tem uma coisa que me ajudou, mas que ao mesmo tempo eu não gostava. Eu era vítima de uma discriminação positiva. Eu, como canadense, jesuíta, professor universitário, todo mundo me achava melhor do que eu era e melhor do que os outros, o que evidentemente não é verdade. Foi facilitado por esse fato. O que poderia ter sido difícil, dado o que eu estava fazendo, pelo contrário, facilitou meu trabalho. Nesse aspecto, foi fácil. Quando se tem um objetivo, as coisas correm. Hoje é interessante, a gente vive um momento difícil, mas não tem essa unanimidade que tinha naquele tempo. Mas sofremos. Por exemplo, pedimos para estudar na França para fazer doutorado. Foi negado porque a França era um país socialista, e a gente não podia ir lá. Quando a gente viu isso, decidimos ir para os EUA. E liberaram na hora.

OP – Como foi essa experiência nos Estados Unidos?

Haguette – Foi muito bom, a universidade americana é uma coisa extraordinária. Quem não conhece universidade americana não sabe o que é uma universidade. É impressionante. Na universidade havia tudo, restaurante, cinema. É um mundo. Isso foi em 1974.

 

Havia naquela época um movimento na universidade para formar melhor seus professores, e isso quem ajudou mesmo foram os governos militares. Depois, se quiser que eu fale mal, eu falo. Mas, nesse aspecto, foi uma coisa bem interessante. E você pode notar que as universidades começam a se criar depois dos anos 1960.

OP – O senhor estava tentando fazer a pós-graduação fora por causa da pressão política e do ambiente que estava difícil ou porque queria dar continuidade à pesquisa?

Haguette – Havia naquela época um movimento na universidade para formar melhor seus professores, e isso quem ajudou mesmo foram os governos militares. Depois, se quiser que eu fale mal, eu falo. Mas, nesse aspecto, foi uma coisa bem interessante. E você pode notar que as universidades começam a se criar depois dos anos 1960. Cada departamento tentava enviar seus professores para fora para fazer doutorado, para poder criar mestrado e doutorado. A gente estudaria onde, se não tinha aqui? Fora. Muitos organismos passaram a dar bolsa. Um foi a Usaid (United States Agency for International Development), uma corporação ou programa concebido pelos americanos para ter influência nas nossas universidades, mas ajudou mesmo. Não tem como dizer que não ajudou. Então nos anos de 1960 foi quando as universidades começam, nos 1970 se consolidam e nos 1980 passam a ter programas de pós-graduação. Foi um processo até rápido e apoiado pelos governos. Eu retorno ao Brasil em outubro de 1977. Eu volto, mas vou trabalhar na UFC ou na Uece? A Uece não ajudou ninguém com isso. Eu cheguei, fui falar com o reitor, o padre Moreira. Eu talvez fosse naquele momento um dos únicos professores com doutorado. Quando disse que ia ficar na UFC, não esboçou nada. Não tinha a menor ideia do que era um mestrado e um doutorado e nem pensava em criar esses postos. Porque se pensasse em criar, ele me apoiaria para ficar na Uece. Eu fiquei na UFC.

André Haguette: governo militar deixou legado positivo na educação superior apesar de implantar uma ditadura no Brasil a partir de 1964(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS André Haguette: governo militar deixou legado positivo na educação superior apesar de implantar uma ditadura no Brasil a partir de 1964

OP – Como foi o retorno para a sala de aula depois desse período fora e qual a influência que essa formação nos EUA teve sobre o trabalho que o senhor desenvolveu?

Haguette – Foi grande (a influência) se a gente considerar que isso permitiu abrir mestrado e doutorado. Como eu, vários outros colegas estudaram fora para fazer doutorado. Não fomos os únicos. A universidade tentava se consolidar com qualidade. Uma dificuldade que enfrentei naqueles momentos, que eram muito patéticos, foi que os alunos não me aceitaram como professor.

OP – Por quê?

Haguette – Porque eu tinha estudado nos Estados Unidos. Um país inimigo. Me lembro bem que um dia cheguei na sala de aula e estava todo mundo com um jornal, todo mundo lendo o jornal. Não sei se era O POVO.

OP – Era um protesto?

Haguette – Era um protesto contra mim.

OP – E como se resolveu essa situação?

Haguette – Quem era o coordenador do curso (Ciências Sociais) naquele momento era o professor Diatahy (Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes), que você deve conhecer. Ele não permitiu isso. Hoje essas pessoas são meus amigos. Mas foi duro. Você chega todo animado, entusiasmado, vou fazer isso e aquilo, vamos criar um mestrado. E eles não querem, por uma razão totalmente equivocada. Eu não esperava isso, pelo contrário. Mas fui resiliente. Todo dia chegava na hora, e de repente a coisa se tranquilizou.

OP – Houve algum outro episódio de dificuldade nessa época?

Haguette – Uma coisa que vale a pena dizer é que, quando Paulo Elpídio era reitor, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) criou um setor na universidade para saber quem são os bons e quem são os ruins, quem são os subversivos e quem não. Inclusive, quando pedimos para ir para os EUA e para a França, a gente passou por eles. Se não permitissem, a gente não ia. Mas o que eu ia dizer do Paulo Elpídio é que, quando o coronel (do Dops) ia visitá-lo, ia falar com o reitor, ele se levantava e ia atender o agente na porta. Ele não permitiu jamais que ele entrasse na sala do reitor. São coisas interessantes de atitude e resistência.

Uma moral civil é muito mais exigente do que uma moral religiosa e muito menos preocupada com coisas que não são importantes, como o sexo. Meu passado como adolescente no Canadá mostrava isso também. Como era muito ortodoxo, o problema era a sexualidade, como se isso fosse o mais importante no que Jesus disse.

OP – Sua formação inicial é na área de Filosofia, mas o senhor traçou um caminho cujo destino final era ser padre. Qual a relação que o senhor tem com a religião ainda hoje?

Haguette – Nenhuma. Hoje me considero como ateu. Mas foi progressivo. Quando deixei em 1966 (a religião), fui me afastando cada vez mais da igreja, por várias razões. Uma razão teórica mesmo foi não entender as coisas da igreja, como, por exemplo, pecado original, trindade etc. Ninguém nem sabe o que quer dizer isso, um deus trino. Percebi que tudo isso foi criado, não foi Jesus que disse essas coisas. Foi a burocracia da religião que avançou, criou uma série de coisas e ficou obcecada sobre o sexo. A igreja é supérflua, na minha opinião. É atrasada. As igrejas, não apenas a católica. Uma moral civil é muito mais exigente do que uma moral religiosa e muito menos preocupada com coisas que não são importantes, como o sexo. Meu passado como adolescente no Canadá mostrava isso também. Como era muito ortodoxo, o problema era a sexualidade, como se isso fosse o mais importante no que Jesus disse.

OP – Como o tema da educação se tornou um tópico tão importante nos seus trabalhos e pesquisas? Tem a ver com a realidade do Ceará, que se orgulha de ter a educação como vitrine? O senhor acompanhou inclusive todo esse processo de formação desde a era Tasso.

Haguette – Isso foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida. O Tasso ganha a eleição (em 1986). Naquele tempo, todo mundo que não era dos militares era esperançoso para ter mudanças importantes. Tasso forma sua equipe e coloca como secretário da Educação o Paulo Elpídio (ex-reitor da UFC), que me convida. Fui coordenador de Desenvolvimento na Secretaria da Educação. Eu nunca tinha entrado numa escola pública, não sabia de nada. Cheguei lá, houve uma reação de algumas pessoas do grupo, que achavam que eu vinha de fora, e eles tinham razão. Eu vinha de fora mesmo. Mas eu continuei lá e nós fizemos muita coisa. Nós, a equipe. O clima era muito favorável. O PMDB ganhou em todos os estados, menos em um. Havia uma efervescência. Eu me apaixonei realmente e vi quão importante era isso. O Brasil tinha que resolver seu problema da educação começando pela base. Era um dos poucos países que teve excelentes universidades enquanto seu povo não era alfabetizado. O governador começa a demitir. Nós tínhamos a ideia, que acho que é o correto, de que professores deveriam ter só um ou dois contratos. Eu explico. Quando alguém entrava na Secretaria de Educação, tinha um contrato, geralmente de 20 horas, que quer dizer um expediente. Aí tinha pessoas com três, quatro e cinco contratos de 20 horas, ou seja, trabalhava 100 horas numa semana. Era uma bagunça.

OP – O senhor percebe que houve uma continuidade entre os trabalhos do governo Tasso e os seguintes?

Haguette – Sem dúvida. O que o Tasso fez não é pouca coisa, não. No primeiro mandato ele preparou a situação. Por exemplo, tinha uns 300 jornalistas ganhando pela Secretaria de Educação. Ele cortou tudo isso. Mas cortando tudo isso você cria inimigos. Mesmo assim ele conseguiu eleger o sucessor, que foi Ciro Gomes. Depois voltou, ficou mais dois mandatos. Ele fez coisas muito importantes, colocou a máquina para andar, não só na área da educação.

OP – Depois vieram Lúcio Alcântara, Cid Gomes e Camilo Santana...

Haguette – E acho que os três dão continuidade à obra de Tasso. O Tasso foi, a meu ver, o ponto marcante para a educação e para o próprio estado. O governo Tasso estava baseado num movimento dos intelectuais. Criou-se um grupo para analisar a situação do Ceará, que reunia umas 400 pessoas. No começo não fiz parte disso. Eu dizia: o Tasso é igual aos outros, vai pegar nossas ideias e não vai dar em nada. Aí o Paulo Petrola, um dos reitores da Uece, me convenceu. Fui com ele a uma reunião, e realmente o discurso do Tasso era muito diferente do discurso dos outros. Restava saber se ele iria pôr isso em prática, uma vez lá. Penso que tivemos uma sorte muito grande de ter pessoas competentes ao mesmo tempo. Todos os governadores continuaram o trabalho do Tasso, acrescentando coisas, evidentemente. Não houve interrupção entre ele e os demais. Foram 15 ou 20 anos, de maneira que, quando se olha o Ceará nessa história, você vê uma sequência. Pode ter brigas de partidos, mas isso não interessa muito, desde que a linha de trabalho fique a mesma. Acho que foi exatamente o que aconteceu no Ceará, diferentemente de outros estados, como Pernambuco. Da mesma forma na Prefeitura de Fortaleza, que sempre teve secretários de Educação de qualidade. Pode criticar, mas não houve um Bolsonaro aqui nessa época. São pessoas sérias que trabalharam sem muitos recursos, que seguem uma mesma linha. Talvez um dia vão ter que mudar o modelo, porque os modelos não duram a vida toda.

OP – Sobre os últimos quatro anos no Brasil: o senhor chegou a imaginar que pudesse haver risco de golpe militar ao longo da gestão de Bolsonaro?

Haguette – Não. Várias pessoas diziam, mas eu não achava que haveria. Por causa da influência internacional. Hoje não dá para ter ditadura no Brasil. Os Estados Unidos não vão permitir, a Europa não vai permitir. Seria um desastre, ninguém quer isso. Naquela época (1964), não. Todo mundo queria supostamente por causa dos russos. De um lado tinha os comunistas e do outro, o mundo ocidental tentava mais a democracia. Eles (os militares) sabem dessa dificuldade.

OP – O professor Valmir Lopes, também do departamento de Sociologia da UFC, já definiu o senhor como um “intelectual público”. O senhor concorda com essa definição?

Haguette – Concordo no sentido de que eu tentei ser, mas acho que não fui, não. O intelectual público é uma oposição ao intelectual orgânico. Ele não tem apegos a nada, é mais livre e não pertence geralmente a uma associação ou partido.

OP – Faz jus a sua trajetória?

Haguette – Eu sempre me considerei um cientista social. Acho que somos capazes de fazer análises racionais do que está acontecendo em determinado momento. Eu nunca me interessei em entrar em partido. Para não dizer nunca: pela primeira vez, eu tive atitudes partidárias para derrotar o Bolsonaro. Pode olhar nos artigos (no jornal), não vai encontrar nenhum que toma partido por partido político. Toma partido por ideias. Por partidos, não. O partido restringe, necessariamente, e é bom que seja assim, mas, ao restringir, perde-se muita coisa. Mas, neste momento da nossa aventura, era fundamental nos livrarmos do Bolsonaro. Eu gostaria de ter uma grandeza suficiente para ser um intelectual, mas acho que é uma expressão do Valmir.


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